Caminhos para um Judiciário mais eficiente

31 de agosto de 2011

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Nota do Editor

Em evento realizado na Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Cezar Peluso, e tendo como palestrantes, além do Ministro citado, o Vice-Presidente da República, professor Michel Temer, e o diretor da Faculdade, professor Joaquim Falcão, o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, discursou de improviso sobre temas relacionados ao Poder Judiciário.

Ele discorreu sobre importantes e oportunas questões, como a crônica e pertinaz morosidade processual, em especial, sobre a proposta apresentada pelo Ministro Cezar Peluso. A proposta consiste numa sistematização contra o que o Ministro da Justiça classificou de desmedidos, e às vezes infrutíferos, recursos protelatórios apresentados indiscriminadamente, causando, segundo ele, uma avalanche de processos que não teriam razão, nem direito, de atravancar os gabinetes dos ministros dos tribunais superiores.

As palestras foram elucidativas nos detalhes e razões apresentados, mas o que chamou a atenção do editor foi a clareza e objetividade do Ministro José Eduardo Cardozo, que o fez se lembrar, por cotejo e com saudade, da grande personalidade, do emérito mestre da Faculdade de Direito e reitor da Universidade de São Paulo, professor Vicente Ráo. jurista, civilista, publicista, conferencista, expositor e orador dotado de aprimorada inteligência, ele foi, por duas vezes, ministro da Justiça.

Mesmo admitindo a ousadia intelectual da tese sustentada pelo Presidente do STF, com base na visão pragmática de um magistrado, sabedor da necessidade da valorização das sentenças de 1ª instância e dos tribunais estaduais, o Ministro Cardozo aceitou e admitiu que os problemas são graves no atual sistema jurisdicional. O fato, aliado à experiência administrativa do Ministro e a sua efetiva participação representativa perante os Legislativos federal e municipal, acumulada com a atuação no Ministério Público, o fez considerar  e reconhecer a procedência da proposta do Ministro Cezar Peluso, no sentido de ser debatida a eliminação dos recursos e encontrada uma solução.

O pronunciamento elucidativo do Ministro José Eduardo Cardozo dá mostras da sua inteligência e cultura, aliadas ao conhecimento dos problemas que irá enfrentar na importante e intrincada missão a ele destinada, como Ministro da Justiça, pela Presidenta Dilma Rousseff. A ele caberá dar uma resposta prática e imediata aos grandes problemas a serem resolvidos junto ao Governo Federal, entre os quais destacam-se: (a) a diminuição da litigiosidade do Estado, principal autor nas 86.500 milhões de ações que abarrotam os tribunais, a qual poderia ser absorvida por medidas práticas antes da propositura das demandas pela sociedade, hoje tolhida pela morosidade processual, causadora do afastamento de muitos brasileiros da possibilidade da prestação jurisdicional; (b) a aceleração da tramitação do novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados nacional, inspiração do Ministro Luiz Fux; (c) idêntica medida em relação ao anteprojeto do Código de Processo Penal, referente ao projeto de lei que modifica a Lei 8.666, de 1993 e à Lei das Licitações , também tramitando no Congresso Nacional; (d) modificação da Lei de Desapropriações, cujo Decreto Lei 3.365 é de 1941 e muitas outras alterações foram introduzidas depois disso, inclusive a Lei 4.132, de 1962, que disciplina a desapropriação por interesse social, o que sugere a consolidação da jurisprudência a fim de atender hoje o que foi conquistado pelo nosso Judiciário e os operadores do Direito na formação de uma cultura jurídica nessa questão.

Outro assunto abordado com ênfase pelo Ministro da Justiça foi segurança jurídica e insegurança social, que em larga medida guarda uma pertinência com o nosso modelo de prestação jurisdicional, nos obrigando a criar regras que permitam atacar o problema da insegurança, além do combate ao crime organizado a exigir uma profunda reflexão dos operadores do Direito. O Ministro reiterou, por fim, a necessidade de se debater a questão com profundidade, buscando encontrar o equilíbrio que equaciona o Estado Democrático de Direito e reafirmou o propósito do governo, de acordo com as recomendações da Presidenta Dilma Rousseff, de enfrentar o crime organizado sem abrir mão de direitos e sem ser complacente com situações terrivelmente maléficas para todos.

Encerrando a palestra, o Ministro José Eduardo Cardozo afirmou: “Eu pretendo colocar todo um conjunto de situações sobre as quais considero que a sociedade brasileira precisa se debruçar e os agentes dos três Poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, têm o dever social e histórico de pensar e refletir. (…) Acredito que chegou a hora, como já nos demonstraram os dois pactos anteriores, de dar um salto para diante. Para isso, precisamos de ousadia, desprendimento e muita fraternidade entre aqueles que têm essa missão (…) nesse momento que, eu diria, é histórico e pode modificar em muito o futuro do País”.

A seguir, confira a íntegra da palestra proferida pelo Ministro José Eduardo Cardozo no evento “Caminhos para um Judiciário mais eficiente”, promovido pela Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro.

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“Normalmente, nós do mundo do Direito, somos bastante estratificados nas nossas posições, e temos dificuldade de migrar pra transformações profundas, especialmente quando se fala no campo do processo. O Ministro Cezar Peluso, com grande ousadia, faz uma proposta de um modelo que seguramente será polêmico – nós não temos a menor dúvida disso –, mas é uma boa polêmica. Isto, porque o Professor Peluso, apresenta uma proposta que tem um elemento motivador fascinante, ele não partiu de um modelo teórico previamente concebido e fechado em que discute a ontologia dos institutos que passaram a existir dentro dessa formulação. Ele partiu da visão pragmática de um Magistrado que sabe da necessidade que se tem da valorização das sentenças de 1ª Instância e dos Tribunais Estaduais, para a partir disso, teorizar e fazer uma proposta.

Cada vez mais me convenço que, quando os problemas são graves é desta forma que nós temos que debater as soluções. Tivesse Montesquieu, antes de formular o princípio da tripartição dos Poderes, discutido na Academia as diferentes naturezas ontológicas, das funções estatais, e talvez o espírito das leis ainda tivesse um espírito, não tivesse sido escrito. Então, meus cumprimentos ao Professor Peluso, sei que a tese é absolutamente polêmica, mas parte de uma análise correta do problema que nós temos no nosso sistema jurisdicional.

Há muito se fala da Reforma do Judiciário, e não me agrada a expressão, porque prefiro falar de Reforma do Sistema de Prestação Jurisdicional do Estado Brasileiro. O problema não está centralizado na dimensão orgânica do Poder Judiciário, está localizado no sistema de prestação jurisdicional, que é disciplinado por leis, que é disciplinado por atores que não estão apenas localizados no âmbito orgânico de um Poder do Estado, e que envolvem os três Poderes do Estado, e também a sociedade. Por esta razão, a reformulação desse sistema passa da mesma forma, por um conjunto de iniciativas necessárias que envolvem os três Poderes do Estado e a sociedade. É de conhecimento de todos, ou são conhecidas de todos as razões pelas quais se clama pela reforma desse modelo de prestação jurisdicional. Um deles é a questão da morosidade da prestação jurisdicional; esse é um problema gravíssimo, um problema que afeta a cidadania, um problema que afeta a segurança jurídica que é um dos valores centrais da sociedade moderna. Por essa razão, é um problema que tem que ser trabalhado, e sem sombra de dúvida a valorização das sentenças, a eliminação de recursos, muitas vezes utilizado com finalidade meramente procrastinatória e, a possibilidade de uma prestação jurisdicional mais ágil, é um desejo que nós temos que cada vez mais contemplar e abraçar na perspectiva de uma solução.

Os demais problemas se colocam, contudo, e nós temos que ter clareza, da mesma maneira, que muitas vezes um sistema como o nosso, pela sua característica, pela sua afeição propicia uma litigiosidade excessiva e desnecessária, mecanismos que pudessem evitar a litigiosidade excessiva com situações de conciliação prévia, mecanismos até extrajurisdicionais de solução de litígios seriam muito bem vindos para que nós pudéssemos retirar do Poder Judiciário situações que por vezes poderiam ter sido eliminadas previamente.

Nesse contexto, inclusive, se insere a própria questão da excessiva litigiosidade que envolve a própria administração pública. Eu, como advogado público de formação, sei quantas vezes nós arrastamos processos indefinidamente com a perspectiva de que o interesse secundário do Estado parece se transformar em primário, ou seja, não permitir que situações sejam consolidadas numa administração presente para sejam passadas para administrações futuras. Em outras palavras, a dimensão da litigiosidade do Estado com a sociedade abarrota os tribunais, e nós temos que atacar esse problema. Uma das formas de atacá-lo é diagnosticar onde estão os pontos geradores desta litigiosidade e evidentemente fazer intervenções no plano legislativo e em outros planos que sejam estritamente necessários. Da mesma forma, o acesso ao Judiciário é uma questão muito importante numa sociedade democrática. Se por um lado nós temos nossos tribunais abarrotados de processos, se por um lado nós temos uma litigiosidade que por vezes poderia ter sido absorvida antes da propositura de uma demanda, a verdade é que nós temos muitos brasileiros afastados da possibilidade da prestação jurisdicional. Há muitos direitos que são violados e que não são levados aos Tribunais para uma correção pelas dificuldades de acesso ao Poder Judiciário, e uma sociedade verdadeiramente democrática tem que enfrentar esse problema. O Estado de Direito, na sua dimensão maior, não pode ignorar realidades dessa natureza. É por esta razão que por orientação da nossa Presidenta Dilma Roussef e entendimento com o Presidente da Suprema Corte, que foi lançada, no início desse ano, essa idéia nós temos procurado iniciar um diálogo com o Poder Judiciário, e agora, já nessa etapa também com o Poder Legislativo, para que possamos fazer mais um pacto republicano na busca do aperfeiçoamento da nossa prestação jurisdicional.

Já foram dois pactos anteriores, e agora chegou a hora de nós darmos mais um salto na elaboração de uma nova proposta pra sociedade brasileira. E é nessa perspectiva que acho que nós temos que tocar em alguns pontos. O primeiro é que nós temos que modernizar a nossa processualística, nós temos que encontrar mecanismos pelos quais, na prestação jurisdicional, sejam: garantidos o contraditório e a ampla defesa, bem como garantidos os direitos processuais básicos incorporados no texto da Constituição e prestada [a atividade jurisdicional]  com agilidade e com eficiência. Uma proposta que merece sem sombra de dúvida uma reflexão de todos nós e também dos processualistas, os quais, tenho certeza, debaterão profundamente esta matéria. Além disso, outras questões têm de ser colocadas; nós temos, por exemplo, que debater e verificar se incluímos ou não, nesse pacto, a proposta que está em tramitação no Congresso Nacional de um novo Código de Processo Civil. Nós temos uma legislação processual que é de 1973. Já há muitas décadas se coloca a questão de que temos um excelente Código de Processo do ponto de vista técnico sem sombra de dúvida, porém muito tempo se passou, o que nos faz pensar, não será a hora de uma mudança? Não será hora de uma reformulação das nossas regras processuais? Essa questão deve ser debatida efetivamente a partir de um projeto que já foi aprovado pelo Senado Federal, e está hoje em tramitação na Câmara dos Deputados, por inspiração do ilustre, hoje, Ministro do Supremo Tribunal Federal Luis Fux, Coordenador dos trabalhos.

Da mesma forma, a nossa legislação processual penal exige um debate, nós temos um anteprojeto de Código de Processo Penal aprovado pelo Senado, e tramitando também na Câmara dos Deputados. Precisamos verificar se esse texto, ou não exatamente este, mas se as modificações tem de ser colocadas ou não e, devem integrar um novo Pacto Republicano para que se possa com agilidade obter a aprovação destes textos. Além disso, me parece importante que se ataque alguns pontos, como dizia a pouco, de geração da litigiosidade da própria administração pública com o Estado. Acho de fundamental importância que isso se coloque. Por exemplo, está hoje em tramitação também no Congresso Nacional, um Projeto de Lei que modifica a Lei de Licitações, Lei 8666 de 1993; no qual alguns mecanismos são propostos e que poderão reduzir a litigiosidade nesse tipo de procedimentos administrativos com a chamada inversão de fases, com a ampliação do chamado Pregão, uma série de medidas que são importantes para que tenhamos mais aceitação dos procedimentos sem tanta litigiosidade no mundo administrativo.

Da mesma forma, a modificação da nossa Lei de Desapropriações, o Decreto Lei 3365 é de 1941. Muita jurisprudência já foi colocada depois disso; a nossa Lei que disciplina a Desapropriação por interesse social é de 1962, a Lei 4132, ou seja, não será reunirmos toda contribuição da jurisprudência, considerarmos as características hoje das situações procrastinatórias, e fazermos uma nova Lei centrada naquilo que foi conquistado pelo nosso Judiciário, e pelos nossos advogados na formação de uma cultura jurídica nessa questão?

Então, portanto, senhores, há muitas coisas a se fazer, e dentre outras, leis que também ataquem um dos problemas centrais que nós temos no nosso sistema jurídico, e que eu poderia chamar como chamei há pouco, da insegurança. A insegurança jurídica e a insegurança social são características que em larga medida guardam uma pertinência para o nosso modelo de prestação jurisdicional; nós temos que criar regras que permitam atacar o problema da insegurança. A insegurança jurídica dando mais certeza aos operadores do direito a partir da dimensão legislativa da atuação; porque, por exemplo, não se ter um Código das Ações Constitucionais que pudesse disciplinar e resolver as [incidências] que fazem arrastar e polemizar processos dos tribunais que poderiam ser facilmente resolvidos?

Um simples exemplo: até hoje ainda se discute a figura do Amicus Curiae em que ações podem intervir, até que momento isso é possível a intervenção, consumindo muitas vezes, na nossa Suprema Corte, questões recorrentes; este é só um exemplo. Porque não termos um Código das Ações Constitucionais que normatizasse, que definisse, que parametrasse conjuntos de situações que efetivamente simplificariam a atuação dos operadores do Direito, ou seja, situações desse tipo eliminariam insegurança jurídica, e agilizariam a prestação jurisdicional.

Da mesma forma, de outro lado, a questão da insegurança social é grande, nós temos que nos debruçar sobre leis que permitam enfrentar a questão da segurança pública, que é um dos problemas centrais da sociedade brasileira hoje. O combate ao crime organizado exige uma profunda reflexão dos operadores do Direito. Muitas vezes nós vemos posições extremadas, arraigadas em certas dimensões dogmáticas que precisam agora ser objeto de reflexão. Nós temos que debater esta questão com profundidade para verificar o equilíbrio; de que forma um Estado Democrático de Direito enfrenta a questão do crime organizado sem abrir mão de direitos, mas também sem ser complacente com situações e que se reproduzem socialmente que são terrivelmente maléficas para todos.

Ademais, do ponto de vista da nossa realidade, hoje é indispensável que nós tenhamos projetos de leis que combatam a violência social geradora também da insegurança, e muitas vezes situações que não são equacionadas acabam se arrastando; posso citar um exemplo aos senhores e às senhoras, daquela Lei que colocou o problema da punição no caso de consumo de álcool ao volante. Esta Lei, ela foi baseada, na minha concepção, numa premissa correta, ou seja, a de buscar enfrentar legislativamente um problema que é gerador de violência, de mortes na juventude, o acidente de trânsito hoje é uma realidade perversa na sociedade brasileira. No entanto, da forma como está hoje posto este Ato Legislativo, a partir do que vem sendo acumulado pela jurisprudência, bastará que uma pessoa pega em uma situação de transversão a esta Lei, não se submeta ao chamado bafômetro para que seja absolvido criminalmente; e aí nos perguntamos: qual a saída? Nós também não podemos forçar ninguém a produzir prova contra si próprio, mas será que não há uma saída dentro dos marcos do Estado de Direito pra que nós possamos resolver isto?

Em síntese, eu pretendo colocar todo um conjunto de situações que acho que a sociedade brasileira precisa se debruçar, e que os agentes dos três Poderes: Poder Executivo, Legislativo, Judiciário têm o dever social, histórico, de pensar e refletir.

Nós precisamos de uma prestação jurisdicional, sem sombra de dúvida, mais ágil. Precisamos evitar a litigiosidade excessiva que abarrota os nossos Tribunais e que acaba também gerando a morosidade. Nós temos que atacar a insegurança jurídica e social, e, portanto, pra isso, é necessário que os três Poderes do Estado, mais os agentes da sociedade, abdiquem em alguma parcela de suas posições arraigadas, e sentem-se juntos para elaborar um pacto que enfrente essa questão de forma decisiva. Acredito que chegou a hora, como já nos demonstraram os dois pactos anteriores, de dar um salto para diante. Agora, eu não acredito em salto para diante desta matéria que não envolva uma sinergia entre os três Poderes e a sociedade; eu não acredito num salto para diante que não envolva o abdicar dos operadores do Direito de certas posições que muitas vezes são corporativas e que não se prendem a um objetivo maior, que é o objetivo de conquistarmos algo melhor pra sociedade brasileira. É por isso que eu vejo com bons olhos, por exemplo, a proposta do Professor Peluso, e é por isso que eu vejo com bons olhos o debate em relação a este novo pacto que nós começamos a gestar.

Acredito que hoje a sociedade brasileira diante do momento especial que vivemos, momento de pujança econômica, um momento de elevação da autoestima dos brasileiros, um momento de reconhecimento internacional do nosso papel no mundo, temos a maturidade suficiente para, em torno de uma mesa, sentar e buscar construir um Pacto Republicano que possa ser definitivamente um grande salto para uma redefinição do nosso modelo de prestação jurisdicional. Para isso precisamos de ousadia, desprendimento e muita fraternidade entre aqueles que tem esta missão, nesse momento que, eu diria, é histórico, e pode modificar em muito o futuro da nação brasileira.