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Conselhos e outros órgãos judicantes: um novo eixo de poder?

27 de março de 2013

Professor Titular de Direito Administrativo da Escola de Direito da FGV Direito Rio

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Tem sido suscitado o questionamento, inclusive por meio de ações populares, sobre o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, órgão colegiado paritário do Ministério da Fazenda, ser ou não a última instância nos conflitos entre contribuintes e o fisco federal. A questão mais sensível se resume em ser definido se as suas decisões judicantes podem ou não ser objeto de questionamento pela Procuradoria da Fazenda Nacional – PGFN.

O CARF não tem autonomia por força constitucional. Foi criado pela Medida Provisória nº 449, de 2008, convertida na Lei nº 11.941, de 27 de maio de 2009. O Conselho é formado por representantes da Fazenda Nacional, escolhidos dentre os nomes constantes de listas tríplices elaboradas pela Secretaria da Receita Federal do Brasil. Também é composto por representantes dos contribuintes dentre os nomes constantes de listas tríplices elaboradas pelas confederações representativas de categorias econômicas de nível nacional e pelas centrais sindicais.

Por sua vez, a PGFN é órgão de direção superior da Advocacia-Geral da União. Suas competências concentram a representação da União em causas fiscais, a cobrança judicial e administrativa dos créditos tributários e não-tributários e o assessoramento e consultoria no âmbito do Ministério da Fazenda.

A situação, portanto, que envolve órgãos federais do Ministério da Fazenda, gera certa confusão institucional e dificulta a compreensão acerca da atual estrutura fiscal do Estado pela sociedade. Além da insegurança jurídica sentida por agentes públicos e pelo setor econômico, também provoca dúvida sobre a atual estruturação do Poder Executivo, composto por órgãos diversos da Presidência da República, que, por vezes, representam a última instância decisória.

Para tentar esclarecer a questão é necessário examinar a estruturação do Estado moderno. As funções clássicas do Estado brasileiro dividem-se em Legislativo, Executivo e Judiciário. Foram inspiradas nos moldes preconizados na obra de Montesquieu, sendo fracionadas em órgãos públicos (desconcentração) e em entidades (descentralização).

Na desconcentração, os órgãos públicos classificam-se como órgãos independentes, órgãos autônomos, órgãos superiores e órgãos subalternos. Quanto à descentralização, dividem-se em autarquia, sociedade de economia mista, empresa pública, fundações e consórcios públicos.

Tradicionalmente, o Brasil republicano adotou o modelo tripartite, assim está dito no art. 2º, da Constituição Federal de 1988: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Contudo, a Constituição Federal de 1988 não estruturou, exatamente, o Estado Brasileiro em apenas três “poderes”.

E isso não ocorreu somente no Brasil. A realidade político-institucional e social da segunda metade do século XX apresentou-se muito mais complexa em relação à época de Montesquieu. Muitas instituições que hoje existem em grande parte dos ordenamentos ocidentais são dificilmente enquadráveis em alguns dos três clássicos poderes quanto à vinculação estrutural e hierárquica1.

Essa mudança é sensível a partir do início da década de 80, assistindo-se a um movimento de desintegração, que se traduz pela diversificação crescente das estruturas administrativas. A ordem burocrática, fundada sobre a hierarquização, é desestabilizada pela proliferação de estruturas de um novo tipo, colocadas fora do aparelho de gestão clássico e escapando ao poder de hierarquia. “A figura pós-moderna de rede tende a partir daí a se substituir àquela da pirâmide”2.

A carta cidadã de 1988 trouxe, de forma objetiva, órgãos públicos independentes dos três poderes (ou funções) clássicos. Contudo, além daqueles que estruturam as funções inerentes à legislação, à administração e à jurisdição (v.g. a Chefia dos Poderes Executivos, nos três níveis da federação), atualmente, são órgãos públicos independentes, por força do texto constitucional, o Ministério Público e o Tribunal de Contas da União.

Ambos são órgãos independentes. Na Constituição Federal ambos têm definidas as suas competências e não estão subordinados, hierarquicamente, a qualquer outro órgão.

Além de órgãos independentes, criados pela Constituição Federal de 1988 – e que não se inserem na teoria tripartite – para melhor realizar o feixe de atribuições regulatórias da atividade econômica e social que lhe foi conferido pela Constituição de 1988 o Estado vem instituindo, por lei, outras entidades. São exemplos a Comissão de Valores Mobiliários – CVM, as Agências Reguladoras, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica e, no caso, o CARF.

O CARF, portanto, se enquadra nessa nova fase da Administração Pública policêntrica, em rede. Criado por lei – não estruturado na Constituição Federal – esse órgão surge no âmbito de um movimento de descentralização administrativa (e, não, mera desconcentração).

Diante desse fato, surge a seguinte indagação: qual deve ser o formato desses entes (natureza jurídica) para a estruturação da nova administração em rede? A resposta é de que não há um modelo original, único.

Algumas atividades demandam personalidade jurídica de Direito Público, como no caso do CARF, da CVM e das Agências Reguladoras; outras não, como no caso do Operador Nacional do Sistema Elétrico – ONS. Deve-se, contudo evidenciar que a característica comum de serem dotados de ampla autonomia administrativa pelo afastamento das burocracias típicas da administração direta, relativo isolamento de suas atividades em relação à arena político-partidária e representarem a última instância decisória.

Como dito, a característica estrutural de rede (não piramidal), não encontra detalhamento na Carta Constitucional de 1988; nem por isso, deve ser compreendida como sendo ilegítima. Decorre do movimento globalizante que impõe certas transformações do Estado e do Direito.

Para além do debate quanto à atuação da PGFN nas ações populares impetradas contra o CARF, impõe-se a compreensão de sua atuação nessa nova fase do Estado brasileiro que, a cada dia, está sendo levado a criação de novos atores públicos e paraestatais, capazes de colaborar nos freios e contrapesos necessários à contenção do poder e do arbítrio.

Notas _______________________________________________________________________________

1 MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 120.

2 CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 99.