Edição

Condomínio de fato – Agoniza, mas não morre

24 de janeiro de 2018

Compartilhe:

condomínio de fato é uma realidade social na qual há uma união de moradores com objetivos afins e que buscam privatizar de modo relativo áreas públicas com o objetivo de suprir deficiências na prestação de serviço público nas áreas da segurança, lazer e limpeza, dentre outras. Para atingir tal desiderato, os interessados se cotizam a fim de que tais necessidades sejam supridas mediante a contribuição de associados. Não se trata de condomínio de direito pelo motivo óbvio de que a área comum não é de titularidade dos condôminos, mas sim um bem público de uso comum do povo.

Sob o ponto de vista da dogmática clássica tal figura teria muita dificuldade de obter reconhecimento judicial. Podemos apontar o óbice da inexistência de posse sobre bem público de uso comum do povo, na inviabilidade de se obstar o direito de ir e vir de qualquer cidadão nos espaços públicos do condomínio de fato, a característica da taxatividade que é tão marcante no âmbito dos direitos reais, sem falar na dificuldade de se impor a contribuição, uma vez que somente a lei pode instituir tributos e taxas e, como cediço, a Constituição assegura ao cidadão o direito de não se associar nem permanecer associado (art. 5o, XX).

Contudo, o fato é que há várias décadas essa realidade se tornou frequente, notadamente, nos grandes centros urbanos. A tal ponto que mesmo o operador do direito mais atento tem dificuldades fáticas em identificar diante do caso concreto se a situação apresentada como condomínio de casas é um loteamento antigo ou mesmo uma rua sem saída ou se é um condomínio de direito.

Enquanto ainda existia grande controvérsia doutrinária sobre o tema, mas a jurisprudência pendia para a admissão do condomínio de fato fundada, principalmente, na vedação ao enriquecimento sem causa daqueles que não contribuem, mas tem o seu patrimônio valorizado, o Órgão ­Especial do TJRJ em 2005 aprovou com o significativo quórum de 17 votos a 1 o verbete no 79 com os seguintes dizeres: “Em respeito ao princípio que veda o enriquecimento sem causa, as associações de moradores podem exigir dos não associados, em igualdade de condições com os associados, que concorram para o custeio dos serviços por elas efetivamente prestados e que sejam do interesse comum dos moradores da localidade.”

A despeito de continuarmos concordando com o conteúdo do aludido verbete, desde que esteja efetivamente provada a prestação de serviços de natureza indivisível como segurança, limpeza e lazer em razão da vedação ao enriquecimento sem causa e, na maioria das vezes, na própria vedação ao procedimento contraditório (venire contra factum proprium), o fato é que a partir de decisões dos tribunais superiores, a jurisprudência predominante nos tribunais estaduais tem sido no sentido de que é incabível a cobrança em razão da liberdade de associação prevista no artigo 5o, XX, da Constituição Federal.

Em 20/9/2011, no julgamento do Recurso Extraordinário no 432106/RJ, tendo como relator o Ministro Marco Aurélio de Mello, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, por ­unanimidade, considerou indevida a cobrança por ofensa ao princípio da legalidade e da liberdade de associação (Informativo no 641/STF).

Essa decisão da excelsa Corte parece ter pacificado também a orientação do Superior Tribunal de Justiça que no julgamento dos Embargos de Divergência no 444.931/SP, também já acenara no sentido da impossibilidade de se exigir pagamento de cotas de manutenção no chamado condomínio de fato. Contudo, a polêmica àquela época ainda era muito grande nessa Corte, tendo votado vencido os Ministros Carlos Alberto Direito e Fernando Gonçalves, cujo trecho de seu voto esclarece bem o cerne da controvérsia: “O proprietário de unidade em loteamento está obrigado a concorrer no rateio das despesas de melhoramentos que beneficiam a todos, ainda que não faça parte da associação, dado que, além de usufruir das benfeitorias comuns e dos serviços prestados e custeados pelos vizinhos, tem valorizado o seu patrimônio”.

Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a vedação à obrigatoriedade do pagamento da cota no condomínio de fato já se encontra pacificada. Isso porque acabou sendo definida, por maioria, vencidos os Ministros Moura Ribeiro e Ricardo Villas Bôas Cueva, pela técnica do julgamento de recursos repetitivos, no qual restou fixada a seguinte tese: “As taxas de manutenção criadas por associações de moradores não obrigam os não associados ou que a elas não anuíram”. (REsp 1.280871/SP, Segunda Seção, Rel. Min. Marco Buzzi, julg. em 11/03/2015).

Agora, resta saber se na dinâmica da vida real, os condomínios de fato deixaram de existir por força da encimada determinação judicial. A resposta é negativa. Não chegou a nosso conhecimento a extinção de ­nenhum condomínio de fato após a fixação da aludida tese pelo colendo Superior Tribunal de Justiça. O que houve foi um lamentável fomento da inadimplência, levando a que os associados adimplentes ­paguem mais do que devem.

Entretanto, com a inclusão do artigo 36-A (lei 13.465/17) da lei 6.766/79 que cuida dos loteamentos urbanos restou positivado expressamente o condomínio de fato, prescrevendo a referida norma ser possível juridicamente a existência de associações de proprietários de imóveis em ­loteamentos ou assemelhados com o propósito de administração, conservação, manutenção e disciplina da utilização e convivência dos moradores. No parágrafo único do citado artigo é afirmado com muita clareza que a administração dos imóveis nos moldes associativos sujeita os titulares de imóveis à normatização e à disciplina constantes de seus atos constitutivos, cotizando-se na forma desses atos para suportar a consecução dos seus objetivos. Na mesma senda, a lei 13.465/17 incluiu o § 8o no artigo 2o da lei 6766/79 o que denominou de loteamento de acesso controlado, sendo aquele em que o acesso será “regulamentado por ato do poder público Municipal, sendo vedado o impedimento de acesso a pedestres ou a condutores de veículos, não residentes, devidamente identificados ou cadastrados.” 

Com efeito, os atuais artigos 2o, § 8o e 36-A, da lei 6766/79 com a redação dada pela lei 13.465, de 11 de julho de 2017 parecem não deixar dúvidas acerca do retorno ao ordenamento jurídico do condomínio de fato com todas as suas implicações jurídicas, atingindo aqueles que participaram de sua formação, assim como outros adquirentes que adquiriram a sua unidade depois da instituição do condomínio de fato.

O Supremo Tribunal Federal irá reconhecer a inconstitucionalidade do novel regramento? Cremos que não, pois não se está afirmando que a pessoa é obrigada a associar-se, mas sim que o interesse da coletividade no tocante à funcionalização da propriedade deve prevalecer e que não é lícito o enriquecimento sem causa (art. 884, CC) que se dará com o gozo das benesses condominiais sem a devida contraprestação. Eventuais abusos na cobrança como, por exemplo, inexistência de contraprestação, hão de ser identificadas pelos tribunais estaduais a quem compete aferir no mundo dos fatos a seriedade ou não dos condomínios de fato.

É por isso que aproveitamos para lembrar o notável artista Nelson Sargento que falava do samba algo que hoje se aplica também ao condomínio de fato, pois este também “agoniza, mas não morre.”. No caso do samba é fundamental que assim seja pelo seu valor artístico e cultural ao passo que com relação ao condomínio de fato o ideal é que um dia inexista tal figura pela assunção efetiva por parte do Poder Público de suas atribuições constitucionais, as quais a sociedade faz jus em contrapartida à intensa tributação que sofre.

Concluindo, entendemos, com a devida vênia das opiniões em contrário, não ser conveniente nem oportuno negar, por ora, a juridicidade do condomínio de fato.