Controle ou coação do Poder Judiciário?

5 de maio de 2004

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Quando o II Tribunal do Júri absolveu Adriana Iório e seus parceiros, numa atuação estranhíssima do promotor, que assumira o caso uma semana antes, assustei-me. Um de seus advogados, Jair Leite Pereira, um dos mais antigos e atuantes criminalistas, tem um histórico de tais vitórias que questionei o próprio instituto do júri popular: um bom desempenho da defesa ou/e comportamento oposto do Ministério Público acabam sendo mais decisivos do que as provas e evidências sobre o crime – concluí.

Decorridos dois meses, depois de assistir de corpo presente a três sessões do Supremo Tribunal Federal (e me prometer acompanhar mais sua atividade pela TV Justiça), me reencontrei com a esperança. Em todas as matérias levadas à pauta, tive a sensação de que, se a cidadania tem uma trincheira, essa é o Poder Judiciário, cujos titulares maiores fazem de cada voto, em qualquer matéria, uma aula de direito, segundo a visão plural de cada um.

Aí voltei a refletir do porquê dessa pressão para seu “controle externo”, no bojo de toda uma desarticulação de direitos, patrocinada, infelizmente, por quem encantou as multidões com o discurso do resgate da dignidade vilipendiada.

Vislumbrei então pessoalmente a chave do enigma: a decisão do STF, adotada por 10 votos a 1, de reconhecer a constitucionalidade da minha lei que põe fim ao regime escravo de diárias na praça de táxi do Rio de Janeiro aconteceu no mesmo momento em que recrudescem as manobras para a imposição de um crivo externo destinado a manter o Poder Judiciário sob pressão de uma espécie de garrote terceirizado. Se esse cenário já tivesse sido construído teriam os magistrados decidido com a devida independência matéria que repercutiria sobre um modelo de espoliação que se espalha pelo País e faz a festa de muitos corruptos?

Com certeza, não. E mais: provavelmente, o fim da espoliação teria juízo desfavorável já no Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que, por 17 votos a 4, posicionou-se na mesma direção. E como “os pobres não costumam bater às portas do Supremo”, segundo desabafo do ministro Maurício Corrêa, o processo pararia ali mesmo. Porque a carga de “influência exógena”, que já passa da medida no cenário atual, seria acionada com maior poder de fogo, sujeitando a um anel brutal de constrangimentos o Poder que dá a última palavra sobre os direitos da cidadania.

O que se trama na realidade é transformar o Judiciário num apêndice dos outros poderes. Sujeitando sua economia interna à censura de um abstrato “controle da sociedade”, criam-se os parâmetros de confinamento virtual. Porque até hoje a representação da sociedade para além dos mandatos clássicos do regime democrático nunca passou de ficção gerada com fins de manipulação mascarada. Através desse controle externo, “representações sociais”, devidamente “aparelhadas”, exerceriam o papel de compressores dos juízes, como verdadeiras espadas de Dâmocles sobre cada um deles.

Até o momento, com todas as suas falhas pontuais, o Poder Judiciário é o espaço onde a cidadania encontra abrigo, independente de vínculo ou proteção política. Seus titulares lá chegam por concursos públicos e estão sujeitos, mais do que ninguém, a normas éticas rígidas, porque delas depende a confiança em suas decisões. Cada vez que um juiz ousa burlá-las, provoca tamanhos danos que se torna um vilão imperdoável. Suas corregedorias atuam com muito maior rapidez e transparência do que qualquer outro ente público.

A idéia do seu “controle externo” se volta muito mais contra o regime de direito do que contra os magistrados. Ao consumá-lo, como deseja o atual governo, estaríamos abrindo as portas para a mais impiedosa das ditaduras do Poder Executivo. Pois, a bem da verdade, diga-se, o Legislativo já se assumiu como vassalo, na maior sem-cerimônia, agindo em sua maioria sob monitoração ostensiva dos palácios governamentais. Exemplos gritantes recentes foram o sepultamento da CPI dos bingos, no Senado, e a falta de assinaturas regimentais para a CPI do Waldomiro Diniz, por encomenda pública do Planalto.

Ademais de ter de administrar uma demanda cada vez maior, há que reconhecer, o Poder Judiciário tem sido obrigado, todos os dias em todos os recantos do País, a exercer funções legislativas, quando aprecia atos e leis dos demais poderes. Cada dia mais, aprovam-se por conveniência política verdadeiros monstrengos legais.

Cada dia mais, cristaliza-se o desrespeito a princípios comezinhos do direito, obrigando à intervenção da Justiça como reformatadora de incongruências e agressões à lógica cultivadas por políticos despreparados, muitos dos quais ganham uma cadeira parlamentar por conta de práticas deletérias, como o exercício do mais reles clientelismo.

Ouso dizer, como parlamentar, que se fosse o caso de pensar seriamente em controles externos, nos termos tramados para o Judiciário, ter-se-ia que começar pelas casas políticas, pois os conluios entre Executivo e Legislativo não se dão no plano elevado de idéias coincidentes. Forja-os a máquina de favores públicos, segundo velho ritual do “dá lá, toma cá”, de que hoje participa com denodo a nova súcia do Planalto, que vendeu aos cidadãos, para lá chegar, a idéia de que iria extirpar hábitos tão indecentes. E virou a casaca, com deslavado cinismo, ao sentir o gosto orgástico do bastão.

Ao repelir a terceirização do controle do Judiciário, não pretendo dizer que todos os seus juízes não cedam a tentações e não pretendo negar que alguns se aproveitam de suas imunidades para “vender sentenças”.

A crônica do cotidiano demonstra, porém, que é o próprio corpo de magistrados que primeiro repele e expele os flagrados em desvios de conduta. Ofereçam-se meios orçamentários e o próprio Judiciário será mais eficiente no trato com os desviados de conduta. Fortaleça-se o Ministério Público independente, incremente-se a ação das defensorias, abra-se a Justiça mais pela difusão ao conhecimento da sociedade, aí teremos as verdadeiras ferramentas de “controle” de suas decisões.

Fora disso, é exercitar o perigoso descaminho que, pela via da coação dissimulada, fecha a última porta do direito aos cidadãos.