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Constituição 1934: Getulismo e Modernidade

5 de agosto de 2004

Membro do Conselho Editorial / Professor Titular Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UniRio)

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Os anos de 1930, na moderna história brasileira, têm se caracterizado com o período de ruptura com as velhas práticas políticas apesar da força histórica da Constituição Republicana e federalista, patrocinada por Rui Barbosa. A cronologia dos eventos políticos brasileiros têm ressaltado a ação ruptiva da Revolução de 30, comandada por Getúlio Vargas, à frente de um novo pacto político, mas, não se deve esquecer também, o papel da Revolução Constitucionalista de 1932, que provocou uma reacomodação institucional entre os interesses dos pactos governativos da Primeira República, dominados pelos mineiros e paulistas, com os grupos políticos emergentes, essencialmente, originários dos movimentos políticos do sul do Brasil aliados com a elite oligárquica mineira.

Este período, essencialmente marcado pela ação revolucionária, absorveu as demandas políticas comprimidas durante a primeira república, que propunham a ordenação de um novo Estado para o Brasil. No bojo destas reivindicações tiveram papel histórico significativo os jovens militares brasileiros, onde se destacaram Carlos Prestes, Juarez Távora, Eduardo Gomes, Siqueira Campos e outros tantos que engrossaram o caldo das proposições republicanas e antioligárquicas, e os movimentos civis, dominados, por um lado, pelas demandas corporativas dos profissionais liberais representativos da classe média em ascensão, e pelas demandas trabalhistas das novas frentes operárias.

O conjunto dessas diferentes linhas de flutuação social, imersas no novo contexto urbano, combinadamente com a crise das elites oligárquicas tradicionais, gerou um amplíssimo ambiente de instabilidade política, principalmente marcado no processo sucessório de Washington Luiz que favoreceu a aliança dos movimentos civis com a frente partidária oposicionista liderada por Getúlio Vargas, com significativo apoio das novas frações profissionais liberais e da própria intelectualidade emergente, muitos influenciados pelo autoritarismo de esquerda e, outros tantos, pela versão autoritária corporativista. A aliança, senão explícita, mas, pelo menos circunstancial destes grupos sociais emergentes viabilizaram a vitória revolucionária de Getúlio Vargas, candidato derrotado no processo eleitoral fraudado de 1930, com o apoio da classe média urbana e de significativas vertentes do operariado em processo de organização, mas ainda insensíveis, enquanto classe, aos apelos dos insipientes grupos anarquistas e comunistas. Getúlio Vargas assumiu o poder, nestas circunstâncias, e neste contexto de alianças frágeis, o que não lhe impediu de governar com as novas elites jurídicas de classe média, representadas por Oswaldo Aranha, Francisco Campos, Gustavo Capanema, Levi Carneiro e tantos outros, o articulador central da criação da Ordem dos Advogados do Brasil exatamente na forma dos primeiros decretos revolucionários. A força revolucionária da nova elite do poder reagiu aos grupos políticos paulistas exigindo a definição de um novo pacto constitucional que se manifestou na contra revolução de 1932.

O primeiro resultado, desta nova aliança de compromissos foi a edição do primeiro Código Eleitoral brasileiro de 1932, que criou a Justiça Eleitoral, assim como, institucionalizou as demandas civis de participação eleitoral dos empresários e das mulheres, e reconheceu, originalíssimamente, as aberturas para a representação parlamentar dos movimentos sociais. A Assembléia Constituinte de 1933, convocada na forma deste Código, foi a única na história brasileira que funcionou efetivamente como uma constituinte autônoma e independente, onde se fizeram representar deputados populares e deputados de origem corporativa.

No contexto desta reacomodação política, emergiram, por um lado, um grupo de pensadores e políticos que já manifestavam significativas influências dos movimentos trabalhista e social-democrata, assim como firmaram-se vários pensadores brasileiros preocupados com a redefinição e com a reorganização interna do Estado, muitos deles, com profundas marcas autoritárias, como Oliveira Viana e Alberto Torres. Da mesma forma, como já observamos, ascendeu uma plêiade de novos juristas que estavam comprometidos com as lutas pela criação corporativa da Ordem dos Advogados e, com muitos dos ideais voltados para a renovação do direito público, sensíveis, todavia aos movimentos autoritários corporativistas. O primeiro grupo, ao que parece, influiu na proposta de estruturação parlamentar da Constituinte e, o segundo, na definição dos ideais de bem estar social e na formatação eleitoral futura.

O resultado da Constituinte de 1933, foi a promulgação, em 16 de julho de 1934, a exatos 70 (setenta) anos, da Constituição que lançou as bases efetivas do Brasil moderno, muito embora, devido ao seu extenso alcance político e social, não tenha sobrevivido mais do que 3 (três) anos, sucumbindo à pressão autoritária interna, que marcou o espectro ideológico do getulismo, e aos conflitos internacionais entre os movimentos de direita ascendentes e a desarticulação da esquerda marxista influente após os primeiros anos que sucederam à Primeira Guerra Mundial. Apesar deste contexto conflitivo, da Constituição de 1934, emergiram, todavia, as vertentes brasileiras das políticas de bem estar social, assim como dilataram-se os veios intervencionistas do Estado, premidos pelo autoritarismo nacionalista, que acabou, dando em 1937, a negação constitucional do incipiente constitucionalismo democrático brasileiro.

Apesar dos desencontros que sucederam a 1937, a Constituição de 1934, não apenas representou uma nova abertura para a organização do Federalismo brasileiro e do parlamento brasileiro redefinindo o papel dos estados, como também, rompeu com os modelos eleitorais distritais, que facilitava o domínio oligárquico, fortalecendo o voto proporcional. Neste sentido, a Constituição de 1934, historicamente, sintonizou a nova legalidade às novas expectativas de legitimação do Estado, como Estado representativo de toda sociedade. Por outro lado, esta mesma Constituição, absorvendo as influências sociais democráticas da Constituição de Waimer de 1919, (àquelas alturas já ameaçadas pelo autoritarismo alemão), e do liberalismo social do Welfare State americano, consolidou uma efetiva política de bem estar social.

Esta Constituição, seguindo essa orientação, abriu específicos capítulos sobre a educação pública, muito especialmente a educação técnica, sobre as políticas estatais de saúde e do bem estar material (alimentar e habitacional) do trabalhador. Diferentemente das constituições brasileiras anteriores, que se mantinham restritas à proteção dos direitos individuais, e sempre muito preocupadas com a autoridade dos governantes, esta Constituição articulou a proteção dos direitos individuais, ampliando os direitos de cidadania, e, ao mesmo tempo, consolidou as bases dos direitos sociais e a sua proteção no Brasil, a tal ponto que ela permitiu um amplo e sucessivo volume de leis trabalhistas.

No que se refere à organização do Estado esta Constituição fortaleceu o papel do Poder Judiciário, não apenas institucionalizando a Justiça Eleitoral, mas também viabilizou a implantação do Mandado de Segurança, que absorveu as marcantes contribuições de Rui Barbosa no reconhecimento extensivo do Habeas Corpus, imprescindível e inovadora contribuição brasileira para a defesa dos direitos individuais contra o abuso da autoridade, que, mais tarde, veio a ser regulamentado, vencido o interegno de 1937.

Em termos desta Constituição de 1934, o que permanece, de qualquer forma, razoavelmente obscuro, no tempo histórico, foi a opção constituinte, fugindo do modelo representativo clássico, pela composição de uma Câmara de Deputados constituída por representantes eleitos diretamente pelo povo e de representantes profissionais, de categorias corporativas. Este modelo de organização legislativa não fazia parte da tradição liberal, mas ao que se presume, demonstra, muito mais, a sensibilidade parlamentar para viabilizar, politicamente, os interesses sindicais emergentes, que, mais tarde, se institucionalizaram através dos modelos de representação sindical, alternativos aos modelos corporativos de Estado, sobreviventes até os tempos presentes.

Finalmente, esse modelo constitucional, de influência social liberal, permeado pela estrutura parlamentar e corporativa, sofreu significativo desgaste, prevalecendo no tempo as estruturas constitucionais marcadas pelo liberalismo e pela influência das políticas de bem estar social. De qualquer forma, não se deve esquecer, que a Constituição de 1988, reabsorveu as influências sociais constitutivas, que, na verdade, nas suas vertentes econômicas, recentemente foram reconvertidas pelas propostas e emendas de vocação neo-liberal. A Constituição de 1934, como se pode concluir é a exata dimensão do getulismo como ação ruptiva com o Brasil oligárquico e a abertura conectiva para o Brasil moderno e democrático assim como, ela traduz as linhas de resistências aos modelos neo-liberais sensíveis às políticas internacionais de integração global.