Considerações sobre o federalismo brasileiro

20 de setembro de 2013

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Enrique Ricardo LewandowskiExistem basicamente duas formas de Estado, do ponto de vista estrutural: os Estados unitários e os Estados compostos. Os primeiros apresentam um único centro de impulsão política e governamental, ou seja, não possuem divisões internas. As circunscrições territoriais em que se dividem são, no máximo, dotadas de autonomia administrativa, como na França, por exemplo. Nesse tipo de Estado, os cidadãos submetem-se a um só governo e a uma só lei.

Essa estrutura, em geral, é adotada em Estados de pequenas dimensões – seja do ponto de vista demográfico, seja do territorial – e, ainda, naqueles que apresentam uma relativa homogeneidade étnica ou cultural.

Já os Estados compostos – e aqui serão examinados apenas os federais – subdividem-se em unidades política e administrativamente autônomas. Eles resultam, como regra, da união de dois ou mais Estados, ou, excepcionalmente, do desmembramento de Estados unitários, como ocorreu no caso brasileiro.

A federação é um fenômeno novo historicamente. Surgiu da união provisória das treze ex-colônias britânicas na América do Norte, que se transformaram em Estados soberanos depois de 1776. Após se libertarem do jugo colonial, elas se associaram definitivamente, mediante a adição de uma constituição comum, em 1787, momento em que surgiu um novo Estado, a partir da fusão dos entes políticos que a subscreveram.

Não se confunde com uma confederação, que é uma união precária de Estados, para fins econômicos ou militares, e que tem como base jurídica um tratado de direito internacional. Uma federação (termo que vem do latim foedus, foederisi) consiste em uma união permanente e indissolúvel de entes políticos (estados, províncias, Länder, cantões, etc.), não admite a secessão, e tem como elo uma constituição comum.

Trata-se de uma forma de Estado que assegura a seus membros as vantagens da unidade, preservando os benefícios da diversidade. Tendo em conta tais características, depois da experiência norte-americana, vários países adotaram a fórmula federativa. Em geral, países de grande expressão territorial e demográfica ou aqueles dotados de considerável diversidade étnica, cultural, religiosa, etc.

Inicialmente, a estrutura federal foi escolhida como fórmula para melhor administrar a diversidade, dentro da unidade. Mas, depois, ela passou a ser adotada como um instrumento para o aperfeiçoamento da democracia, ensejando não só a desconcentração do poder político, como também uma maior proximidade do povo com os governantes.

Apesar das múltiplas diferenças entre os vários Estados federais, todos eles asseguram aos entes políticos que os integram pelo menos quatro prerrogativas básicas: (i) autonomia política e administrativa; (ii) uma esfera de competências privativa; (iii) um conjunto de rendas próprias; e (iv) a participação nas decisões da União (comumente por meio do Senado). É importante sublinhar, aqui, que as autonomias política e administrativa e o exercício de competências próprias – na realidade, encargos – nada significam sem a atribuição de rendas suficientes.

O Brasil, como já se disse acima, adotou a estrutura federal na Constituição de 1891, quando se substituiu a monarquia pela república, inspirando-se os seus elaboradores no modelo desenvolvido nos Estados Unidos da América. A federação brasileira, porém, segundo os especialistas, padece de um “pecado original”: em vez de ter nascido, como nos EUA, de uma união de Estados soberanos, surgiu a partir do desmembramento de um Estado unitário. Com efeito, os atuais estados – na verdade, antigas províncias imperiais, despidas de poder político e de autonomia – tiveram de contentar-se, em 1891, com as competências e as rendas que lhes foram então atribuídas.

Mas é interessante notar que a federação brasileira, historicamente, passou por um “movimento pendular”. Passou por momentos de enorme concentração de competências e rendas ao nível da União e outros de grande desconcentração de poderes em favor dos estados e municípios.

De fato, quando se adotou tal modelo em nossa primeira Constituição republicana, o federalismo brasileiro apresentou tamanho grau de desconcentração que alguns políticos e intelectuais temeram o esfacelamento do país. Alguns estados autodenominavam-se “soberanos”, legislavam sobre comércio interestadual, celebravam tratados internacionais, mantinham legações diplomáticas, contraíam dívidas externas sem autorização do Congresso Nacional, etc.

Com a Reforma Constitucional de 1926, no entanto, o pêndulo federativo oscilou no sentido da centralização, ampliando-se os poderes de intervenção da União nos estados, para colocar termo aos abusos neles verifi­cados. E, com a Revolução Modernizadora de 1930, o federalismo brasileiro aprofundou esse movimento centrípeto, pois o governo central concentrou todos os poderes em suas mãos, passando a governar os estados por meio de interventores federais.

Por força, sobretudo, da Revolução Constitucionalista de 1932, que eclodiu em São Paulo, promulgou-se a Constituição de 1934, que retornou, em linhas gerais, ao regime anterior à 1930 no que tange à autonomia dos estados. Mas ela subsistiu por apenas três anos, revogada que foi pela Carta imposta ao povo por Getúlio Vargas em 1937.

Essa Carta instituiu o denominado “Estado Novo”, inspirado no fascismo europeu, permitindo que Vargas governasse mediante decretos e por intermédio de interventores nomeados para os estados. Esse regime autoritário durou até 1946, quando se promulgou quiçá a mais democrática das constituições brasileiras. Ela não apenas restaurou a autonomia dos entes federados, como também restabeleceu o equilíbrio entre os poderes e promoveu a eleição direta para todos os cargos da república.

Com o golpe político-militar de 1964, o pêndulo do federalismo voltou a oscilar no sentido da centralização. A Carta de 1967 e a EC no 1/69 levaram a uma extraordinária centralização, concentrando, na prática, todos os poderes nas mãos da União. Atribuiu-se a ela a competência para legislar sobre quase todo o direito material e adjetivo, inclusive por meio de decretos-leis.

Ademais, governadores, senadores “biônicos”, prefeitos das capitais, de estâncias turísticas e de municípios considerados de “segurança nacional” eram indicados indiretamente, por processos espúrios. E, da renda nacional, apenas algumas migalhas eram destinadas aos estados e municípios, que foram reduzidos à penúria extrema.

Com o processo de redemocratização do país, que culminou com a adoção da Constituição de 1988, o movimento pendular moveu-se novamente no sentido da descentralização. Entre as mudanças mais significativas por ela introduzidas, figura a ampliação da competência concorrente dos estados e do Distrito Federal. Outra foi a elevação do município à categoria de ente federativo (art. 1o da CF), conferindo-lhe a faculdade para elaborar a própria Lei Orgânica. Além disso, redistribuiu-se o “bolo tributário” nacional, incrementando-se as receitas dos entes federados, quer pela atribuição de novos impostos, quer pelo aumento de sua fatia nos “fundos de participação” destinados à partilha de tributos.

A partir do governo Fernando Henrique Cardoso, contudo, verificou-se um novo movimento de centra­lização em favor da União, sobretudo com as reformas previdenciária e administrativa, que retiraram a capa­cidade dos estados de legislar sobre tais matérias. O processo continuou no governo Lula, com a reforma do Judiciário, que criou, entre outras novidades, o Conselho Nacional da Justiça e as súmulas vinculantes, e reduziu as competências dos Judiciários estaduais. Além disso, ampliou-se a competência da União de criar “contribuições sociais”, cuja receita não é partilhada pelos entes federados.

O que fazer diante disso? É claro que ninguém vai imaginar que se possa voltar ao “federalismo dual” que vigorava no século XVIII, nos Estados Unidos, caracterizado pela existência de duas esferas estanques de competências e rendas – uma federal e outra estadual.

É que não se pode ignorar que se instaurou, em todos os estados federais, o chamado “federalismo cooperativo” ou de “integração”. Neste, não obstante sejam as competências e rendas compartilhadas em certa medida entre a União, os estados e os municípios, o planejamento, sobretudo no campo da economia e das finanças, opera a partir do centro, refletindo o crescente intervencionismo governamental nos mais diversos setores da vida social, imprescindível, hoje, para enfrentar os desafios de um mundo globalizado e plural.

Mas é evidente que alguma coisa precisa ser feita para não nos transformarmos em um Estado unitário de fato. Ou, na melhor das hipóteses, em um Estado Regional – à semelhança da Itália e da Espanha – no qual se concede às distintas regiões, subordinadas ao governo central, uma modestíssima autonomia. Daí os movimentos separatistas que se registram no norte italiano, cuja população, economicamente afluente, deseja trilhar caminhos próprios, e os que se desenvolvem entre os bascos e catalães, na península ibérica, os quais, ciosos de suas tradições multisseculares, pretendem alçar voos independentes.

Vale lembrar que uma das chaves do sucesso da União Europeia, que caminha, segundo alguns, para um Estado Federal – não obstante a momentânea crise econômica por que passa atualmente –, resulta da adoção de dois princípios fundamentais: o da subsidiariedade e o da proporcionalidade. Consoante o primeiro, o ente político maior deve deixar para o menor tudo aquilo que este puder fazer com maior economia e eficácia. De acordo com o segundo, é preciso, sempre, respeitar uma rigorosa adequação entre meios e fins.

Entre nós, o resgate do princípio federativo passa pela valorização da chamada “competência residual” dos estados, consagrada no artigo 25, § 1o, da Constituição Federal: São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição. Essa competência nos vem da tradição norte-americana segundo a qual as treze ex-colônias britânicas, transformadas em Estados, ao se unirem, entregaram à União apenas algumas das rendas e competências que possuíam originalmente, mantendo as demais. Não se ignora que o rol de competências enumeradas à União (arts. 21 e 22 da CF) é muito vasto, mas é preciso descobrir novas searas normativas que possam ser trilhadas pelos estados.

Depois, cumpre explorar ao máximo ascompetências concorrentes” previstas no art. 24 da Constituição vigente, impedindo que a União ocupe todos os espaços legislativos, usurpando a competência dos estados e do Distrito Federal nesse setor. Afinal, o § 1o do art. 24 estabelece, com todas as letras, que, “no âmbito da legislação concorrente, a competência da União limita-se a estabelecer normas gerais”. E mais: o § 3o consigna que, “inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender às suas peculiaridades”.

No Supremo Tribunal Federal, considerada a sua atual composição, já há uma visível tendência no sentido do fortalecimento do federalismo, prestigiando-se a autonomia dos estados e dos municípios, a partir de inúmeras decisões, especialmente nas áreas da saúde, do meio ambiente e do consumidor.

A tarefa de fortalecer o federalismo brasileiro, todavia, não é, evidentemente, uma tarefa restrita à Suprema Corte. Ela diz respeito, também, aos Judiciários Estaduais, às Assembleias Legislativas e às Câmaras Municipais, bem assim à sociedade em geral, que devem resgatar o espaço perdido nesse campo.

Enfim, para recuperar as competências e rendas dos entes federados, em outras palavras, para resgatar o prestígio e o poder dos estados e municípios, é preciso uma grande dose de vontade política e, sobretudo, de audácia. Sim, porque, como dizia o imortal Goethe: “Existe gênio, poder e mágica na audácia”.