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Consequências práticas sobre a nova interpretação no STF para o foro privilegiado

20 de julho de 2017

Desembargador do TJMG e coordenador da Escola Nacional da Magistratura

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Doorgal Borges de Andrada

O Supremo Tribunal Federal começou a discutir uma nova interpretação para aplicação do foro por prerrogativa de função – o foro privilegiado – de um modo mais restritivo, retirando os crimes comuns cometidos por parlamentares, magistrados, membros do MP, ministros de estado, governadores, etc.

Alguns pontos negativos advirão dessa mudança. Primeiramente é de se ressaltar que o “foro por hierarquia da função” existe por razões históricas, sociológicas, jurídicas e filosóficas, e não é uma invenção brasileira, mas fruto de uma evolução jurídica ao longo de séculos na Europa, onde, aliás, todos os 28 países praticam o foro especial de forma ampla, como de resto todos países da América do Sul. Ainda agora o Ministério Público francês está a solicitar do Parlamento Europeu sediado em Estrasburgo autorização para poder processar criminalmente a conhecida deputada Marine Le Pen. Além do foro privilegiado o parlamentar na Europa também tem imunidade parlamentar.

Outros argumentam que o Supremo não possui estrutura material e já conta quase 500 processos criminais sobre foro privilegiado. Cada ministro tem então cerca de 45 processos. Ocorre que, com a restrição ao foro os processos dos crimes comuns cometidos pelas autoridades irão para a 1a instância onde as varas criminais estão com mais de 3 ou 4 mil processos, cabendo depois inúmeros recursos. A morosidade será bem maior que no STF. Ora, quantos juízes de direito também desejam – como o STF discute – diminuir o serviço e o número de processos sobre suas mesas? Devem ser milhares … Aliás, o juízo federal de Curitiba-PR que julga a “Lava Jato” foi obrigado a paralisar todo o seu trabalho para ficar por conta daquele processo e recebe ajuda de vários juízes-cooperadores.

Quanto a alegada necessidade de alteração porque “todos somos iguais perante a lei” parece ser uma argumentação sem consistência jurídica. Sempre somos julgados igualmente pela mesma lei, pois respondemos igualmente pelos crimes previstos no mesmo código penal, pela mesma lei do direito de família, as mesmas regras do direito de propriedade, a mesma CLT, etc. , seja o processo iniciado nos Tribunais, seja no foro da justiça federal, ou, mesmo no STF.

A prevalecer esse entendimento equivocado de falta de igualdade ante a diferença da competência, então, talvez, até teríamos que extinguir – por exemplo, toda a Justiça Federal: ora, por que o homicídio cometido por servidor público federal pode ser julgado no Tribunal do júri na justiça federal, e não no Tribunal do júri da justiça comum? Seria isso uma desigualdade? Evidente que não. Do contrário, a própria competência originária do STF não poderia existir, afinal, tudo e todos teriam que ser julgados sempre e apenas pelo juiz de 1o grau da justiça comum.

Essa novel alteração nos levará a fatos curiosos: os magistrados dos Tribunais poderão ser denunciados pelo Promotor de Justiça da comarca de qualquer cidade e citado para lá ser interrogado. E, caso venha a ser condenado pelo juiz local a uma pena maior que dois anos de prisão ou detenção (em regime aberto ou sursis) perderá o cargo de ministro, seja do STF, STJ, TST, STM, TSE, os desembargadores, membros do MP estadual ou federal – o PGR – deputados, senadores, governadores, etc. Se alguns cidadãos se sentirem ofendidos ou difamados por um discurso ou entrevista concedida pelas autoridades acima, poderão processá-las em diversas cidades ao mesmo tempo, oferecendo queixas-crime e/ou com abertura de inquéritos policiais.

Juízes irão julgar os promotores de justiça que atuam na mesma comarca. Os promotores de justiça terão poder para denunciar juízes da comarca, desembargadores, ministros, etc. O delegado de polícia da comarca poderá requerer a prisão do juiz ou do promotor com quem trabalha. Tudo bem próprio de uma anarquia hierárquica. No interior do país, um policial que tenha antipatia por um juiz, promotor, desembargador ou ministro, ou que seja desafeto político-ideológico de um deputado, governador ou senador, poderá encontrar razões para legalmente dar voz de prisão em flagrante delito, inúmeras vezes, para aquelas pessoas.

Por analogia, essa inversão jurídica da hierarquia funcional (competência) poderá contaminar e se estender à administração pública – direito administrativo disciplinar – com grandes novidades: o modesto funcionário de repartição pública terá direito a abrir um processo administrativo e aplicar pena no seu Superior; o agente de polícia civil poderá presidir procedimento administrativo e punir o Chefe de Polícia; o Tenente da PM (ou do Exército) terá direito a aplicar punição administrativa num Major ou General, e, o chefe da garagem do BNDES abrirá investigação administrativa contra o Diretor do banco.

Neste momento tormentoso por que passa o país, não seria desejável nem razoável que o STF viesse a  abandonar o ônus/incômodo de julgar plenamente os homens poderosos da República. O direito é também uma luta pela implantação da paz social, por uma sociedade justa, feliz, organizada, igualitária, com progresso, porém, isso jamais deve ser cedido ou confundido com anarquismo administrativo, o populismo jurídico e a submissão de magistrados aos desejos da mídia leiga.

Sobre esse “foro especial abrasileirado” (foro privilegiado restrito), se de fato for criado ofendendo toda a história universal da evolução do direito constitucional dos países que adotam a Civil Law, pergunta-se: o juiz de uma vara única com o promotor de justiça, numa cidade carente e pobre numa remota comarca – por exemplo – quase incomunicável do interior dos grandes estados do Centro Oeste, do Nordeste, ou da Amazônia, a conviver com elevado índice de mortes por “encomenda” e tristes cenas de “matadores de aluguel”, etc…, terá melhores recursos materiais ou maior força político-institucional, maior presença e apoio da polícia federal ou estadual, sofrerá menor pressão … do que os membros do STF, para julgar um governador do Estado, um ministro de Estado, um Procurador, um senador da República ou um empresário milionário que supostamente mandou invadir e furtar centenas de cabeças de gado, numa atuação junto com maus políticos poderosos? Essa proposta de mudança discutida no STF será melhor para o país?