CNJ mais moderado

6 de outubro de 2014

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Gilson-DippEx-corregedor do órgão, ministro Gilson Dipp defende mudanças na atuação do Conselho. Prestes a completar 70 anos de idade, ele também fala da sua aposentadoria no STJ e faz um balanço das instituições onde atuou, entre elas a Comissão de Reforma do Código Penal 

Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deve atuar com moderação. É o que defende o ex-corregedor desse órgão nos anos de 2008 e 2009, ministro Gilson Dipp. O ministro afirmou à Revista Justiça & Cidadania que a instituição responsável pela fiscalização e pelo planejamento estratégico do Judiciário brasileiro já mostrou a que veio. E hoje desempenha as funções que lhe foram atribuídas pela Constituição sem grandes questionamentos. Para o ministro, o CNJ deve se focar em aferir a qualidade da prestação jurisdicional.

“A intervenção que houve no início, de certa forma até um pouco maior que o CNJ deveria ou poderia na ocasião, era necessária porque não havia nenhum sistema de coordenação, conhecimento e gestão sobre o Judiciário brasileiro. Hoje, a tarefa está facilitada pelo aperfeiçoamento de todos os tribunais e em todos os setores. Então, a tarefa me parece muito mais de manter a sistematização e supervisão do sistema”, avaliou o ministro.

Vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Dipp prepara-se para deixar a corte na qual atua há 16 anos, em razão da idade limite para a aposentadoria compulsória. Na entrevista, o ministro, que faz 70 anos de idade em outubro, fez um balanço da carreira. Dipp presidiu a Comissão da Reforma do Código Penal, designada pelo Executivo para elaborar o anteprojeto de lei de atualização da norma, e a Comissão Nacional de Verdade. Confira a íntegra da entrevista:

Revista Justiça & Cidadania – Que balanço o senhor faz após 16 anos no Superior Tribunal de Justiça?
Gilson Dipp – O exercício da jurisdição por 16 anos no STJ foi gratificante no sentido de que, como servidor público, assim como todos os meus colegas, prestei um serviço público essencial: a prestação jurisdicional – que no Brasil, graças a Deus, é monopólio do Estado. Procurei sempre, dentro do espírito do colegiado, prestar esse serviço público essencial à cidadania.

Tem alguma decisão em especial que o senhor possa destacar?
– Todas as causas e processos – tanto na Turma como na Seção, na Corte Especial e na Vice-Presidência, neste último fazendo o juízo de admissibilidade dos recursos extraordinários – são importantes para as partes e para o Tribunal, dada a sua natureza para julgar questões de Direito e não de fato. Todas são relevantes. Não distingo aquilo que pôde ter me satisfeito mais intelectualmente daquilo que representa um dever profissional de prestar jurisdição. Tudo o que julguei foi importante para alguém. Portanto, não há nenhum processo que eu possa dizer publicamente que foi mais importante.

A trajetória do senhor foi marcada por ações na área de combate à corrupção. O senhor acha que o Brasil avançou nessa questão?
– Não tenho dúvida. A corrupção é um mal em todos os países. Basicamente é o interesse do privado sobre o público.

Deve ser tratada, portanto, como uma chaga social. São inúmeros os fatores que a evidenciam. Muitas medidas a serem tomadas dependem de um conjunto de fatores, que passam desde o ensino mais fundamental às mais drásticas políticas públicas pelo Estado por meio dos seus Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo. O Brasil avançou: tem hoje uma legislação mais transparente e uma Controladoria-Geral da União que, até o limite do possível e dentro da sua competência, tem trazido nova feição ao acompanhamento da corrupção no serviço público. O Conselho Nacional de Justiça, principalmente por meio da sua Corregedoria, também inovou no que se refere aos processos administrativos disciplinares que envolviam, inclusive, magistrados. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) elaborou uma série de metas, entre as quais a Meta 18 (neste ano, Meta 2) para privilegiar junto aos tribunais o julgamento das ações por improbidade administrativa e das ações penais relativas à responsabilidade do administrador. Temos a novel Lei Anticorrupção que, muito bem intencionada e moderna, dá dimensão nunca antes dada à imputação da responsabilidade da pessoa jurídica objetivamente. Esse é um assunto palpitante. É uma lei nova, moderna, cuja palavra final sobre ela, não tenho dúvida, será dada pelo Judiciário. Temos também a Lei de Acesso à Informação. E os nossos administradores têm sido responsabilizados administrativa, civil e penalmente. Temos processos nos quais houve discussão completa e chegaram com a condenação ou absolvição. Evidentemente ainda há muito o que ser feito. A sociedade ainda respira um ar de impunidade em função de inúmeros fatos que vêm à tona e que dependem de uma apuração mais eficiente. E aí entram todas aquelas questões de ordem probatória, que dizem respeito não só ao processo administrativo, mas principalmente às ações penais e que devem sempre respeitar os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

O senhor afirma que a legislação é avançada. Mas o que dizer da estrutura do Poder Judiciário para julgar os casos com celeridade?
– Temos uma desestrutura que vem desde os meios de investigação, e aí leia-se a Polícia e os demais órgãos institucionais de investigação, entre os quais os do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), das Controladorias-Gerais e do Ministério Público. Há uma gama de fatores que não está funcionando em uma engrenagem azeitada de forma a possibilitar uma decisão – aí no aspecto judicial – célere, eficaz e em prazo razoável. Por isso, o Judiciário não pode esperar tão somente que o Legislativo aperfeiçoe as leis ou que o Executivo lhe destine maior parcela orçamentária. Temos de ter uma gestão dos processos. O juiz tem de distinguir aquilo que deve ser julgado imediatamente daquilo que não precisa ser julgado de imediato, mas, ainda assim, a curto prazo. Há que se fazer certas opções políticas para priorizar alguns tipos de ações em determinado momento. Essa providência do Judiciário pode ser tomada por meio da gestão política dos tribunais, da conscientização do juiz e da supervisão do CNJ.

Na sua passagem pela Corregedoria Nacional de Justiça, o senhor constatou muita corrupção entre os juízes? Ou de fato é só uma minoria que pratica ilícitos?
– A corrupção é um mal que está infiltrado em todas as instituições públicas, sejam elas dos Poderes Executivo e Legislativo, ou mesmo Judiciário. O CNJ avançou muito com relação a essas exceções. Sim, são exceções, mas que não deveriam ocorrer porque quem tem o dever de julgar e prestar a jurisdição não pode praticar atos aéticos e amorais. No Poder Judiciário, a corrupção, quando existente, é mais séria porque fere princípios profundos da estrutura do Estado. Ela atinge um agente político que está, por designação constitucional, apto a prestar a justiça e que não deveria se corromper. Agora que [a corrupção] existe [no Judiciário], existe. Pontualmente, mas muito mais que poderíamos admitir.

O que mais lhe impressionou quando o senhor estava à frente da Corregedoria Nacional de Justiça?
– Primeiro, a total desestrutura administrativa dos tribunais de segundo grau: o pouco orçamento pessimamente apli­cado; a concentração absoluta de cargos de confiança em diversos tribunais, em detrimento do primeiro grau de jurisdição, que é a porta de entrada da sociedade que busca uma solução judicial; a completa falta de sistemas de identificação de processos; atrasos nos concursos públicos para provimento de cargos; a dificuldade para a promoção e remoção de juízes, com muito critério subjetivo e pouca obediência à Loman quanto aos critérios objetivos; o descaso e desinteresse com os cartórios, que estão subordinados às corregedorias; a falta de concurso público para o provimento de cargos nos serviços extrajudiciais relativos ao registro de imóveis, das pessoas naturais e de tabelionato; entre outros. O CNJ, especialmente a Corregedoria, realizou um trabalho de verificação dessas desorientações e de sistematização de políticas públicas para que os tribunais desenvolvessem esse serviço público essencial por meio de procedimentos e normas transparentes, visíveis, palpáveis e republicanas. Foi uma dificuldade, mas também uma oportunidade de observar esses fatos com relação a um Judiciário que todos desconheciam. Claro, além disso, também houve a surpresa, o choque e a comoção diante dos processos administrativos disciplinares por desvios de alguns magistrados.

Como o senhor analisa o trabalho da Corregedoria Nacional de Justiça após a sua saída do órgão?
– Criou-se na Corregedoria certa estrutura e sistemática de trabalho que, no início, envolveu inspeções em todos os tribunais. Também houve um processo de audiências públicas que antecederam todas as inspeções. Então criou-se uma rotina. A Corregedoria não trabalha sozinha. A Corregedoria e o Conselho começaram a funcionar depois dessa estrutura montada. E isso vem sendo feito diuturnamente. Acho que não houve descontinuidade de trabalho, a máquina já estava engrenada. As resistências ao CNJ, e em especial à Corregedoria, foram paulatinamente desmobilizadas e os trabalhos foram, de certa forma, facilitados. Agora, sobre o que penso a respeito do Conselho, como um todo, é que o órgão deve atuar moderadamente. A intervenção que houve no início, de certa forma até um pouco maior do que o CNJ deveria ou poderia na ocasião, era necessária porque não havia nenhum sistema de coordenação, conhecimento e gestão sobre o Judiciário brasileiro. Hoje, a tarefa está facilitada pelo aperfeiçoamento de todos os tribunais em todos os setores. Então, a tarefa hoje me parece muito mais de manter a sistematização e a supervisão do sistema. E mais: metas que determinem e quantifiquem a eficácia de um juiz tão somente pelos números me parece um assunto mais ou menos superado. Hoje, o CNJ tem de buscar além da eficácia e da celeridade do processo, evidentemente em números, a qualidade da prestação jurisdicional. Essa qualidade é medida a partir do grau de satisfação do cidadão com a decisão do Judiciário. No meu entendimento, é essa a nova política que o CNJ deveria ter para o Judiciário, e não ficar atuando como se tivesse de abrir caminhos que de certa forma já foram desbravados.

O senhor também presidiu a Comissão de Reforma do Código Penal. O que pode destacar desse trabalho?
– Pela primeira vez foi formada uma comissão sobre o Código Penal, que é o código de conduta da sociedade e que, como lei ordinária, no meu entendimento, está abaixo tão somente da Constituição brasileira em importância. É o Código Penal que define o que o cidadão pode ou não fazer. É ele também que limita a atuação do Estado na prevenção da aplicação da lei penal em face dos direitos e das garantias do cidadão. Elaborar um novo Código Penal em sete meses, em um colegiado de composição diversificada, nomeado pelo Executivo após indicação do Congresso Nacional, por meio do Senado Federal, e terminar esse trabalho com tantos avanços e propondo a revogação de mais de 100 leis chamadas excepcionais ou extravagantes, que vinham complementando de forma retalhada o Código, é uma espécie de façanha que eu não atribuo nem a mim nem aos meus colegas que trabalharam dentro do prazo, mas a um esforço conjugado de cidadãos para oferecer um anteprojeto de lei, hoje projeto que tramita no Senado Federal. Tivemos de sistematizar, e esse é um grande mérito, todo o direito penal em uma só lei, que é o Código Penal. E mais: possibilitando a criação de tipos penais novos, como a fixação por terrorismo; o enriquecimento ilícito; o aumento das possibilidades do aborto, que ainda continua crime e é uma questão altamente sensível para segmentos sociais, filosóficos e políticos; a questão do uso pessoal de pequenas quantidades de drogas; a responsabilidade penal da pessoa jurídica; a possibilidade de revogação da lei da segurança nacional; a criação de tipos penais para crimes que digam respeito à lesa-humanidade, como o desaparecimento forçado de pessoas, a ocultação de corpos; etc. Esses são assuntos que mexem com a sensibilidade da sociedade. São questões altamente políticas e a Comissão teve coragem de enfrentá-las. Não o fez certamente como se esperaria de uma Comissão apenas de juristas e teóricos do Direito sem prazo definido e sem qualquer tipo de elucubração maior a não ser o compromisso de ter uma lei penal objetiva, séria, doutrinariamente aceitável e juridicamente possível de ser aplicada no território brasileiro, que não é um país, mas um continente. Um Código Penal que possa ser inteligível ao cidadão e possa ser aplicado ao executivo da Avenida Paulista com a mesma sensibilidade e eficácia que ao cidadão ribeirinho.

O senhor tem acompanhado a tramitação do projeto?
– No início sim, quando ainda estava na comissão especial junto à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal. Evidentemente neste ano, por “n” motivos, inclusive as eleições, o projeto parece que não teve a mesma celeridade dos primeiros momentos. Mas, constantemente somos convocados a esclarecer para essa comissão especial alguns aspectos polêmicos e demais questões que colocamos. É um acompanhamento mais de esclarecimento técnico do que jurídico.

O senhor também coordenava a Comissão da Verdade. O que o senhor pode destacar desse trabalho?
– A Comissão Nacional da Verdade foi criada por lei ordinária. É uma instituição estatal. Não é um ente de governo, mas uma comissão de Estado. Muitos não se dão conta disso e não a valorizam como uma comissão de Estado. Essa comissão não tem fins persecutórios, nem judiciais. Ela foi criada para esclarecer e averiguar todas as graves lesões aos Direitos Humanos cometidas no período de 1946 a 1988. Esclarecer os fatos e as circunstâncias dessas graves lesões para que se possa formar uma memória nacional, restabelecer a verdade histórica com relação a esses fatos e possibilitar a reconciliação nacional, é isso o que diz a lei. Reconciliação nacional não quer dizer que os parentes de vítimas ou os torturados irão abraçar aqueles agentes públicos que praticaram atos desumanos. A reconciliação nacional será no sentido de que o Estado, ao fim do trabalho da Comissão, deverá assumir a sua culpa por atos praticados pelo próprio Estado, atos esses execráveis, que foram praticados por determinado governo dentro do Estado brasileiro. Essa é a missão da Comissão. Na verdade, eu não participo da Comissão da Verdade desde setembro de 2012 por questões de saúde. Depois, ao me restabelecer, achei que não era o momento de integrá-la novamente porque já havia decorrido um prazo muito grande. Mas, permaneço formalmente como integrante da Comissão, pois meu lugar não foi substituído.

Quais são seus planos para depois da aposentadoria?
– Nunca fiz plano nenhum para a minha trajetória. Nunca pensei em ser juiz na minha vida. Era advogado quando criaram os Tribunais Regionais Federais. Eu já tinha 20 anos de carreira em Porto Alegre quando me atentaram para a possibilidade de concorrer a uma vaga destinada aos advogados na Corte. Depois de muitos terem me perguntado, disse que nunca havia pensado e que não moveria uma palha para isso. Bom, os fatos aconteceram e eu vim a integrar o TRF da 4a Região. Quatro anos depois eu já era presidente da Corte. Em 1998, fui para o Superior Tribunal de Justiça sem pensar em ir para lá. Naquele tempo podia-se ir para o STJ sem pensar em ir, sem fazer campanha. Nunca pensei em exercer cargo na Comissão da Verdade, muito menos em presidir a Comissão do Código Penal, muito menos ir para a Corregedoria Nacional de Justiça, pois tinham quatro nomes anteriores ao meu para exercer esse cargo por antiguidade. Em todos eles, de certa forma, fui pego de surpresa. Então, se me perguntarem se eu tenho algum plano [para depois da aposentadoria], responderei que talvez no aspecto acadêmico, junto a organismos internacionais com os quais tive muito contato. Tive a oportunidade de ter contato fora da magistratura com esses entes governamentais, do Executivo e do Legislativo, assim como com entidades internacionais, e isso me possibilitou visão mais genérica não somente sobre o Judiciário brasileiro, mas sobre o Estado, o País, o cidadão, as desigualdades sociais, a distribuição de renda e a carência e dificuldade de acesso ao Judiciário. Não tenho, porém, planos pré-definidos sobre o que posso ou não fazer depois da aposentadoria.