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Cidadania fiscal e Direito Financeiro

1 de agosto de 2013

Desembargador Federal do TRF-2a Região, Professor Titular de Direito Financeiro da UERJ

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Marcus AbrahamEm um país de tantas diferenças sociais, econômicas e culturais como é o Brasil, o conhecimento do Direito Financeiro e o exercício pelo cidadão dos seus direitos fiscais – sem descuidar do cumprimento dos seus deveres – se faz extremamente relevante. Mais do que um conjunto de normas sobre o ingresso, a gestão e a aplicação dos recursos financeiros do Estado, o Direito Financeiro constitui uma ferramenta de mudança social.

Isto ocorre porque esta ciência trata, além de tudo, da redistribuição de riquezas, do equilíbrio financeiro entre os entes federativos, da participação direta e indireta da coletividade na elaboração do orçamento, do controle da arrecadação e dos gastos públicos e do compromisso dos seus princípios com o bem-estar da comunidade a que se aplicam. Enfim, versa sobre tudo o mais que se faz necessário para que a justiça fiscal se traduza em justiça social. E, nos dias de hoje, a participação do cidadão neste processo passa a ganhar foro fundamental, prerrogativa que denominamos de cidadania fiscal.

Inegável reconhecer que sempre houve maior preocupação com a arrecadação das receitas públicas, especialmente a tributária, do que com a gestão e a aplicação de tais recursos. Os gastos públicos acabavam sempre por ficar em segundo plano de importância se comparados com a tributação e o Direito Tributário. Tanto assim que este ramo do Direito ganhou destaque e autonomia própria. Mas, hoje, é preciso redirecionar o foco e dar a devida relevância e efetividade ao Direito Financeiro, suas normas e objetivos.

A Constituição brasileira de 1988 estabelece no seu art. 3o os objetivos da República Federativa do Brasil. Construir uma sociedade livre, justa e solidária, desenvolver o país, acabar com a pobreza e a marginalização e minimizar as desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem de todos, são os nobres intentos a serem atingidos, segundo prevê a nossa Carta Maior. Estes desígnios têm como fundamentos, consignados no art. 1o, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e a valorização do trabalho e da livre iniciativa. Diante de tantas pretensões, recursos financeiros se fazem mais do que imprescindíveis para atingir tais objetivos.

Mas não basta arrecadar o necessário, de forma equitativa e equilibrada. A administração de tais recursos deve ser feita de forma eficiente. E, na mesma linha, a sua aplicação precisa ser realizada criteriosamente, para que se possa atender às necessidades públicas da maneira mais ampla e satisfatória possível.

É neste ponto que vemos o Direito Financeiro brasileiro se destacar como sendo um complexo, porém avançado, sistema jurídico. Se bem observado, é capaz de direcionar positivamente os atos dos governantes e influenciar para melhor a vida em sociedade.

Um aspecto desta ciência jurídica ganha grande relevância no cenário contemporâneo: a preocupação com a administração da coisa pública. A responsabilidade na atividade financeira é requerida em todas as etapas do processo fiscal, desde a arrecadação, passando pela gestão, até a aplicação dos recursos na sociedade de maneira responsável, ética, transparente e eficiente.

Neste passo, o cidadão é convocado a participar ativamente deste processo, tendo a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000) função fundamental. Através dela, introduz-se uma nova cultura na Administração Pública brasileira, baseada no planejamento, na transparência, no controle e equilíbrio das contas públicas e na imposição de limites para determinados gastos e para o endividamento.

A partir da LC 101/2000, confere-se maior efetividade ao ciclo orçamentário, por regular e incorporar novos institutos na lei orçamentária anual e na lei de diretrizes orçamentárias, voltadas para o cumprimento das metas estabelecidas no plano plurianual. Impõe-se a cobrança dos tributos constitucionalmente atribuídos aos entes federativos para garantir a sua autonomia financeira e estabelecem-se condições na concessão de benefícios, renúncias e desonerações fiscais. Obriga-se a indicar o impacto fiscal e a respectiva fonte de recursos para financiar aumentos de gastos de caráter continuado, especialmente em se tratando de despesas de pessoal. Fixam-se limites para a ampliação do crédito público com vistas ao controle e redução dos níveis de endividamento. E criam-se sanções de diversas naturezas em caso de descumprimento das normas financeiras.

Porém, mais importante do que instituir toda uma nova metodologia para a gestão financeira dos recursos públicos, a Lei de Responsabilidade Fiscal vem estimular o exercício da cidadania, através dos mecanismos que incitam participação ativa da sociedade nas questões orçamentárias, desde o processo deliberativo até o acompanhamento e avaliação da sua execução, conferindo maior efetividade à democracia brasileira.

Além de instituir relatórios específicos para a gestão fiscal – Relatório Resumido de Execução Orçamentária, Relatório de Gestão Fiscal e Prestação de Contas – e determinar a sua ampla divulgação, inclusive por meios eletrônicos, a Lei de Responsabilidade Fiscal incentiva a participação popular nas discussões de elaboração das peças orçamentárias e no acompanhamento da execução orçamentária, através de audiência pública, e permite o pleno conhecimento e acompanhamento da sociedade, em tempo real, de informações pormenorizadas sobre a execução orçamentária e financeira, em meios eletrônicos de acesso público (art. 48, LRF).

A cidadania participativa nas finanças públicas se expressa não apenas através das previsões legais que permitem o conhecimento e envolvimento do cidadão nas deliberações orçamentárias e no acompanhamento da sua execução, mas também encontra respaldo no comando da Lei (art. 73-A, LRF), que prevê que qualquer cidadão será parte legítima para denunciar ao respectivo Tribunal de Contas e ao órgão competente do Ministério Público o descumprimento das prescrições estabelecidas na LRF.

No mundo moderno, o Direito Financeiro acumula funções de estatuto protetivo do cidadão-contribuinte, de ferramenta do administrador público e de instrumento indispensável ao Estado Democrático de Direito para fazer frente às suas necessidades financeiras. Sem ele não seria possível ao Estado oferecer os serviços públicos, exercer seu poder de polícia e intervir na sociedade, colaborando na redistribuição de riquezas e na realização da justiça social, com respeito à dignidade da pessoa humana e à manutenção do equilíbrio econômico e da prosperidade. Não à toa, atualmente apresenta-se como objeto de interesse a chamada “Teoria dos Custos dos Direitos” (The Cost of Rights. HOLMES, Stephen; SUSTEIN, Cass. New York), pela qual se preconiza que até mesmo os direitos liberais clássicos – como a propriedade privada, por exemplo – apresentam custos para serem garantidos pelo Estado. Neste momento, desponta o tributo como principal fonte de receita financeira, ganhando status de dever fundamental constitucionalmente previsto (O dever fundamental de pagar impostos. NABAIS, José Casalta. Coimbra).

Sendo o tributo o “preço da liberdade”, custo este originário do pacto social firmado entre o cidadão e o Estado (e cidadãos entre si), em que o primeiro cede parcela do seu patrimônio (originário do capital ou trabalho), em favor do segundo, que lhe fornecerá bens e serviços para uma existência digna e satisfatória em sociedade, deverá o cidadão possuir direitos e amplos mecanismos para participar ativamente, desde a formulação das políticas públicas, passando pelo dispêndio dos recursos, até o controle da execução orçamentária. Esse contexto faz-nos lembrar da célebre frase de Oliver Holmes, Justice da Suprema Corte norte-americana: “I like to pay taxes. With them, I buy civilization.”

Assim, reduzir o Direito Financeiro apenas àquelas normas que regulam as políticas e as operações direcionadas à arrecadação, administração e aplicação de recursos financeiros para satisfazer as necessidades da coletividade é uma forma simplista de estudar esta ciência.

Em tempos de neoconstitucionalismo (RAWLS, John; DWORKIN, Ronald; ALEXY, Robert), em que os valores passam a ter preponderância, é inegável reconhecer a preocupação com a ética, com a moral e com o debate dos direitos humanos fundamentais, sobretudo pela efetivação da sua função social. Servir de instrumento de mudanças positivas para a sociedade, reduzindo as desigualdades sociais, extirpando a miséria da realidade brasileira e alavancando o desenvolvimento da economia, como mola propulsora de um círculo virtuoso, é o objetivo imanente às normas do Direito Financeiro brasileiro moderno.

O conhecimento de todos os elementos jurídicos que envolvem a atividade financeira – competências financeiras, receitas e despesas públicas, técnicas de contabilidade pública, normas orçamentárias e de responsabilidade fiscal – passa a ser de suma importância para qualquer aluno, seja de graduação ou de pós-graduação, nas áreas das ciências sociais, seja em Direito, Administração, Economia ou nas demais disciplinas conexas. É, pela mesma razão, uma ciência indispensável ao operador do Direito ou de Finanças Públicas, responsável por dar efetividade às atividades e às políticas públicas sociais. Mas, sobretudo, são eles que farão chegar ao cidadão brasileiro o conhecimento e a extensão dos seus direitos, para que possam exercer, em sua plenitude, a sua cidadania fiscal.

Arrecadar com justiça, administrar com zelo e gastar com sabedoria são os comandos que subjazem às normas do Direito Financeiro brasileiro.

Acredito no Direito como fundamental instrumento de transformação social, por oferecer ao cidadão os mecanismos necessários para a criação de uma sociedade mais justa e digna. Mas para isso ocorrer, não basta conhecê-lo. É imperioso exercê-lo com sabedoria, aproximando os seus ideais utópicos da nossa realidade fática e telúrica.