Edição

Chega de band-aid fiscal

5 de abril de 2004

Secretário Municipal de Administração do Rio de Janeiro.

Compartilhe:

Nos últimos anos, você certamente já perdeu a conta das vezes em que ouviu a sociedade brasileira gritar, de seus quatro cantos, que a carga tributária sobre ela tornou-se absurda. E você provavelmente nunca ouviu o governo negar o fato: ou silencia, ou argumenta que não tem outra saída para fechar suas contas. Qual dos dois lados está com a razão? De certa forma, ambos. Mas ao concentrar a discussão na alíquota da Cofins, ou no que fazer com a tabela do Imposto de Renda, a verdade é que estamos todos andando em círculos. Ou o país acorda para o seu problema real, ou estará condenado a perseguir para sempre o próprio rabo. E o problema real, por uma dessas ilusões de ótica da política, saiu de pauta.

Hoje, dos partidos políticos ao Tribunal de Contas, do FMI às agências de classificação de risco, ninguém ousa dizer que o Brasil não conquistou um razoável equilíbrio fiscal. E é a pura verdade. Seguindo uma tendência mundial, o país passou a ter um planejamento concreto na relação entre receitas e despesas, comprometendo-se inclusive com a realização de um superávit anual (4,25% do PIB, excluídas despesas com juros).

O pecado foi esquecer de que forma se chegou a esse equilíbrio fiscal. Aí está o problema real. A primeira cartada para o controle da inflação, quase dez anos atrás, foi a implantação de uma moeda de transição – a URV – ancorada no valor do dólar, e acompanhada de uma elevação da taxa de juros (para atrair investimentos em moeda americana e segurar o consumo). Como se sabe, de saída a coisa funcionou maravilhosamente bem. Tão bem, que mal se ouviam as vozes dos próprios idealizadores do Plano Real, advertindo: o plano só se sustentaria se o país fizesse o seu ajuste fiscal.

Que palavrão era aquele? Traduzindo o economês, significava que o Estado agora não teria mais as extraordinárias compensações da inflação (que lhe permitiram ganhar até 80% ao mês no manejo do Orçamento). Ou seja: ele tinha que refazer seu mapa de gastos, e redesenhar suas formas de financiamento. Isto nunca foi feito. Quando estourou a crise dos Tigres Asiáticos, em 1997, o governo acordou para o problema e programou um ajuste fiscal de emergência, executado a partir do ano seguinte. Em valores da época, a União precisava de 18 bilhões de reais para fechar suas contas e não virar geléia, como a Rússia virou logo depois.

O tal ajuste de emergência, nome pomposo para um grosseiro remendo tributário, não demandou muita ciência: entre outros penduricalhos, tratava-se essencialmente de jogar para cima, com força, as alíquotas do IR, da CPMF, da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido e do PIS/Cofins. Foi aí que o país passou a bater recordes mundiais de carga tributária. E é ainda este mesmo ´remendão´, com pequenas alterações, a base do decantado equilíbrio fiscal brasileiro de hoje.

Não é difícil entender, portanto, que enquanto não fizer seu dever de casa direito, o Brasil só perderá o seu tempo discutindo reformas tributárias cosméticas – como esta recentemente aprovada no Congresso. E que dever de casa é esse? Infelizmente, ele não tem a simplicidade de uma receita de bolo, e não pode ser resumido em alguns slogans ou palavras de ordem, como convém às disputas políticas. Mas é possível dizer que, no governo federal ou fora dele, está enganado quem afirma que a redução da carga tributária só virá com o crescimento econômico. Há muito o que fazer antes disso, e a palavra mágica – que de mágica não tem nada – é: gestão.

A máquina governamental é um organismo complexo, e a idéia de gestão é muitas vezes confundida com medidas fiscais espalhafatosas – como a surrada solução de taxar servidores públicos inativos, tratada equivocadamente como panacéia financeira. Uma reforma da Previdência de verdade, que instituísse o regime de capitalização e mudasse para valer a relação contribuição-benefício, seria, de fato, uma forma concreta de ajuste fiscal. Mas só uma fração dele. Para se falar de gestão, é preciso compreender a máquina governamental como um carro de Fórmula-1. Não adianta encher o tanque, trocar os pneus e mandá-lo para a pista. Há um vasto universo de peças, parafusos, reações físicas e químicas cujo funcionamento eficiente depende de estudo, paciência e muita, muita criatividade.

Apesar de quase não repercutirem na América do Sul, há casos de ‘choques de gestão’ no mundo que são considerados autênticas revoluções. As reformas da máquina estatal iniciado há décadas na Austrália, na Inglaterra e nos Estados Unidos estão entre elas. São experiências diferentes entre si, mas com vários aspectos em comum. Um princípio que atravessa todas essas revoluções é o de readequação do modelo industrial para organizações que passam a ter seus organogramas simplificados, horizontalizados e surge uma nova lógica do funcionamento do Estado. A lógica da redução de custos e prazos desnecessários. Os processos deixam de passar por etapas atravancadoras das decisões que servem apenas para carimbar relações de autoridade e poder.

O uso efetivo e competente da informática torna mais inteligente e ágil o caminho da informação e portanto da decisão. Uma reforma baseada na lógica dos próprios processos (e não dos ´carimbadores´ deles) reduz drasticamente os custos operacionais do Estado. Isto é o que chamaria de ajuste fiscal verdadeiro. E esta eficiência se potencializa se um governo, em vez de limitar-se a queixas sobre seus gastos com a folha de pessoal, investir na requalificação de seus servidores – assim como grupos privados têm que investir em gente para sobreviver no mercado.

Mas o Brasil, em geral, ainda está na pré-história dessa transformação. Reformar o Estado é, como se diz, trabalho de chinês. Não é coisa que se resolva com discursos e um par de emendas constitucionais montando um Fla-Flu em torno delas. Demanda coragem, para desmontar estruturas, reconstruir ao lado dos servidores os processos administrativos e muita vontade de trabalhar. Faz-se necessário uma nova cultura pública. A alternativa é a eterna queixa da injusta e indecente carga tributária brasileira.