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Contrato de permissão: equilíbrio econômico-financeiro, prorrogação e tarifas

5 de agosto de 2005

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As origens das distorções

Historicamente a delegação de serviços públicos de transporte de passageiros no Brasil, em todas as esferas, faz-se por permissão com prazo indeterminado, assegurando ao particular o direito a uma tarifa.  Essa tradição em nosso país é fruto de uma visão na qual a Administração, buscando evitar a geração de direitos ao particular na delegação dos serviços de transporte coletivo, almeja infundir o caráter de precariedade e unilateralidade à relação outorgante-outorgado.

Assim, no setor de transportes, vive-se na realidade apenas a histórica tradição de perpetuação de um erro, que como brilhantemente coloca o Prof. Marçal Justen Filho, traduz “uma espécie de situação esquizofrênica, derivada de uma interpretação adotada genericamente em todos os setores e que parte do seguinte esquema jurídico: é a idéia de que a concessão gera direitos ao particular, permissão não gera e autorização gera menores direitos ainda”.

Cultivou-se uma espécie de longo casamento de conveniência entre a Administração e o particular, no qual um finge que acredita no outro, onde no mais das vezes o enfoque político se sobrepôs ao jurídico, numa estranha simbiose.

Com essa distorção conceitual em mente, veio a Administração adotando o regime de permissão e autorização para tais delegações, julgando agir em seu benefício na crença de que não se criariam direitos a ela oponíveis pelo particular. Longe de trazer segurança jurídica a tão importante atividade, fundamental para milhões de usuários em nosso país, assistimos ao crescimento de uma instabilidade que só redundou em menores investimentos, maiores custos, menor qualidade ao usuário e depauperação patrimonial de vasto capital empregado por particulares – na sua maioria empresários laboriosos, aguerridos e empreendedores.

Estabilidade da permissão e equilíbrio econômico-financeiro.

Analisando a Constituição de 88 e a Lei de Concessões (Lei nº 8.987/95) vemos que a figura da autorização não mais se aplica à delegação regular de serviços públicos, sendo que a mesma só se aplicaria a duas situações: a liberação pela Administração para o desempenho de atividades econômicas privadas, como para transporte de produtos perigosos ou medicamentos por exemplo, ou diante de uma situação excepcional e de caráter verdadeiramente precário e transitório, como, por exemplo, em caso de uma crise ou calamidade. Esta seria a melhor leitura, fazendo a harmonia entre as disposições contidas nos artigos 21, inciso XII, alínea 175 da Carta, e desta com a legislação ordinária.

Assim, aplicam-se à delegação de serviços públicos a particulares apenas os institutos da permissão e da concessão, sendo que a distinção na escolha da modalidade estaria na existência ou não da realização de investimentos amortizáveis no tempo pelo particular, e é aqui que se insere a fundamental questão do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de delegação do serviço.

Felizmente a orientação doutrinária e jurisprudencial estipula que é a natureza jurídica do vínculo entre a Administração e o particular que define o tipo de outorga, e não sua denominação formal. O conteúdo se sobrepõe à forma. O contrato de permissão de exploração de serviços de transporte, portanto, que se reveste de deveres e obrigações impostos pela Administração e investimentos, tarifa e prazo para o particular, corresponderia a uma concessão de fato. Chamá-la de “permissão condicionada” ou “permissão qualificada” não gera situação precária ou muda o fato de que atribuem direitos ao particular, especialmente o direito ao equilíbrio econômico-financeiro.

Essa garantia é constitucional, derivada do princípio da isonomia, do princípio da inviolabilidade da propriedade, Art. 5º XXII e XXIV, e do princípio da moralidade, explicitado no Art. 37, XXI, e insculpido na Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93), art. 65, II, “d”, Lei Geral de Concessões (Lei nº 8.987/95) art. 9º, §4º e Lei nº 9.074/95 art. 35, este último particularmente relevante face as gratuidades que grassam pelo país e o problema de desequilíbrio da equação econômico-financeiro daí decorrente.

Os Tribunais vêm garantindo a proteção ao equilíbrio econômico-financeiro, tanto através do viés indenizatório quanto pela determinação de reajuste tarifário, este último sempre sujeito às pressões, especialmente as de natureza política, que atuam em vista da contemporaneidade da decisão. Ao passo de que as indenizações ocorrem já passado o calor do embate tarifário que, em geral apresenta, de um lado, sobretudo organizações de defesa de usuários e Ministério Público, e de outro, as empresas prestadoras do serviço, tendo a Administração presença em um dos pólos, a depender de posições ora técnicas, ora políticas.

Prorrogações e validade dos contratos

Essa garantia jurisprudencial, no entanto, encontrou óbice recente em decisões do Superior Tribunal de Justiça, onde se entendeu que permissões outorgadas sem licitação, mesmo que anteriores a vigência da CF de 88, não têm direito ao equilíbrio econômico-financeiro e ,consequentemente, os permissionários não têm direito à indenização.

Ainda que entendendo que a natureza jurídica da outorga é de “verdadeira concessão”, interpretou-se o artigo 175 de forma a aplicá-lo retroativa e draconianamente. Em artigo publicado recentemente sobre o tema nesta revista, o sábio Dr. Darci Norte Rebelo sintetizou bem a questão: “Por esse raciocínio, a VARIG e outras concessionárias aéreas que nunca conjugaram o verbo licitar, jamais poderiam ter vencido as ações de indenização que propuseram contra a UNIÃO perante o mesmo Tribunal. Nenhuma delas nasceu de licitação alguma. Na essência, a ação proposta contra a União pela VARIG é a mesma que dezenas de empresas permissionárias promoveram contra o poder concedente de Minas Gerais. Mas a solução dada pelo STJ ao Estado mineiro foi diferente da que proferiu contra a União. Negou a estas o que deu àquela”. Ora, de fato tal entendimento enfrenta dois óbices.

O primeiro diz respeito a validade das outorgas concedidas sem licitação antes da Constituição de 88, e mesmo de suas prorrogações pós-Carta. Da correta leitura guiada pela aplicação conjunta dos princípios da segurança jurídica e legalidade, entende-se que a própria CF prevê a prorrogação das outorgas no parágrafo único, I, do Art. 175, e a forma com que a Lei nº 8.987/95 tratou da transição do regime constitucional anterior ao atual reflete claramente, pela combinação lógica dos artigos 42 e 43 e seu parágrafo único, que as outorgas feitas sem licitação anteriores a CF de 88, e em execução quando da sua promulgação são válidas.

Adicionalmente, o parágrafo segundo do Artigo 42 deu atribuição à Administração de prorrogar as outorgas por, no mínimo, 2 anos para adequar os sistemas para novas licitações. Portanto, válidas são as outorgas e suas prorrogações. Discutível seriam apenas situações que não contemplassem prorrogação única, bem definida e por prazo certo. Não se tratam, portanto, de renovações, o que ensejaria obrigatoriamente licitação. A leitura seca que alguns têm feito da Carta e desta regra de transição, colide com o princípio de segurança jurídica e o da proporcionalidade.

Ademais, passados dez anos de sua vigência, em nenhum momento foi a Lei nº 8.987/95 declarada inconstitucional. Exemplo prático é o Decreto nº 2.521/98, que no artigo 98 prorrogou por 15 anos as permissões de transporte interestadual.

O segundo óbice é que a tutela ao equilíbrio da equação econômico-financeira independe da existência ou não de licitação. Eis que, se ainda que de maneira viciada, a Administração contratou e o serviço foi efetivamente executado, havendo seu uso, sua fruição, a necessidade de indenização, ao menos dos custos incorridos pelo particular, subsiste. Dispor em contrário seria tutelar o enriquecimento sem causa.

Dentro da atual regra constitucional, a prorrogação da outorga também se apresenta como caminho lógico quando não se aperfeiçoa a amortização do investimento ao término da relação contratada. É no interesse público e da Administração que, melhor que indenizar o particular, prorrogue-se a outorga por prazo certo e técnico para a eliminação do passivo.

Tarifas

A tarifa está no cerne da questão do equilíbrio econômico-financeiro e é o eixo da equação envolvendo valor de investimento, volume de passageiros, distâncias percorridas, prazo de amortização e o desejo de modicidade tarifária. Quanto mais técnica for a análise e estipulação de tarifa, e para que técnica seja inclui-se também a abordagem pela ótica da função social deste serviço, mais vantajoso será para todos os opostos envolvidos: população usuária, Administração e operadores, e de resto para a sociedade como um todo, pois, em última análise é ela que paga maior ou menor preço dependendo das escolhas, se técnicas ou políticas, adotadas. Se sobre este equilíbrio de interesses opostos, obtidos e traduzidos em regras tarifárias quando da outorga inicial, resulta lesado o equilíbrio econômico-financeiro, o judiciário pode, deve e tem agido.

Em suma, em que pese o desamparo que alguns setores buscam impor aos outorgados e a percepção de desordem e insegurança jurídica, a ordem legal vigente valida as prorrogações feitas dentro das regras de transição bem como admite a possibilidade das mesmas para fins de atingir a amortização de investimentos feitos.

Igualmente, a outorga da  permissão para a exploração de serviços públicos de transporte, enseja a tutela da intangibilidade da equação econômico-financeira, do direito à justa remuneração tarifária bem como o direito à indenização.