Constitucionalismo demagógico

18 de dezembro de 2014

Membro do Conselho Editorial e Presidente da Academia Internacional de Direito e Economia

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NeyA esta altura, o atual texto constitucional brasileiro já recebeu abundantes apreciações e avaliações críticas de vários segmentos da sociedade, dando-nos panorama razoavelmente diversificado de seus aspectos, tanto os positivos quanto os negativos.

Nenhum trabalho de interpretação pode desconsiderar as condições objetivas e subjetivas, internas e externas, existentes no momento histórico em que a Constituição de 1988 foi reivindicada e elaborada.

A ideia de uma nova Constituição surgiu em momento de transição, coincidentemente com o esgotamento do ciclo autoritário e os movimentos de redemocratização do País, “diretas já” e “constituinte já”!

A ideia dominante era de que a nova Constituição

[…] não deveria marcar somente a volta ao Estado de Direito, mas a desmontagem das estruturas políticas, econômicas e ideológicas que foram consolidadas durante a ditadura. Ela não exerceria apenas o papel de tradutora dos valores predominantes, mas também o de propulsora de transformações sociais. Não poderia ser igual às outras. Nem na forma, nem no estilo, nem nas afirmações e nas formulações fundamentais. Do de que se tratava era fazer uma Constituição realmente libertadora de nosso povo, que pudesse garantir ao mais humilde cidadão ter seus direitos totais assegurados, inclusive o direito de simplesmente não aceitar o fato de não ter nada quando alguns poucos têm tudo.1

Em resumo, a expectativa era de que a nova Constituição criaria condições para a institucionalização da democracia, a correção das injustiças sociais e a retomada do desenvolvimento econômico. Tinha-se a impressão de que, pela primeira vez na história política do Brasil, não existia ninguém, a rigor, que pudesse ser rotulado de antidemocrático ou contrário à convocação de uma Assembleia Constituinte.

Vale recordar que toda obra humana, individual ou coletiva, é passível de imperfeições e, portanto, de censura. Ainda porque, como lembrou Theodore Roosevelt: “O único homem que jamais comete erros é o homem que jamais fez alguma coisa”.

De fato, acertar e errar são uma contingência humana. Seria mera idealização imaginar que os nossos constituintes pudessem acertar e tornar a Constituição obra perfeita e acabada. 

No dizer de Ulysses Guimarães: “A Constituição certamente não é perfeita, se fosse perfeita seria irreformável. Ela própria, com humildade e realismo, admite ser emendada, até por maioria mais acessível, dentro de 5 anos”.

Não obstante os defeitos que possa apresentar, ela representa marco importante na História do País: o fim de um ciclo autoritário e o início de nova experiência democrática, que se pretende duradoura.

Retrata, assim, o anseio da sociedade brasileira de viver em um regime de liberdade, protegido por um Estado de Direito; assume, merecidamente, o papel simbólico do regime democrático e da desejada estabilidade institucional, sem a qual nenhum valor formal tem sentido.

“Eventuais críticas ao texto magno não serão mais que o exercício normal das liberdades políticas recobradas pela Nação e que os próprios constituintes afirmaram no frontispício da Constituição”.2

Em livro de minha autoria, com o título “Razões das Virtudes e Vícios da Constituição de 1988”, elenquei, entre outros vícios, o caráter demagógico do seu texto.

Demagogia em política é a prática da mentira instrumental, voltada a alcançar ou manter poder ou prestígio. É uma forma de impor liderança política ou satisfazer a vaidade. Refere-se àqueles que propõem soluções, programas de ação que sabem, de antemão, serem enganosos ou impraticáveis, a fim de obter vantagem pessoal ou política.

O vocábulo “demagógico” exprime a qualidade de quem pratica a demagogia ou o resultado de sua prática.

Se, por um lado, é fácil levantar-se o objetivo da demagogia a nível pessoal, a vantagem que se pretenda auferir em termos de fácil popularidade e identificação com causas “generosas”, por outro lado fica mais complicado identificar os objetivos de se elaborar uma Constituição demagógica.

É preciso, diante do conceito examinado de demagogia, estabelecer diferença importante para se situar o exame das propostas demagógicas contidas na Constituição: trata-se, de um lado, da atitude demagógica e, de outro, do produto demagógico.

A atitude demagógica é um dado subjetivo. É o defeito imputável a quem se vale desse artifício para projetar uma imagem simpática para o público. Consequentemente, assoma a figura do demagogo, para quem o resultado só vale na medida em que dele obtiver a projeção pessoal desejada, mesmo à custa da exacerbação de expectativas populares.

O produto demagógico é um dado objetivo. O defeito está no resultado, independentemente da intenção de quem o produziu. Consequentemente, a figura do demagogo, que pode ou não estar por trás do produto, perde a importância para o próprio resultado demagógico que consiste, efetivamente, no despertar ou no exacerbar falsas expectativas.

Na hipótese analisada, da Constituição, muito embora singularmente alguns membros pudessem se valer da notoriedade e da publicidade dos trabalhos dos constituintes para projetar uma imagem pessoal de fácil simpatia e, outros mais, estivessem, até por generosidade, forjando utopias, o fato concreto é que a maioria dos constituintes produziu um texto de características demagógicas, capaz de despertar expectativas falaciosas no público. Agora não mais importa se com ou contra a intenção dos constituintes.

Temos de distinguir, portanto, os que foram declaradamente demagógicos, com a preocupação de projetar uma imagem “progressista” dos que, embora sem tal propósito, acabaram concorrendo para que a Constituição se tornasse um lamentável produto demagógico.

E os que se preocupavam com a própria imagem tanto poderiam ter sucumbido à tentação de apresentar e defender teses demagógicas como, de outra forma, ousado comprometer sua imagem para não colaborar com um propósito inaceitável.

O fato — e isto é o que se quer ressaltar — é que as propostas demagógicas prevaleceram e se incorporaram ao trabalho.

O certo, enfim, é que, como demonstramos adiante à saciedade, a Constituição está irremediavelmente tisnada pela demagogia. Agora não mais importa se com ou contra a vontade dos membros da Assembleia Nacional Constituinte.

De fato, se nos debruçarmos ainda que rapidamente na leitura do Texto Constitucional, verificaremos desequilíbrio constante entre os direitos e os correlatos deveres do indivíduo. “Fala-se em ‘garantias’ 44, em ‘direitos’ 66, enquanto a palavra ‘deveres’ é mencionada apenas quatro vezes”.

A impressão geral é que os constituintes quiseram apenas conceder, sem nada exigir e distribuir, sem tratar de criar condições de produzir.

A expressão, reiterada, “todos têm direito”, é bem característica dessa magnanimidade demagógica de distribuir benesses sem qualquer correspondência com as possibilidades reais do Estado e, mesmo, da Nação.

Os constituintes inseriram no Texto Constitucional um conjunto de “direitos sociais” em escala nunca vista anteriormente. A lista é exaustiva: abarca os campos do trabalho (art. 7o), da seguridade social (arts. 194 a 196), da saúde (arts. 201 a 203), da assistência social (arts. 203 a 205), da educação (arts. 205 a 214), da cultura (arts. 215 a 217), do desporto (arts. 217 e 218), da proteção à família, à criança, ao adolescente (arts. 226 a 231) e dos índios (arts. 231 e 232).

Ao “garantir” os “direitos sociais” a Constituição acabou por consagrar a corrente de pensamento conhecida como constitucionalismo social ou assistencialismo jurídico.

Partiu-se do pressuposto de que uma simples declaração formal na Constituição, assegurando o princípio da igualdade de direitos, não seria suficiente para tornar acessíveis, a quem é socialmente desfavorecido, as oportunidades de que gozam os indivíduos socialmente privilegiados. Há que se dar aos desprivilegiados, por meio do Estado, vantagens jurídicas e certos benefícios materiais para compensar sua inferioridade econômica e social e tornar realidade o princípio da igualdade de oportunidades. Nessa linha de pensamento, os direitos passam a ser exigências da justiça social; não como mera abstração, mas como fato.

Indiferentes aos obstáculos da própria realidade, imaginaram os constituintes ser possível resolver o problema das carências humanas por meio de simples inserção na Constituição dos chamados “direitos sociais”. Mas laboraram em mais um equívoco. Confundiram meros “anseios” com “direitos”. Não distinguiram o que é “justo” do “possível”. Não levaram em conta a quantidade, a dosagem, o estágio de desenvolvimento atual do Brasil e os meios necessários à implementação das medidas assistenciais abundantemente contempladas. “A Constituição promete-nos uma seguridade social sueca com recursos moçambicanos”.3

Não obstante, o rol de direitos e de garantias é realmente impressionante: se todos pudessem sair do papel não precisaríamos mais de governo, nem de Constituição, nem de Estado.

De fato, nenhum segmento organizado da sociedade resistiu à tentação de patrocinar os seus interesses classistas e corporativos junto ao Poder Constituinte.

Essas coalizões redistributivas lutam constantemente para se assegurar de que a formulação do direito não prejudique seus interesses e, melhor, se possível os favoreça diretamente. A consequência é que o Estado normatiza quase exclusivamente com fins financeiros.4

Como resultado dessa abusiva pressão, hoje o Texto Constitucional singulariza criaturas especiais em desafio ao princípio da isonomia, segundo o qual todos são iguais perante a lei. Constata-se, nele, nitidamente, uma série de desigualdades em favor de certos setores da burocracia estatal ou de grupos diferenciados da sociedade civil.

Na realidade, a Constituição, em termos de corporativismo, é rica de exemplos: Empresas Estatais (arts. 21, X, XI, XII; 177, 1 até IV); Magistratura (art. 93); Ministério Público (art. 123, §3o e §5o); Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (art. 131, caput e §3o); Polícias Rodoviária e Ferroviária Federal (art.144, incisos 11 e 111); Polícia Civil (art. 144, §4o); Médicos (art. 199, §3o); Universidades Estaduais (art. 218, §5o); Notários (art. 236); Fazendários (art. 237); Delegados de Polícia (art. 241); Escolas Oficiais (art. 242 caput); Servidores Públicos Civis (art. 19); Ministério Público do Trabalho e Militar (art. 29, §4o); Índios (art. 231, §2o e 3o); Empresariado Nacional (art. 171, §1o); Advocacia (art. 133), além de inúmeros outros.

Constata-se, da leitura dessa imensa lista, que a rigor todos os segmentos da sociedade efetivamente organizados foram aquinhoados com favores e benesses legais: da “tanga” até a “toga”. Em lugar de gerar uma “democracia de direito”, a Constituição conduziu a uma democracia de pressão.

Na ânsia de produzir direitos, nossos constituintes acabaram por brincar de Deus, dando tudo a todos”.

O que é pior: quando a Constituição, por generosidade ou mesmo demagogia, promete à sociedade o que o Estado não pode dar, ela gera ilusão perversa.

Assim é que encontramos no texto esse fabuloso catálogo: garantias de existência digna a todos (art. 170); fixação de requisitos para o cumprimento da função social da propriedade rural (art. 186); garantia de saúde a todos (art. 196); garantia de atendimento ao ensino fundamental, inclusive transporte e alimentação (art. 208); transporte urbano gratuito para os idosos de mais de 65 anos de idade (art. 230); garantia de um salário mínimo para cada portador de deficiência e idoso pobre (art. 230); direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225); prestação de assistência social a quem dela necessite, independentemente de contribuição social (art. 203); garantia à criança e ao adolescente do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade etc. (art. 227).

Poder-se-ia argumentar que as medidas propostas são de cunho meramente programático e que muitas delas costumam vir inseridas em algumas constituições, tanto brasileiras como estrangeiras. Acontece, no entanto, que os constituintes decretaram, por um passe de mágica, pela crença desmedida no poder das fórmulas escritas, que todas as normas programáticas passariam a ser pragmáticas, pois sentenciaram no art. 5o, LXXVII, §2o, verbis: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

Seremos breves para ultimar essa crítica. A demagogia não comporta grandes digressões apreciativas porque é quase sempre muito evidente. Para ser evidente é que se a emprega.

O que cumpre examinar, portanto, são as consequências da demagogia objetivada no art. 5o, e não as intenções de qualquer constituinte, ainda porque, obviamente, muitos não tinham esse propósito.

Dentro desse enfoque de examinar as implicações, consideremos a seguinte sequência: o irrealismo, as reivindicações, as frustrações e a instabilidade.

O produto demagógico baseia-se em uma simplificação ingênua da realidade, quase sempre mascarando aspectos essenciais; seu irrealismo o aproxima da utopia, naquilo que esta possa ter de sedutor, de desenhar róseas expectativas.

Esse aspecto, a irrealidade da proposta demagógica, gerando ou exacerbando desejos, leva ao despertar de reivindicações, já, no caso, com fundamento nos acenos e promessas de satisfação.

Entretanto, como não são realizáveis em curto prazo, dentro das forças e possibilidades da Nação, e, possivelmente, nem mesmo a médio ou longo prazo, as reivindicações inatendidas acabam em dramáticas frustrações.

Se o povo absorve, estoicamente, essas frustrações, o mal ficará por aí; ocorre que, seja pela profundidade da expectativa, seja pela contínua exploração das frustrações, em novas investidas demagógicas, por lideranças carismáticas, pode ocorrer que elas se exprimam em desordens e lutas, desestabilizando a sociedade e o regime.

A instabilidade é, pois, a consequência última da demagogia, o risco de mentir-se ao povo. Um verdadeiro projeto constitucional democrático se cultiva na sinceridade, não por motivos puramente éticos, mas por motivos essencialmente práticos, os mesmos que levaram Aristóteles a ver, na demagogia, a corruptela da democracia. Ambas têm, em comum, o povo, mas enquanto esta busca a verdade da vontade popular, aquela dissemina a mentira e o engodo.

A consequência mais funesta é que a Constituição tem perdido o seu caráter simbólico, entrou em processo de descrédito e passou a ser descumprida até pelos responsáveis por sua observância, sem grande remorso e cerimônia.

Dificilmente essas circunstâncias deixarão impassíveis os que as estão vivendo, seja como políticos, seja como cidadãos.

Notas ________________________________________________________________________

1 ABRAMO, Claudio. Constituinte e democracia no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 53.
2 FIGUEIREDO, Diogo de. Constituição e revisão. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 475.
3 Roberto Campos. Século esquisito. Rio de Janeiro: Topbooks, 1990. p. 195.
4 SOTO, Hernando de. Economia subterrânea. Rio de Janeiro: Globo, 1986. p. 262 e 263.