Edição 13
Colisão dos direitos fundamentais: liberdade de expressão e comunicação e direito à honra e à imagem
20 de março de 2001
Membro do Conselho Editorial e Ministro do STF
Muito se tem discutido entre nos sobre os Iimites de liberdade de imprensa e da Iiberdade artistica em relaçao aos direitos de personalidade, especialmente em relaçao ao direito a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem.
Afirma-se, muitas vezes de forma categorica, que, tendo a Constituiçao estabelecido a proibiçao de censura, nao poderia a autoridade publica, no caso, orgao do Poder Judiciario, intervir para evitar a divulgaçao de noticias ou obra artistica Iesiva aos direitos de personalidade de qualquer cidadao. Sustentase que, nesse caso, eventual abuso haveria de resolver-se em perdas e danos.
Significa dizer que, apos a violaçao do direito tido pela Constituiçao como inviolavel, podera o eventual atingido pedir a reparaçao pela lesao sofrida.
Diante dos termos peremptorios em que se encontra formulado o art. 5°, X, da Constituiçao – sao inviolaveis a intimidade, a vida privada, a honra e imagem das pessoas ( .. ) -, parece evidente que o constituinte nao pretendeu assegurar apenas eventual direito de reparaçao ao eventual atingido. A referencia que consta da parte final do dispositivo – assegurado o direito a indenizaçao pelo dano material ou moral decorrente de sua violaçao – somente pode dizer respeito aos casos em que nao foi posslvel obstar a divulgaçao ou a publicaçao da materia lesiva aos direitos da personalidade.
Esse entendimento mostra-se tao evidentemente correto que mais parece a enunciaçao de um truismo. Que, como diria o Conselheiro Acacio, aquilo que e inviolavel nao pode ser violado.
Mais, ainda. Se a Constituiçao assegura nao so a inviolabilidade do direito, mas tambem a efetiva proteçao judiciaria contra lesao ou ameaça de lesao a direito (CF, art. 5°, XXXV), nao poderia o judiciario intervir para obstar a configuraçao da ofensa definitiva, que acaba acarretando danos efetivamente irreparaveis? Que significaria a garantia de proteçao judiciaria efetiva contra lesao ou ameaça de lesao a direito se a intervençao somente pudesse se dar apos a configuraçao da lesao? Pouco, certamente, muito pouco!
Nao e verdade, ademais, que o constituinte concebeu a liberdade de expressao como direito absoluto, insuscetivel de restriçao, seja pelo Judiciario, seja pelo Legislativo. Ja a formula constante do art. 220 da Constituiçao explicita que “a manifestaçao de pensamento, a criaçao, a expressao e a informaçao, sob qualquer forma, processo ou veículo nao sofrerao qualquer restriçao, observado o disposto nesta Constituiçao”.
E facil ver, pois, que o texto constitucional nao excluiu a possibilidade de que se introduzissem limitaçoes a liberdade de expressão e de comunicação, estabelecendo, expressamente, que o exercício dessas Iiberdades haveria de se fazer com observancia do disposto na Constituiçao. Nao poderia ser outra a orientaçao do constituinte, pois, do contrario, outros valores, igualmente relevantes, quedariam esvaziados diante de um direito avassalador, absoluto e insuscetivel de restriçao.
Mais expressiva, ainda, parece ser, no que tange a Iiberdade de informaçao jornalística, a clausula contida no art. 220, § 1°, segundo a qual “nenhuma lei contera dispositivo que possa constituir embaraço a plena Iiberdade de informaçao jornalística em qualquer veiculo de comunicaçao social, observado o disposto no art. 5°, IV, V X, XIII e XIV”.
Como se ve, a formulaçao aparentemente negativa contem, em verdade, uma autorizaçao para o legislador disciplinar o exercício da liberdade de imprensa, tendo em vista sobretudo a proibiçao do anonimato, a outorga do direito de resposta e a inviolabilidade da intimidade da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. Do contrario, nao haveria razao para que se mencionassem expressamente esses principios como limites para o exercicio da liberdade de imprensa.
Tem-se, pois, aqui expressa a reserva legal qualificada, que autoriza o estabelecimento de restriçao a liberdade de imprensa com vistas a preservar outros direitos individuais, nao menos significativos, como os direitos da personalidade em geral.
Essas colocaçoes hao de servir, pelo menos, para demonstrar que o tema nao pode ser tratado da maneira simplista ou ate mesmo simploria como vem sendo apresenta· do, ate por alguns juristas.
Como se ve, ha uma inevitavel tensao na relaçao entre a liberdade de expressao e de comunicaçao, de um lado, e os direitos da personalidade constitucionalmente protegidos, de outro, que pode gerar uma situaçao conflituosa, a chamada colisao de direitos fundamentais (Grundrechtskollision).
E fecunda a jurisprudencia da Corte Constitucional alema sobre o assunto, especialmente no que se refere ao conflito entre a liberdade de imprensa ou a Iiberdade artistica e os direitos da personalidade, como o direito a honra e a imagem. Ressalte-se, ainda, que, tal como o ordenamento constitucional brasileiro, a Lei Fundamental de Bonn proibe, expressamente, a censura a imprensa (LF, art. 5, I).
A proposito da problematica, mencionem-se duas decisoes importantes proferidas pela Corte Constitucional alema.
Na decisao de 24 de fevereiro de 1971, relativa a publicaçao do romance Mephisto, o Klaus Mann, reconheceu-se o conflito entre o direito de liberdade artistica e os direitos de personalidade enquanto derivaçoes do principio da dignidade humana. O filho adotivo do falecido ator e diretor de teatro Gustaf Grondgen postulou perante a justiça estadual de Hamburgo a proibiçao da publicaçao do romance Mephisto com o argumento de que se cuidava de uma biografia depreciativa e injuriosa da memoria de Grondgen, caricaturado no romance na figura de Hendrik Hofgen. O tribunal estadual de Hamburgo julgou improcedente a açao. O romance foi publicado em setembro de 1965 com uma advertencia aos leitores, assinada por Klaus Mann, afirmando que “todas as pessoas deste Iivro sao tipos, nao retratos de personalidade” (“Aile Personen dieses Buchs stellen Typen dar, nicht Portråts”. K.M.).
Com fundamento em uma medida liminar deferida pelo Tribunal Superior de Hamburgo, acrescentou-se a publicaçao uma advertencia aos leitores na qual se enfatizava que, embora constassem referencias a pessoas, as personagens haviam sido conformadas, fundamentalmente, pela “fantasia poetica do autor” (dichterische Phantashie des Verfassers).
Posteriormente, concedeu o Tribunal o pedido de proibiçao da publicaçao, tanto com fundamento nos direitos subsistentes de personalidade do falecido teatrologo, quanto em direito autonomo do filho adotivo. Como o publico dificilmente poderia distinguir entre poesia e realidade, sendo mesmo levado a identificar na personagem Hofgen a figura de Grondgen, nao havia como deixar de reconhecer o conteudo injurioso das afirmaçoes contidas na obra. O direito de liberdade artistica nao teria precedencia sobre os demais direitos, devendo, por isso, o juizo de ponderaçao entre a liberdade artística e os direitos de personalidade ser decidido, na especie, em favor do autor.
O Supremo Tribunal Federal (Bundesgerichtshof) rejeitou a revisao interposta sob a alegaçao de que o direito de liberdade artística encontra limite imanente (imannente Begrenzung) no direito de personalidade assegurado constitucionalmente. Esses limites sao violados se, a pretexto de descrever a vida ou a conduta de determinada pessoas, se atribui a elas pratica de atos negativos absolutamente estranhos a sua biografia, sem que se possa afirmar, com segurança, que se cuida, simplesmente, de uma imagem hiperbolica ou satirica.
A editora-recorrente sustentou na Verfassungsbeschwerde impetrada que as decisoes dos Tribunais violavam os artigos 1, 2, I, 5,I e III,14 (direito de propriedade) e 103, I, todos da Lei Fundamental, bem como os postulados da proporcionalidade e da segurança juridica.
O Tribunal Constitucional reconheceu que a descriçao da realidade integra o ambito de proteçao do direito de liberdade artistica, isto e, a chamada arte engajada nao estaria fora da proteçao outorgada pelo art. 5, III, da Lei Fundamental.
A ementa do acordao fornece boa síntese dos fundamentos da decisao:
“N° 16
1. Art 5, III, 1 ° periodo da Lei Fundamental representa uma norma basica da relaçao entre o Estado e o meio artistico. Ele assegura, igualmente, um direito individual.
2. A garantia da Iiberdade artistica abrange nao so a atividade artistica, como a apresentaçao e a divulgaçao das obras de arte.
3. Q direito de liberdade artística protege tambem o editor.
4. A liberdade artística não se aplicam nem a restriçao do art. 5°, II, nem aquela contida no art. 2, I, 2° período.
5. Um conflito entre a liberdade artistica e o âmbito do direito de personalidade garantido constitucionalmente deve ser resolvido com fulcro na ordem de valores estabelecida pela Lei Fundamental; nesse sentido, ha de ser considerada, particularmente, a garantia da inviolabilidade do principio da dignidade humana consagrada no art. 1, I” (Decisao da Corte Constitucional, vol. 30, p. 173).
Reconheceu-se, pois, que, embora nao houvesse reserva legal expressa, o direito de liberdade artistica nao fora assegurado de forma ilimitada. A garantia dessa Iiberdade, como a de outras constitucionalmente asseguradas nao poderia desconsiderar a concepçao humana que balizou a Lei Fundamental, isto e, a ideia de homem como personalidade responsavel pelo seu proprio destino, que se desenvolve dentro da comunidade social.
O nao-estabelecimento de expressa reserva legal ao direito de liberdade artistica significava que eventuais limitações deveriam decorrer, diretamente, do texto constitucional. Enquanto elemento integrante do sistema de valores dos direitos individuais, o direito de liberdade artistica estava subordinado ao principio da dignidade humana (LF, art. 1), que, como principio supremo, estabelece as linhas gerais para os demais direitos individuais. O modelo de ser humano, pressuposto pelo art. 1, I, da Lei Fundamental, conformaria a garantia constitucional de liberdade artística, bem como esta seria influenciada, diretamente, pela concepçao axiologica contida no art. 1, I.
No caso em apreço, considerou-se que os tribunais não procederam a uma aferiçao arbitraria dos interesses em conflito, mas, ao reves, procuraram avaliar, de forma cuidadosa, os valores colidentes, contemplando, inclusive a possibilidade de determinar uma proibiçao limitada do romance (publicaçao com esclarecimento obrigatorio).
Contemple-se, por derradeiro, o chamado “caso Lebach”, de 5 de junho 1973, no qual se discutiu problematica concernente a Iiberdade de imprensa face aos direitos de personalidade. Cuidava-se de pedido de medida Iiminar formulado perante tribunais ordinarios por um dos envolvidos em grave homicidio – conhecido o “assassinato de soldados de Lebach” – Der Soldatenmord von Lebach – contra a divulgaçao de filme, pelo Segundo Canal de Televisao (Zweites Deutsches Fernsehen – ZDF), sob a alegaçao de que, alem de lesar os seus direitos de personalidade, a divulgaçao do filme, no qual era citado nominalmente, dificultava a sua ressocializaçao. O Tribunal estadual de Mainz e, posteriormente, o Tribunal Superior de Koblenz nao acolheram o pedido de liminar, entendendo, fundamentalmente, que o envolvimento no crime fez que o impetrante se tornasse uma personalidade da historia recente e que o filme fora concebido como um documentario destinado a apresentar o caso sem qualquer alteraçao.
Eventual conflito entre a liberdade de imprensa, estabelecida no art. 5, I, da Lei Fundamental, e os direitos de personalidade do impetrante, principalmente o direito de ressocializaçao, haveria de ser decidido em favor da divulgaçao da materia, que correspondia ao direito de informaçao sobre tema de inequivoco interesse publico.
O recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde) foi interposto sob alegaçao de ofensa aos artigos. 1, I (inviolabiIidade da dignidade humana), e 2, I, ( …. ) da Lei Fundamental.
A Corte Constitucional apos examinar o documentario e assegurar o direito de manifestaçao do Ministerio da Justiça, em nome do Governo Federal, do Segundo Canal de Televisao, do Governo do Estado da Renânia do Norte-Vestfália, a proposito do eventual processo de ressocializaçao do impetrante na sua cidade natal, do Conselho Alemao de lmprensa, da Associaçao Alema de Editores, e ouvir especialistas em execuçao penal, psicologia social e comunicaçao, deferiu a medida postulada, proibindo a divulgaçao do filme, ate a decisao do processo principal, se dele constasse referencia expressa ao nome do impetrante.
Ressaltou o Tribunal que, ao contrario da expressao literal da lei, o direito a imagem nao se limitava a propria imagem, mas tambem as representações de pessoas com a utilizaçao de atores.
Considerou, inicialmente, o Tribunal que os valores constitucionais em conflito (liberdade de comunicaçao e os direitos personalidade) configuram elementos essenciais da ordem democratico-liberal (freiheitlich demokratische Ordnung) estabelecida pela Lei Fundamental, de modo que nenhum deles deve ser considerado, em principio, superior ao outro. Na impossibilidade de uma compatibilizaçao dos interesses conflitantes, tinha-se de contemplar qual haveria de ceder lugar, no caso concreto, para permitir uma adequada soluçao da colisao.
Em apertada síntese, concluiu a Corte Constitucional:
“Para a atual divulgaçao de notícias sobre crimes graves tem o interesse de informaçao da opiniao publica, em geral, precedencia sobre a proteçao da personalidade do agente delituoso. Todavia, alem de considerar a intangibilidade da esfera intima, tem-se que levar em conta sempre o princípio da proporcionalidade. Por isso, nem sempre se afigura legitima a designaçao do autor do crime ou a divulgaçao de fotos ou imagens ou outros elementos que permitam a sua identificaçao.
A proteçao da personalidade nao autoriza que a Televisao se ocupe, fora do ambito do noticiario sobre a atualidade, com a pessoa e a esfera intima do autor de um crime, ainda que sob a forma de documentario.
A divulgaçao posterior de notícias sobre o fato 13, em todo caso, ilegitima, se se mostrar apta a provocar danos graves ou adicionais ao autor, especialmente se dificultar a sua reintegraçao na sociedade. E de se presumir que um programa, que identifica o autor de fato delituoso pouco antes da concessao de seu livramento condicional ou mesmo apos a sua soltura, ameaça seriamente o seu processo de reintegraçao social’.
No processo de ponderaçao desenvolvido para solucionar o conflito de direitos individuais nao se deve atribuir primazia absoluta a um ou a outro principio ou direito. Ao reves, esforça-se o Tribunal para assegura a aplicaçao das normas conflitantes, ainda que, no caso concreto, uma delas sofra atenuaçao. É o que se verificou na decisao acima referida, na qual restou integro o direto de noticiar sobre fatos criminosos, ainda que submetida a eventuais restrições exigida pela proteçao do direito de personalidade.
Como demonstrado, a Constituiçao brasileira, tal como a Constituiçao alema, conferiu significado especial aos direitos da personalidade, consagrando o principio da dignidade humana como postulado essencial ordem constitucional, estabelecendo a inviolabilidade do direito a honra e a privacidade fixando que a liberdade de expressao e de informaçao haveria de observar o disposto na Constituição, especialmente o estabelecido no art. 5°, X.
Portanto, tal como no direito alema afigura-se legítima a outorga de tutela judicial contra a violaçao dos direitos de personalidade, especialmente do direito à honra e à imagem, ameaçados pelo exercício abusivo da Iiberdade de expressao e de informação.