Biografias – “Qualquer tipo de censura é retrocesso histórico”

14 de novembro de 2013

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O site da revista J&C convidou a Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional, Flávia Bahia Martins, para  explicar  diversas questões sobre um dos temas mais discutidos na mídia brasileira nos últimos meses: as biografias. Para ela, “um gênero literário que enriquece a cultura e a história do Brasil”.

Flávia é professora de Direito Constitucional do Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS), da Fundação Getulio Vargas, da Escola da Magistratura do Estado do Rio/EMERJ, da Associação do Ministério Público do Rio, da Fundação Escola Superior do Ministério Público e de diversas outras instituições. É, ainda, autora do livro “Direito Constitucional”, já em terceira edição pela editora Impetus.

Ela ressaltou a importância dos relatos biográficos para conhecimento pela sociedade da verdade e da história e da consolidação de uma democracia, considerando ser um “retrocesso histórico a instituição de qualquer tipo de censura no país”, ao se manifestar totalmente contra a necessidade de qualquer tipo de autorização para a publicação de biografias.

O assunto, além de acirrados debates públicos, envolvendo artistas, jornalistas, políticos, advogados de uma maneira geral, atinge também a sociedade como um todo, está em discussão também no Congresso Nacional, por abranger diversos princípios constitucionais básicos e invioláveis, direitos individuais e coletivos, liberdade de expressão, direito à privacidade e direito à verdade histórica.

Manifestações foram e são emitidas em toda a mídia. Alguns defendem “biografias, só autorizadas”. Outros sua liberação total. Há, ainda, os que consideram importante e essencial mudar a redação dos dispositivos do Código Civil relativos ao assunto, por darem margem a interpretações equivocadas. E também os que defendem a liberação das biografias de forma controlada ou com “certos ajustes”. E ainda os que querem incluir na lei a determinação de que informações sobre saúde, relações familiares e de amizade dos biografados sejam preservadas, uma restrição que seria extensiva a terceiros que tenham relação com a pessoa biografada.

As questões jurídico-legais que permeiam toda a discussão vieram à tona quando importantes membros da classe artística defenderam publicamente seu direito de vetar biografias, alegando os artigos 20 e 21 do Código Civil que tratam da inviolabilidade da privacidade e permitem a proibição de publicação ou utilização da imagem de uma pessoa “se lhe atingirem a honra, a boa fama ou sua responsabilidade”. Em clara e decisiva contraposição a isso, a Associação Nacional dos Editores (ANEL), entrou no Supremo Tribunal Federal com ação pleiteando que o STF declare a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos dispositivos 20 e 21 do Código Civil para afastar toda e qualquer interpretação no sentido de que eles possam estimular uma verdadeira censura prévia. Nesta ação, outras entidades, como a Associação Brasileira de Imprensa, manifestaram-se como partes interessadas e neste sentido uma audiência publica irá ocorrer.

A especialista em Direito Constitucional e Humanos Flávia Bahia Martins considera importante, a respeito desse fato, que o Supremo Tribunal Federal analise a questão e “caso decida de forma favorável ao pleito acredito que realizará uma uniformização de entendimento muito importante em defesa das liberdades constitucionais”.

Nesta entrevista exclusiva ao jornalista e escritor Carlos Alberto Luppi, para o site J&C, ela manifesta também sua opinião a respeito de outro aspecto polêmico em toda essa discussão: a pretensão de biografados de receberem compensação financeira por parte de editoras e biógrafos. E é taxativa: “Não sou favorável à participação financeira obrigatória. Na prática, há um investimento financeiro na produção literária apenas do lado do biógrafo e, portanto, entendo não ser a compensação financeira obrigatória”.

Acompanhe a entrevista.

1. À luz das recentes e atuais discussões sobre biografias autorizadas e não-autorizadas, sobre direitos de escritores e editoras – de um lado – e de biografados – do outro, qual sua opinião como cidadã brasileira?

A Constituição de 1988 representa um marco fundamental na defesa dos direitos individuais e também estabeleceu, como nunca antes na história nacional, a liberdade de imprensa no sentido amplo da expressão. Seria um retrocesso histórico se fosse instituída qualquer tipo de censura no país. Como a própria norma constitucional estabelece mecanismos claros para reparação dos eventuais excessos que causem prejuízos, como extraímos do art. 5º, V, X e XXXV, sou favorável à desnecessidade de autorização para a publicação de biografias, gênero literário que enriquece a cultura e a história do Brasil.

2. A Sra. é a favor ou contra, nesse caso, à máxima “é proibido proibir”?

É “proibido proibir”, pois a censura é vedada pela Constituição (arts. 5º, IX e 220, §2º) e essa é uma inegável conquista histórica e patrimônio dos brasileiros. Durante os vinte e um anos do regime de exceção, a lei sacrificou as liberdades em geral, dentre elas a de expressão. Vivemos hoje o maior período de estabilidade democrática, sob a égide de uma Constituição plural, que vai de encontro a qualquer tipo de cerceamento prévio das liberdades que assegura. Mas é importante frisar que o texto constitucional defende um modelo de manifestação de expressão responsável, prevendo a ampla reparação pelos eventuais prejuízos sofridos, no âmbito material e moral.

3. Os artigos 20 e 21 do Código Civil não estabelecem, na prática, uma espécie real de “censura prévia”?

Os dispositivos mencionados, se interpretados à luz da Constituição, não devem ser considerados como instrumentos de censura, mas, como muitos juízes os têm aplicados no sentido restritivo, literal, sem conjugá-los com a liberdade de pensamento, de expressão e de informação, asseguradas pela Lei Maior, e, muitas vezes, com o tom censurador, o debate sobre a sua compatibilidade com as normas constitucionais se faz mais do que necessário.

4. O artigo 20 afirma que a “privacidade é inviolável” e o 21 que “salvo se autorizadas… a divulgação de escritos, a transmissão da palavra ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa, poderão ser proibidas… se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a responsabilidade ou se se destinarem a fins comerciais”. Como conviver com isso numa democracia real?

Não há inviolabilidade absoluta num Estado democrático, tampouco a liberdade de informação possui natureza intangível. É indispensável que no caso concreto se pondere os princípios em conflito para se chegar a uma decisão adequada. Aliás, o diálogo e o dissenso são corolários da democracia.

5. A Associação Nacional dos Editores de Livros está com uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal contestando os artigos do Código Civil e sua prevalência, que permitem o direito de veto a biografias não autorizadas. Pela sua experiência e vivência, e também como conhecedora e especialista em Direito Constitucional, como a Sra. analisa isto e como julga isto?

Diante das distorcidas interpretações judiciais acerca dos artigos. 20 e 21 do Código Civil, a Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL) pleiteia na ADI 4815 que o STF declare a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos mencionados dispositivos para afastar a sua interpretação no sentido de realizar uma verdadeira censura. Como as decisões da Corte no controle concentrado produzem efeitos erga omnes e vinculantes para todos os órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública, caso o STF decida de forma favorável ao pleito, acredito que realizará uma uniformização de entendimento muito importante em defesa das liberdades constitucionais.

6. A Constituição Federal em seu parágrafo IX do artigo 5, determina que é “livre a expressão da atividade intelectual artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Por que esta discrepância entre a Constituição e o Código Civil? Não há, em sua opinião, uma contradição clara?

O Código Civil prevê, numa redação plurissignificativa, a tentativa de coibir os excessos que já são puníveis de acordo com o próprio texto da Constituição, ensejando a possibilidade de inúmeras interpretações a favor da censura. Com isso, acho importante todo o debate e espero que o STF exclua essa possibilidade de verdadeira censura no país, aplicando os comandos constitucionais.

7. Há diferença entre Direito Constitucional e Direito Civil em relação aos direitos de indivíduos e empresas?

O Direito Constitucional com toda a sua condensação ‘principiológica’ exerce uma verdadeira “força invasora” nos demais ramos do direito e modernamente há uma integração mais harmoniosa entre o direito público e privado. Não há mais uma separação cartesiana entre o Código Civil e a Constituição e o primeiro deve ser sempre interpretado sob o prisma constitucional.

8. A Sra. é especialista em direitos constitucionais e direitos humanos. Os que defendem o direito de vetar uma biografia não autorizada alegam que querem preservar seus direitos humanos de manter inviolável sua privacidade. É de fato uma equação de entendimento complexo, como parece? A questão dos direitos humanos tem importância fundamental nessa discussão?

É um tema realmente complexo, pois envolve múltiplas ponderações e todas elas são legítimas. A do biografado de preservar a sua intimidade. A do biógrafo, no exercício do seu direito de informar e de trabalhar e de realizar a própria atividade de imprensa no sentido lato. O da sociedade de ter a sua cultura, história e informação protegidas e de viver num Estado efetivamente democrático e plural.

Apesar de não ser um assunto simples, reforço que a solução não é a censura, finalmente banida do país após os anos duros da ditadura militar.

9. Uma democracia não pode existir sem a livre expressão do pensamento e liberdade de expressão. E também ela não existe com direitos individuais suprimidos. O direito “à inviolabilidade da privacidade” é um deles. Existe um conflito de direitos?

Não cabe ao direito antever todas as situações de conflito que serão verificadas com o tempo e diante dos fatos apresentados. Cada caso receberá a sua própria ponderação, não há resposta pronta, muito embora seja consenso que a liberdade de imprensa é um dos baluartes da democracia.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal tem destacado, de modo singular, a necessidade de se preservar a prática da liberdade de informação, resguardando-se, inclusive, o exercício do direito de crítica que dela emana, o que significa, segundo a Corte, verdadeira “garantia institucional da opinião pública”, por tratar-se de prerrogativa essencial que se qualifica como um dos suportes axiológicos que conferem legitimação material ao próprio regime democrático.

Mostra-se, portanto, incompatível, com o pluralismo de ideias (que legitima a divergência de opiniões) a visão daqueles que pretendem negar, esta fundamental liberdade.

10. Muitos artistas tentando justificar suas opiniões de que “biografias, só autorizadas”, apegando-se, para dar suporte a isso, aos artigos do Código Civil consideram, ou pelo menos manifestaram publicamente que, além, do direito de vetar a publicação, teriam também o direito automático, de obter participação financeira dos autores e editoras nas vendas de suas biografias. Qual sua opinião sobre este assunto específico?

O trabalho árduo de pesquisa, de coleta de informações, fotografias, depoimentos é todo do biógrafo e não sou favorável à participação financeira obrigatória, a não ser que esse seja o acordo entre o biografado e o biógrafo. Na prática, há um investimento financeiro na produção literária apenas do lado do biógrafo, portanto, entendo não ser a compensação financeira obrigatória.

11. O alegado direito de vetar uma biografia não abre um enorme precedente para se agredir a liberdade de imprensa? Ou essa discussão nada tem a ver com liberdade de imprensa? Muitos políticos, membros do Congresso Nacional, insistem em adotar um principio radical de “que não se pode publicar inverdade e por causa disso, biografia só autorizada”.

A liberdade de imprensa aqui é considerada em sentido lato, englobando a função de comunicação informativa e as liberdades de pensamento e de expressão que contribuem para a realização dos mais elevados princípios constitucionais, como o da soberania e da cidadania, conciliados na contemporaneidade com a proibição do anonimato, o sigilo da fonte e o livre exercício de qualquer trabalho, ofício, ou profissão. Além disso, a Constituição ainda contempla o direito de resposta e a reparação pecuniária por eventuais danos, sem prejuízo, ainda, do uso de ação penal também ocasionalmente cabível. Acredito que não existe espaço constitucional para nenhum pensamento diferente sobre o tema.

12. Como outros países tratam esta questão? Liberdade de Expressão x Direito à Privacidade x Liberdade de Imprensa x Direito à Verdade. Em síntese, esses são os princípios básicos que cercam toda esta discussão sobre biografias ? E os aspectos  históricos e culturais? E  os aspectos  da questão que envolvem o mundo acadêmico ( monografias, estudos, teses, etc.)?  Qualquer prevalência do direito a veto, não atingiria tudo isso?

Em apertada síntese sim, ressaltando a importância dos aspectos históricos e culturais que também envolvem o tema. Em boa parte dos países democráticos, como nos Estados Unidos, Inglaterra e Espanha a regra é a da liberdade de manifestação de expressão e os conflitos são resolvidos caso a caso, na medida em que se apresentam na sociedade. É importante destacar que alguns países “vizinhos” como Venezuela, Equador, Bolívia e Argentina estão caminhando em sentido contrário ao da liberdade de manifestação com demonstrações claras de cerceamento da imprensa e o Brasil não pode, em nome de todas as lutas para firmar as liberdades constitucionais, andar na mesma direção.

Em nome da liberdade de manifestação de pensamento a liberdade de biografar  não deve ser tolhida, mas o controle posterior dos eventuais danos é garantido pelo acesso à justiça, constitucionalmente protegido. As biografias de pessoas públicas ainda adentram no aspecto histórico e cultural, inerentes à posição que ocupam na política, nas artes, no esporte e essas pessoas gozam de uma esfera de privacidade naturalmente mais estreita.

13. Afinal, o biografado que não autoriza a biografia tem o direito legal de mandar suspender a venda do livro tirando-o das livrarias?

Se constatado algum tipo de ilícito penal, de manifestação abusiva e irresponsável sim, eventualmente, essa pode ser um dos aspectos da decisão judicial para evitar prejuízos irreversíveis à intimidade do biografado. Entretanto, cada caso deve ser analisado com as suas peculiaridades, evitando que a decisão satisfaça apenas a um capricho de alguém que não concorda com alguma passagem do livro por não enaltecer sua vaidade.

14. O chamado “fim comercial” que existe em qualquer relação profissional e, nesse caso, permeia também as relações entre quem escreve e quem edita uma biografia, não deveria existir nesse tipo de gênero literário? Não é um absurdo total que desta forma, toda e qualquer biografia teria que ser colocada no mercado, de graça?

Assim acabaríamos com esse gênero literário no país e comprometeríamos a própria história e cultura nacional.

15. A prevalecer o direito ao veto de uma biografia ou gênero semelhante por parte do biografado, não será isto (como atualmente pode ser considerado) uma espécie de tentativa de proteger segredos escusos ou impedir que venham à tona e ao conhecimento da sociedade uma serie de informações importantes para a sustentação de uma democracia?

Sem dúvidas, além disso, o indivíduo não faz, naturalmente, um juízo imparcial de si mesmo. Se as únicas biografias existentes fossem as autorizadas, teríamos apenas uma parte da história, a verdade “floreada” do autor contando a sua própria trajetória.

16. Em sua opinião, que espécie de pacto jurídico-legal novo poderia existir entre editores, autores, biografados respeitando-se o direito da sociedade de conhecer melhor as pessoas públicas, de todas as áreas e que acabam interferindo direta ou indiretamente em sua vida?

Acho que a Constituição já delineia os principais alicerces dessa relação jurídica e creio que qualquer lei que traga uma análise restritiva do tema coloca em risco as liberdades públicas, conquistadas depois de anos de luta no país. Vou acrescentar à minha resposta o texto abaixo.

“A liberdade de tudo dizer só existe quando reivindicada a todo instante. (…) A liberdade de expressão não deve ser posta a serviço da defesa do humano, ela pertence, enquanto liberdade, à liberdade do humano. Ela não é apenas o despertador da consciência e o porta voz de seu despertar, ela é a linguagem restituída à pessoa, aquela que manifesta o modo como vivemos no mundo e o estilo segundo o qual temos a intenção de viver”.

(Raoul Vaneigem. Nada é sagrado, tudo pode ser dito. Parábola Editorial, São Paulo, 2004)