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Competência para autorizar o trabalho do menor: Justiça Comum Estadual ou Justiça do Trabalho?

16 de fevereiro de 2017

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Dulcilene Simões Rosa Alves de Moura Marcelo Antonio de Oliveira Alves de Moura1. Introdução

O movimento de proclamação da elevação de certos e determinados direitos a fundamentais é um fenômeno do nosso século. Contudo, antes mesmo de se qualificar como direito fundamental, o Direito do Trabalho surge como necessidade de proteção do trabalhador em razão da exploração do trabalho humano, fruto do regime capitalista.

A intervenção do Estado se fez sentir na elaboração de normas de proteção ao trabalho, em especial de regulação do trabalho do menor e da mulher, por serem os mais explorados na sociedade burguesa. Neste compasso, a Inglaterra, cujas conquistas sociais estavam à frente dos demais países da Europa, concebeu a primeira lei trabalhista de que se tem notícia: Moral and Health Act, de 1802, que fixava a jornada de 12 horas de trabalho para crianças e proibia-lhes o trabalho noturno[1].

As iniciativas de proteção ao trabalho do menor, sempre relacionadas à idade para trabalhar, se espalharam em experiências legislativas por toda a Europa até atingirem, finalmente, o Brasil.

Na Europa, merecem destaque os seguintes marcos: França, em 1874, jornada de 12 horas para o menor de 16 anos e de 6 horas para os menores entre 10 e 12 anos; Alemanha, em 1835 e 1839, jornada de 10 horas para os menores entre 9 e 16 anos; Itália, em 1886 e 1902, com destaque para esta última que, além de proibir o trabalho noturno para o menor de 15 anos, limitou o trabalho dos menores entre 12 e 15 anos a 11 horas[2].

O Brasil foi o primeiro país da América Latina a estabelecer limites ao trabalho do menor.

Inicialmente com disposições meramente formais, descumpridas na prática, por falta de regulamentação e fiscalização, como são exemplos as de 1891, Decreto n. 1.313, e o Decreto Municipal do Rio de Janeiro, de n. 1.801, em 11 de agosto de 1917. O primeiro estatuto jurídico a realmente interferir neste quadro de exploração da mão de obra infantil no Brasil foi o Código de Menores, aprovado pelo Decreto n. 17.943-A/1927. Neste código o Capítulo IX, especificamente sobre o trabalho de menores, proibiu o trabalho noturno aos menores de 18 anos e qualquer trabalho para os menores de 12 anos, restrição esta que perdurou por muitos anos, até a redação da EC n. 20/1998, que fixou a idade mínima para o trabalho em 14 anos, mesmo assim na condição de aprendiz.[3]

Todas as Constituições Republicanas do Brasil, à exceção da de 1891, passaram a restringir o trabalho do menor, até a atual, de 1988, que proíbe seu trabalho no horário noturno, em condições de insalubridade e periculosidade e qualquer tipo de trabalho para o menor de 16 anos, salvo como aprendiz a partir de 14 anos (art. 7o, XXXIII, da CF)[4].

A legislação infraconstitucional seguiu o mesmo sentido da proteção constitucional. A Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-lei no 5.452, de 1.5.1943, conta com um capítulo específico de proteção do trabalho do menor (Capítulo IV, artigo 402 a 441).

As proibições previstas na legislação estrangeira e nas Constituições do Brasil também aparecem na CLT.

Todavia, o texto da CLT, ainda que preveja uma série de proibições ao trabalho do menor com vistas a preservar sua higidez física, mental e psicológica (art. 405 da CLT), permite que a autoridade competente em matéria do trabalho autorize o trabalho do menor, mesmo nas circunstâncias vedadas pelo ordenamento jurídico brasileiro, conforme art. 406, da CLT.

A Consolidação das Leis do Trabalho representa o arcabouço mínimo de normas de proteção ao trabalho e seu Capítulo IV, em especial, cuida das normas de proteção ao trabalho do menor, nos artigos 402 a 441. Este capítulo já foi inúmeras vezes alterado, mas a redação dos artigos 405 e 406, que cuidam, respectivamente, da proibição do trabalho do menor, e da autorização para seu trabalho em circunstâncias excepcionais, são ainda da redação do Decreto-lei no 229, de 28.3.1967.

Sendo assim, a autorização para o menor trabalhar deve ser concedida com base nas circunstâncias previstas na CLT, artigos 405 e 406, que foram escritos na vigência da Constituição de 1967? Tais artigos ainda preservam sua constitucionalidade diante da ordem constitucional vigente, de 1988? A autoridade que deve conceder a autorização deve se basear na CLT, ou na Constituição de 1988, como também no Estatuto da Criança e do Adolescente? O Juiz da Infância e da Juventude é a autoridade competente para conceder a autorização para o menor trabalhar, ou o Juiz do Trabalho tem tal competência?

Estas são as perguntas a serem respondidas.

O trabalho do menor em um país de dimensões continentais, como o Brasil, se reveste de características muito próprias em cada região do território nacional. A proibição para o trabalho noturno, insalubre, perigoso, prejudicial à saúde, física ou psicológica, do menor de 18 anos, deve ser respeitada e protegida por todas as autoridades e pela própria sociedade. São cláusulas legais de proteção do futuro de uma geração. Não é à toa que as proteções ao menor foram alçadas à categoria de norma constitucional, conforme art. 7o, XXXIII, da CF.

Por essas razões, somente circunstâncias excepcionais podem permitir que se autorize o trabalho do menor.

Diversos tratados internacionais intencionam proteger o menor, em especial tratados internacionais em matéria trabalhista.

No âmbito nacional a CLT, a Constituição da República e o ECA convivem como fontes normativas nessa matéria, mas nem sempre de maneira harmônica.

O art. 406, caput, da CLT, diz, claramente, que o “O Juiz de Menores poderá autorizar ao menor o trabalho a que se referem as letras “a” e “b” do § 3o do art. 405”. Contudo, trata-se de norma que não pode ser interpretada isoladamente, e, tampouco, fora do contexto atual.

Na atualidade, a atribuição de julgar os conflitos em matéria trabalhista, de forma ampla, é da Justiça do Trabalho, por força do art. 114, I, da CF, com redação da EC no 45/2004.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, aprovado pela Lei no 8.069/90, prevê, em seus artigos 148 e 149, competência civil para assuntos alheios ao trabalho.

Sendo assim, a análise do órgão competente para apreciar o pedido de autorização para trabalho do menor deve levar em consideração todos esses aspectos.

2. Competência do Juiz da Infância e da Juventude: legislação infraconstitucional

O menor necessita requerer em juízo, em determinadas circunstâncias, autorização para trabalhar e, a nosso ver, sendo da Justiça do Trabalho a competência para julgar os conflitos decorrentes desta relação de trabalho, seja ou não de emprego, também deve ser deste órgão a competência para autorização do trabalho deste mesmo menor, como será demonstrado a seguir.

A legislação trabalhista contém algumas proibições quanto ao trabalho do menor de 18 anos, como se percebe da redação do art. 405 da CLT:

Art. 405. Ao menor não será permitido o trabalho:

I – nos locais e serviços perigosos ou insalubres, constantes de quadro para esse fim aprovado pelo Diretor Geral do Departamento de Segurança e Higiene do Trabalho;

II – em locais ou serviços prejudiciais à sua moralidade.

§ 1o – Revogado pela Lei 10.097, de 19.12.2000

§ 2oO trabalho exercido nas ruas, praças e outros logradouros dependerá de prévia autorização do Juiz de Menores, ao qual cabe verificar se a ocupação é indispensável à sua própria subsistência ou a de seus pais, avós ou irmãos e se dessa ocupação não poderá advir prejuízo à sua formação moral. (Grifamos)

§ 3o – Considera-se prejudicial à moralidade do menor o trabalho:

a) prestado de qualquer modo, em teatros de revista, cinemas, boates, cassinos, cabarés, dancings e estabelecimentos análogos;

b) em empresas circenses, em funções de acrobata, saltimbanco, ginasta e outras semelhantes;

c) de produção, composição, entrega ou venda de escritos, impressos, cartazes, desenhos, gravuras, pinturas, emblemas, imagens e quaisquer outros objetos que possam, a juízo da autoridade competente, prejudicar sua formação moral;

d) consistente na venda, a varejo, de bebidas alcoólicas.

§ 4o – Nas localidades em que existirem, oficialmente reconhecidas, instituições destinadas ao amparo dos menores jornaleiros, só aos que se encontrem sob o patrocínio dessas entidades será outorgada a autorização do trabalho a que alude o § 2o.

§ 5o – Aplica-se ao menor o disposto no art. 390 e seu Parágrafo único.

Quanto à autorização para o trabalho do menor, conforme texto acima grifado, o art. 406 da CLT possui disposição no mesmo sentido:

Art. 406. O Juiz de Menores poderá autorizar ao menor o trabalho a que se referem as letras “a” e “b” do § 3o do art. 405:

I – desde que a representação tenha fim educativo ou a peça de que participe não possa ser prejudicial à sua formação moral;

II – desde que se certifique ser a ocupação do menor indispensável à própria subsistência ou à de seus pais, avós ou irmãos e não advir nenhum prejuízo à sua formação moral. (Grifamos)

A proibição de trabalho em ambientes que prejudiquem a formação moral, física e psíquica do trabalhador menor, são as justificativas dos artigos acima transcritos.

A Lei no 8.069/90, em seu artigo 67, também veda o trabalho do menor em locais que prejudiquem seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social, bem como os horários e locais que impeçam a frequência escolar.

Não é propriamente o local que irá definir o grau de prejudicialidade à formação do menor, mas sim as atividades ali exercidas e o ambiente de trabalho. Como lembra Sergio Pinto Martins, em cinemas pode-se complementar a formação educacional do menor (Comentários, 2010, p. 344).

Parece-nos que não havendo qualquer prejuízo para a formação moral, psicológica ou física do menor, devem ser interpretadas de forma relativa as proibições acima referidas.

O Juiz de Menores referido no art. 405, § 2o, é o atual Juiz da Infância e da Juventude, denominação instituída pelo ECA. A autorização pode ser concedida para trabalho com vínculo de emprego ou não. Trata-se de procedimento de jurisdição voluntária, cuja competência atribuída ao Juiz da Infância e da Juventude tem a função de tutelar o interesse do menor.

A autorização para trabalho do menor (art. 406), nas condições deste artigo, não dependerá somente da necessidade de subsistência da família ou fim educativo da apresentação/espetáculo, como prevê a literalidade da norma referida. Tal autorização também poderá ser concedida se o trabalho em peças ou espetáculos tiver um fim profissional que não conflite com sua formação moral (artistas).

3. Competência do Juiz do Trabalho: previsão constitucional

A interpretação segundo a qual é o Juiz de Menores, atual Juiz da Infância e da Juventude, o competente para autorizar o trabalho do menor, decorre da literalidade das normas acima transcritas. Não é essa, contudo, a interpretação que deve prevalecer após a EC 45 de 2004, que alterou a competência da Justiça do Trabalho, pelo menos na nossa opinião.

Prevê o art. 114, I e IX, da CF:

Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar

I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; (Redação de acordo com EC no 45/2004).

IX – outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei. (Incluído pela Emenda Constitucional no 45, de 2004)

O Juiz do Trabalho, órgão de primeiro grau de jurisdição trabalhista, é competente para dirimir os conflitos decorrentes do trabalho, conforme prevê o art. 652, IV, da CLT:

Art. 652. Compete às Juntas de Conciliação e Julgamento:

a) conciliar e julgar:

IV – os demais dissídios concernentes ao contrato individual de trabalho.

Assim sendo, não é compatível com o sistema de fixação de competência previsto na Constituição da República que um juízo seja competente para autorizar o trabalho (Juízo da Infância e Juventude) e outro (Juiz do Trabalho) seja competente para apreciar os conflitos decorrentes deste mesmo trabalho.

A harmonização do sistema processual só pode se dar com a unificação da competência em um único órgão, qual seja, o Juiz do Trabalho. Neste sentido, inclusive, artigo doutrinário subscrito pelos Ministros do TST Lelio Bentes, Kátia Arruda, e pelo Juiz do Trabalho José Roberto Oliva, reconhecendo que se o Juiz do Trabalho tem competência para apreciar conflitos como: (i) pedido de reconhecimento do vínculo de emprego; (ii) dano moral decorrente da relação de trabalho (art. 114, VI, da CF); (iii) cobrança de multa por infração à ordem jurídico-trabalhista; (iv) cobrança de contribuições previdenciárias decorrentes deste trabalho do menor (art. 114, VIII, da CF), dentre outras, não faz sentido que esta mesma justiça não tenha competência para autorizar o trabalho do menor. Nas palavras dos autores:

Ora, se em quaisquer destas hipóteses e até mesmo em outras não divisadas, será o Juiz do Trabalho o competente para instruir e julgar eventual ação ajuizada, não há explicação plausível para que as autorizações de trabalho que originaram tais efeitos tenham sido dadas por quem não poderá apreciá-las, não sendo razoável a competência do Juiz da Infância e da Juventude.[5]

Esta é a posição que defendemos.

4. Os atos normativos conferindo competência à Justiça do Trabalho

Em diversos Estados do País os Tribunais Regionais do Trabalho firmaram recomendações conjuntas com os Tribunais de Justiça dos respectivos Estados atribuindo à Justiça do Trabalho e, especificamente ao Juiz do Trabalho, como órgão de primeiro grau de jurisdição, a competência para apreciar o pedido de autorização do trabalho do menor nas circunstâncias proibidas por lei, conforme art. 405 da CLT.

São exemplos destes atos conjuntos, também com a participação do Ministério Público, aqueles firmados nos Estados de São Paulo (Recomendação Conjunta no 1 de 2014) e Mato Grosso (Recomendação Conjunta no 1 de 2014).

Por ser a primeira, merece transcrição a recomendação de São Paulo, firmada nos seguintes termos:

Dispõe sobre a competência da Justiça do Trabalho e da Justiça Estadual da Infância e da Juventude no caso de pedido de autorização para trabalho, inclusive artístico e desportivo, de crianças e adolescentes.

A Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a Corregedoria Regional do Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região, a Corregedoria Regional do Trabalho da Décima Quinta Região, a Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o Ministério Público do Estado de São Paulo, o Ministério Público do Trabalho da Segunda Região e o Ministério Público do Trabalho da Décima Quinta Região, no exercício de suas atribuições legais,

CONSIDERANDO as reiteradas dúvidas surgidas sobre a competência para apreciação dos pedidos de autorização para trabalho infanto-juvenil, inclusive artístico e desportivo,

RESOLVEM:

RECOMENDAR aos Juízes de Direito da Infância e da Juventude, aos Juízes do Trabalho da Segunda e da Décima Quinta Região e aos Membros do Ministério Público Estadual e do Ministério Público do Trabalho da Segunda e da Décima Quinta Região, que tomem como diretriz, para efeito de competência:

I – As causas que tenham como fulcro os direitos fundamentais da criança e do adolescente e sua proteção integral, nos termos da Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, inserem-se no âmbito da competência dos Juízes de Direito da Infância e da Juventude;

II – As causas que tenham como fulcro a autorização para trabalho de crianças e adolescentes, inclusive artístico e desportivo, e outras questões conexas derivadas dessas relações de trabalho, debatidas em ações individuais e coletivas, inserem-se no âmbito da competência dos Juízes do Trabalho, nos termos do art. 114, incisos I e IX, da Constituição da República.

São Paulo, 4 de dezembro de 2014.

Como se percebe do teor da recomendação acima, houve, de forma clara, acolhimento da tese que ora defendemos.

5. A posição do Superior Tribunal de Justiça

Não obstante a posição por nós defendida, somos forçados a concluir que a posição do STJ é conservadora e se posiciona favoravelmente à competência da Justiça Comum Estadual para apreciar o pedido de autorização do menor para o trabalho, como se percebe das ementas a seguir transcritas.

STJ – CONFLITO DE COMPETÊNCIA CC 98033 MG 2008/0174696-9 (STJ)

Data de publicação: 24/11/2008

Ementa: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA ESTADUAL E DO TRABALHO. ALVARÁ JUDICIAL. AUTORIZAÇÃO PARA TRABALHO DE MENOR DE IDADE. 1. O pedido de alvará para autorização de trabalho a menor de idade é de conteúdo nitidamente civil e se enquadra no procedimento de jurisdição voluntária, inexistindo debate sobre qualquer controvérsia decorrente de relação de trabalho, até porque a relação de trabalho somente será instaurada após a autorização judicial pretendida. 2. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito, suscitado.

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA COMUM ESTADUAL E JUSTIÇA DO TRABALHO. ALVARÁ JUDICIAL. AUTORIZAÇÃO PARA TRABALHO DE MENOR DE IDADE. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM ESTADUAL.

1. Cuida-se de conflito negativo de competência instaurado entre o Juízo da 3a Vara do Trabalho de Santos/SP, suscitante, e o Juízo de Direito da Vara da Infância e da Juventude e do Idoso de Santos/SP, suscitado, nos autos de requerimento para autorização do trabalho de menor, como professor de dança, requerido pelo Ministério Público do Estado de São Paulo.

O Juízo de Direito da Vara da Infância e da Juventude e do Idoso de Santos declinou da competência para uma das Varas da Justiça do Trabalho, por entender que, “com a revogação do art. 402 e seguintes da CLT, pela Convenção 138/78, da OIT, a competência para autorização de trabalho de menor passou a ser da justiça obreira, ao Juiz da Infância cabe apenas alvará nos casos do art. 149, do ECA” (fl. 10). (6.4.2011).

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA ESTADUAL E DO TRABALHO. ALVARÁ JUDICIAL. AUTORIZAÇÃO PARA TRABALHO DE MENOR DE IDADE.

1. O pedido de alvará para autorização de trabalho a menor de idade é de conteúdo nitidamente civil e se enquadra no procedimento de jurisdição voluntária, inexistindo debate sobre qualquer controvérsia decorrente de relação de trabalho, até porque a relação de trabalho somente será instaurada após a autorização judicial pretendida.

2. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito, suscitado.

(CC 98.033/MG, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 12/11/2008, DJe 24/11/2008).

6. A posição do Supremo Tribunal Federal

Diante das recomendações conjuntas atribuindo competência à Justiça do Trabalho, a ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMISSORAS DE RÁDIO E TELEVISÃO – ABERT propôs ADI, autuada sob o no 5326.

Na ação, a entidade questiona as Recomendações Conjuntas 01/2014-SP e 01/2014-MT, bem como o Ato GP 19/2013 e o Provimento GP/CR 07/2014, que, segundo a ABERT, atribuíram indevidamente nova competência à Justiça do Trabalho, em detrimento da Justiça Comum Estadual. Trata-se da competência para processar e julgar “causas que tenham como fulcro a autorização para trabalho de crianças e adolescentes, inclusive artístico”.

Até o momento, votaram a favor da concessão da liminar requerida na ADI, com o intuito de suspender a eficácia das referidas recomendações, os Ministros Marco Aurélio, relator, e Edson Fachin.

Em seu voto, o ministro Marco Aurélio concluiu que os atos normativos questionados padecem de inconstitucionalidade formal e material. Quanto à inconstitucionalidade formal, o relator ressaltou que os dispositivos tratam da distribuição de competência jurisdicional e da criação de juízo auxiliar da Infância e da Juventude no âmbito da Justiça do Trabalho, porém não foram produzidos mediante lei ordinária. Com base nos artigos 22, inciso I, 113 e 114, inciso IX, da Constituição Federal, o ministro Marco Aurélio observou que tais medidas estão sujeitas, inequivocamente, ao princípio da legalidade estrita.

O relator destacou a existência de inconstitucionalidade material em razão da circunstância de ter sido estabelecida competência da Justiça do Trabalho sem respaldo na Constituição Federal. “Não há dúvida quanto à obrigatoriedade dos pedidos de autorização para crianças e adolescentes atuarem em eventos artísticos serem submetidos a juízos da Infância e da Juventude. A questão é definir se devem ser juízos próprios da Justiça comum ou se podem ser os criados no âmbito da Justiça do Trabalho”, observou.

Ao citar parecer da jurista Ada Pellegrini Grinover juntado aos autos, o ministro considerou que a competência para a matéria é da Justiça comum. Segundo o parecer, o legislador – quando estabeleceu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – previu a Justiça da Infância e da Juventude e determinou que fosse o juiz da Infância e da Juventude a autoridade judiciária responsável pelos processos de tutela integral dos menores. “Trata-se, portanto, de ramo especializado da Justiça comum”, acrescentou o relator.

Ainda com base no parecer, o ministro salientou que a participação de crianças e adolescentes em representações artísticas deve ser examinada harmonicamente com os direitos à saúde, educação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, liberdade e convivência familiar dos menores. O relator ressaltou que, no caso, “cuida-se de uma avaliação holística a ser realizada pelo juízo competente, considerados diversos aspectos da vida da criança e do adolescente. Deve o juiz investigar se a participação artística coloca em risco o adequado desenvolvimento do menor em especial os que compõem o núcleo concessão”.

O ministro Marco Aurélio avaliou, ainda, que aspectos contratuais poderão gerar controvérsias de índole trabalhista a serem solucionadas no âmbito da Justiça do Trabalho. Contudo, explicou que o procedimento para autorização se trata de atividade de jurisdição voluntária, “de natureza eminentemente civil, envolvida tutela tão somente do adequado desenvolvimento social e cultural do menor”.

O ministro Edson Fachin seguiu integralmente o voto do relator. A Ministra Rosa Weber pediu vista e o julgamento se encontra suspenso. (http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=297497, capturado em 15.11.2016). Ao menos até este momento, se pode afirmar que o STF é favorável a manter a competência da Justiça Estadual, até que lei própria trate do assunto.

Após a suspensão do julgamento e atendendo a requerimento do autor da ação, o Relator, Ministro Marco Aurélio, em decisão monocrática proferida em 14/8/2015 (DJE no 165, divulgado em 21/8/2015), suspendeu os efeitos dos atos normativos questionados, mantendo com a Justiça Comum Estadual a competência para apreciar o pedido de autorização de trabalho artístico do menor, nos seguintes termos:

“Convencido da urgência da apreciação do tema, defiro a liminar pleiteada tal como o fiz no dispositivo do voto proferido: Diante do exposto, admito a ação direta de inconstitucionalidade e voto no sentido de implementar a medida acauteladora, para suspender, até o exame definitivo deste processo, a eficácia da expressão “inclusive artístico”, constante do inciso II da Recomendação Conjunta no 1/14 e do artigo 1o, inciso II, da Recomendação Conjunta no 1/14, bem como para afastar a atribuição, definida no Ato GP no 19/2013 e no Provimento GP/CR no 07/2014, quanto à apreciação de pedidos de alvará visando a participação de crianças e adolescentes em representações artísticas e a criação do Juizado Especial na Justiça do Trabalho, ficando suspensos, por consequência, esses últimos preceitos. Ao fim, neste primeiro exame, assento ser da Justiça Comum a competência para analisar tais pedidos.” (http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=5326&classe=ADI&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M, capturado em 20.11.2016).

Destaque-se o julgamento liminar que suspendeu, parcialmente, a eficácia dos atos normativos da Justiça do Trabalho o fez tão somente quanto ao “trabalho artístico”, nos exatos limites do pedido formulado na ADI[6] e diante da legitimidade da autora da ação (ABERT), que só poderia ter formulado pedido que guardasse pertinência temática com seus Estatutos e com sua representação. O ministro Marco Aurélio poderia ter estendido os efeitos da liminar para todo o ato normativo, uma vez que não se observa o princípio da congruência na ADI, mas não o fez. Consequentemente, continuam válidos e eficazes os atos normativos da Justiça do Trabalho quanto à autorização para o trabalho infanto-juvenil, com única exceção para o trabalho artístico.

7. Conclusões

a) Todas as Constituições Republicanas do Brasil, à exceção da de 1891, passaram a restringir o trabalho do menor, até a atual, de 1988, que proíbe seu trabalho no horário noturno, em condições de insalubridade e periculosidade e qualquer tipo de trabalho para o menor de 16 anos, salvo como aprendiz a partir de 14 anos (art. 7o, XXXIII, da CF).

b) A legislação infraconstitucional também protege o menor, privilegiando sua formação, proibindo qualquer trabalho que possa prejudicar sua formação física ou moral, como se observa da prescrição do art. 405 da CLT, como também do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90, art. 60 e seguintes).

c) Excepcionalmente, e para atender ao interesse exclusivo do menor, a legislação infraconstitucional autoriza seu trabalho mesmo nas condições proibidas, entregando ao Judiciário a competência para esta autorização.

d) O art. 406, caput, da CLT, diz, claramente, que o “O Juiz de Menores poderá autorizar ao menor o trabalho a que se referem as letras “a” e “b” do § 3o do art. 405”. Portanto, segundo o texto da CLT, o Juiz de Menores (atual Juiz da Infância e da Juventude) terá competência para apreciar o pedido de autorização de trabalho do menor nas circunstâncias que, em tese, possam ser prejudiciais à sua formação física, mental ou psicológica.

e) Após a EC no 45/2004, com clara ampliação da competência da Justiça do Trabalho, parte considerável da doutrina e jurisprudência trabalhista passou a considerar se inserir na competência da Justiça do Trabalho o exame do pedido de autorização para trabalho do menor, diante da interpretação conferida ao art. 114, incisos I e IX, da CF.

f) Não obstante a posição em favor da Justiça do Trabalho, o E. STJ, mesmo em julgamentos posteriores à EC no 45/2004, manteve o entendimento de que só a Justiça Comum Estadual, por intermédio do Juiz da Infância e da Juventude, pode autorizar o trabalho do menor nas circunstâncias proibidas por lei.

g) Considerando-se o viés interpretativo em favor da Justiça do Trabalho, alguns Tribunais de Justiça, em conjunto com Tribunais Regionais do Trabalho e com participação do Ministério Público, firmaram recomendações conjuntas para fixar a competência da Justiça do Trabalho para apreciar o pedido de autorização do trabalho do menor nas circunstâncias proibidas por lei.

h) A propagação de recomendações no Brasil, no sentido de atribuir competência à Justiça do Trabalho para autorizar o trabalho do menor, fez com que a ABERT propusesse ADI, autuada sob o no 5.326, questionando a constitucionalidade das Recomendações Conjuntas 01/2014-SP e 01/2014-MT, bem como o Ato GP 19/2013 e o Provimento GP/CR 07/2014, Em favor da declaração de inconstitucionalidade dos atos normativos referidos já votaram o Relator, Ministro Marco Aurélio, e o Ministro Edson Fachin, pedindo vista a Ministra Rosa Weber, conforme julgamento de 12/8/2015.

i) Até o momento as recomendações referidas estão com suas eficácias suspensas parcialmente, no que concerne ao trabalho artístico, conforme decisão liminar do Ministro Marco Aurélio, relator da ADI no 5.326, de 14/8/2015 (DJE no 165, divulgado em 21/8/2015).

j) Não obstante o STF tenda a se inclinar pela inconstitucionalidade dos atos normativos que atribuem competência à Justiça do Trabalho, o tema ainda não foi decidido definitivamente. A posição do STF sobre o tema, em julgamento definitivo a ser proferido na ADI no 5.326, poderá ou não abranger todas as circunstâncias do trabalho infanto-juvenil. Por ora, contudo, somente o trabalho artístico tem sua competência definida, diante da decisão liminar proferida pelo Ministro Marco Aurélio nos autos do processo referido:

“Quanto à apreciação de pedidos de alvará visando a participação de crianças e adolescentes em representações artísticas e a criação do Juizado Especial na Justiça do Trabalho, ficando suspensos, por consequência, esses últimos preceitos. Ao fim, neste primeiro exame, assento ser da Justiça Comum a competência para analisar tais pedidos. ” (ADI no 5.326, de 14/8/2015, DJE no 165, divulgado em 21/8/2015).

k) Ainda que se possa apostar no resultado definitivo do julgamento da ADI no 5.326 em favor da competência da Justiça Comum Estadual, continuamos a crer que a melhor forma de manter a uniformidade de entendimentos quanto ao tema seja atribuir a competência à Justiça do Trabalho, que, em última análise, será a competente para dirimir os conflitos decorrentes do trabalho infanto-juvenil, inclusive interrompendo a prestação de serviços que não favorecer a formação do menor.

l) O melhor caminho para a solução deste conflito, longe dos casuísmos típicos das decisões judiciais, será a definição da competência pela via legislativa, com aprovação, pelo procedimento próprio, de lei regulamentando o trabalho do menor e a competência do órgão para autorizá-lo.

m) A omissão do legislador vem cedendo espaço para interpretações como a objeto deste trabalho, causando enorme insegurança jurídica para aqueles que lidam com o dia a dia do trabalho do menor.

n) Qualquer que seja a decisão tomada, legislativa ou judicial, o interesse do menor deve ser preservado, tornando-se exceção a autorização para seu trabalho, diferentemente do que vem ocorrendo atualmente.

 

Notas_______________________________________

1 SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2011, v. I., p.160.

2 BARROS, Alice Monteiro de. Contratos e regulamentações especiais de trabalho: peculiaridades, aspectos controvertidos e tendências. 3. ed. São Paulo: LTr, 2008, p. 305-307.

3 SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas. Instituições de direito do trabalho. 10. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1987, v. II, p. 875-878, apud Marcelo Moura, cit., p. 687-688.

4 A redação originária da Constituição de 1988, quando de sua promulgação em 5.10.1988, proibia qualquer trabalho do menor de 14 anos, salvo na condição e aprendiz aos 12 anos.

5O Juiz do Trabalho e a competência para autorizações do trabalho artístico de crianças e adolescentes, in Criança e Trabalho: da Exploração à Educação. Pastous Nocchi, Marcos Neves Fava, Lelio Bentes Correa, coordenação. São Paulo: LTr, 2015, p. 181.

6http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=4781750, capturado em 20.11.2016.

 

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