Carta Republicana de 1988: o transitório e o permanente

6 de outubro de 2014

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Luiz-Felipe-HaddadNos tempos conturbados de hoje, neste País, em que o almejo popular por mudanças em várias esferas, abrangendo a da estrutura do Estado (em sentido amplo), colide com interesses plutocráticos e oligárquicos, esses, fortalecidos pelo temor que assola os segmentos sociais medianos, no cotejo de crescente criminalidade e degradação de valores éticos e familiares básicos, de tudo decorrendo uma perigosa sedução por novas rupturas institucionais, agregada a tendências ideológicas “ultras” no que se convencionou denominar de “direita” e “esquerda”, é bom que a consciência republicana e democrática pátria tenha a exata visão do que, em termos de reforma da Carta Magna, possa ser, ou não, admitido. Para tal, não basta a literalidade de seu artigo 60, parágrafos e incisos.

Em uma brevíssima suma histórica, observa-se que a Carta Imperial de 1824, jungida à transição entre o absolutismo monárquico, jungido ao integrismo religioso católico e o liberalismo advindo da revolução francesa, jungido, agregado ao iluminismo e ao racionalismo, só tornou imutável o regime monárquico, sob Pedro I e seus descendentes, além do caráter oficial da Igreja de Roma. Na República, a Constituição de 1891, inspirada pela Carta dos Estados Unidos da América e ao exemplo de suas congêneres na América Latina, vedou emendas que abolissem a forma republicana, ou federativa, e a igualdade dos Estados no Senado. A Carta de 1934, que se afastou em parte do modelo, limitou tal vedação à abolição mencionada. A Constituição de 1937, denominada “polaca”, resultante de golpe de Estado e sob a influência da que o General Presidente Josip Pilsudski impôs ao povo polonês, silenciou por completo. A Carta de 1946, não alterada, no tema, pela semioutorgada de 1967, nem pelo emendão ditatorial de 1969, manteve em seu texto a vedação a que qualquer emenda abolisse a Federação ou a República.

Quando, por força da consciência democrática, incrementada pelo “jejum eleitoral” de mais de duas décadas (aqui não considerados os pleitos no bipartidarismo imposto e controlado pelo poder ilimitado dos “atos institucionais”), e também por continuadas violências de agentes do Estado contra opositores do regime, alguns dos quais optaram por ações armadas de fins ideológicos extremados, tivemos o começo da “Nova República”, em março de 1985. Houve, e por mais que se queira negar, um pacto, de natureza política, econômica, social e de filosofia jurídica, o qual se materializou na Constituição de 5 de outubro de 1988 – Carta da Cidadania, conforme o sempre saudoso Ulysses Guimarães, daí decorrendo suas cláusulas de pedra, não mais restritas aos superados dilemas “república x monarquia” e “federalismo x unitarismo”. Aliás, o primeiro se viu sepultado pela manifestação plebiscitária de abril de 1993, e o segundo, na prática, perdeu relevo diante dos princípios da simetria e da colaboração, que muito diminuem os espaços estaduais no cotejo do federal, e dos municipais no cotejo de ambos. Frisando-se, no tocante ao Poder Judiciário, que a Emenda no 45 de dezembro de 2004 reduziu a um “quase zero” a autonomia estadual.

Por esse pacto, de que participaram todas as correntes partidárias e ideológicas, desde as conservadoras e as liberais até as socialistas moderadas e radicais, abrangendo posições religiosas e não religiosas, resolveu-se edificar no Brasil um Estado Democrático que assegurasse os direitos individuais e sociais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, nos campos interno e externo, com a solução pacífica das controvérsias (Preâmbulo). Tudo isso se traduz em repúdio ao uso da força, ou outros meios antijurídicos, de tomada do poder ou de sua manutenção; e, também, repúdio ao predomínio de uma ideologia sobre outra; repúdio à guerra, máxime de conquista; relevo equivalente aos valores do trabalho e da iniciativa livre; prestígio, acima de tudo, à dignidade da pessoa humana (artigo 1o, III).

Apesar de já serem 80 as emendas constitucionais, nesses quase 26 anos decorridos da vigência, as ditas cláusulas pétreas permanecem de pé, com ressalva do comentado acima sobre a forma federativa de estado, ainda hígida, conquanto apequenada. São elas: o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; os direitos e as garantias individuais. Aqui, cabe-se interpretar que as garantias básicas da Magistratura, do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Advocacia são compreendidas, por lógico, nos últimos, e que os direitos sociais de maior relevo, como o salário mínimo, as férias remuneradas, o 13o salário, a limitação da jornada às 44 horas semanais, e outros na esfera previdenciária, sejam uma extensão dos individuais; que as limitações ao poder de tributar também nos mesmos se incluam; que o direito de propriedade seja respeitado, mas na correlação à função social; e com ressalva da autorização de confisco de terras onde haja cultivo de entorpecentes; almejando-se outra, assaz justa, onde haja o nefando trabalho escravo.

Agora se indaga: podem essas normas permanentes ser revogadas por “nova constituinte” ou por “revisão”? A resposta é, ao meu sentir, negativa.

Outra assembleia constituinte, claro que não, uma vez que só poderá decorrer de outra ruptura no Estado de Direito, por golpe ou insurreição vitoriosa, o que, graças a Deus e à evolução da consciência, nossa cidadania, “paisana” ou “fardada”, não mais o permitirá. Qualquer reforma política, que, aliás, o autor dessas linhas reputa necessária ou de diferente natureza poderá, sim, ser discutida e aprovada por um grupo seletivo, representando as bancadas parlamentares em suas dimensões, e, depois, ratificada pelo voto favorável de três quintos dos deputados federais e dos senadores. Ou, ainda, aprovada em plebiscito nacional, mas com a ratificação acima descrita. E sempre respeitando tais limites à mudança.

Aí, dirão os discordantes que “a geração atual estará engessando as futuras”. Disso não se trata. Nos encerros da Lei Maior, possibilita-se qualquer programa de governo, ou linha de legislação, que oscile entre o liberalismo econômico minimamente regulado, não se permitindo o “capitalismo selvagem”, e a intervenção estatal, de fins sociais progressistas, mas não ao ponto de implantar aqui o modelo apelidado de “bolivariano”. O que se quer é a aprovação eleitoral periódica, em pleitos depurados das mazelas que hoje os debilitam. O que se quer, por igual, é a beleza democrática de um partido assumir o poder e depois cedê-lo a outro, e se preparar para voltar, por meio de propostas debatidas por todos os segmentos da sociedade. O que também se deseja é que, sem prejuízo da democracia representativa, exista a direta, também prevista na Lex Legum, por plebiscitos, referendos e conselhos que não ultrapassem o caráter consultivo.

Pois, ao exemplo de várias nações europeias, que muito sofreram no passado remoto e no próximo, por opressões diversas e de pouca diferença nos terríveis corolários, nós, brasileiros e brasileiras, de todas as faixas etárias, de todos os segmentos, que haurimos as luzes da democracia e lutamos para que ela seja formal e material, devemos sempre nos ater ao referido pacto, que contém tais disposições permanentes; editadas, sobretudo, para a proteção de todos. Esta, se ainda mais teórica que prática, integra um ideal que vale a pena ser perseguido.