Cotas raciais, reparação ou privilégio?

18 de dezembro de 2014

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NilsonO negro no Brasil contemporâneo exige tratamento isonômico que tarda para chegar em virtude dos entraves burocráticos para o reconhecimento da perversa fase pela qual passaram os escravizados.

Importante destacar que, no Brasil, a escravidão teve início com a produção de açúcar na primeira metade do século XVI. Os negros africanos foram utilizados como mão de obra escrava nos engenhos de açúcar. Enfim, não resta a menor dúvida de que os escravizados ajudaram sobremaneira na construção deste País. Os comerciantes de escravizados vendiam os africanos trazidos como mercadorias. O transporte dos escravizados era feito da África para o Brasil nos porões dos navios negreiros. Amontoados, em condições desumanas e humilhantes, muitos morriam antes de chegar ao Brasil e os corpos eram lançados ao mar.

Ademais, não podemos esquecer que, nas fazendas de açúcar e/ou nas minas de ouro, notadamente a partir do século XVIII, os escravizados foram humilhados diuturnamente. Os negros escravizados trabalhavam de sol a sol, recebendo apenas trapos de roupas e “alimentação” de qualidade pífia. Nos momentos noturnos de raro descanso passavam as noites nas senzalas, vale dizer, galpões escuros, fechados, sem ventilação, úmidos e sem qualquer higiene, quase sempre acorrentados para evitar fugas. Frequentemente castigados fisicamente, o açoite era a punição mais comum no Brasil Colônia.

Os negros foram proibidos de praticar sua religião de origem africana ou de realizar suas festas e rituais costumeiros na África. Entretanto, mesmo com todas as restrições, não deixaram a cultura africana se apagar. Sem ostentar, realizavam seus rituais, praticavam seus festejos e até desenvolverem uma forma de dança-defesa, denominada capoeira.

As mulheres negras também sofreram muito com a escravidão, embora os senhores de engenho utilizassem esta mão de obra, principalmente, para trabalhos domésticos, não deixaram de lado os abusos sexuais impiedosos.

Não será demais ressaltar que, no século XVIII, alguns poucos escravos conseguiram comprar sua liberdade e adquiriam a “carta de alforria”. Os recursos foram adquiridos a partir da economia de algumas moedas. A liberdade não foi suficiente para abrir as portas para a isonomia entre os demais, notadamente os brancos livres e abastados.

O negro não sucumbiu à escravidão pacificamente, haja vista que lutou, dentro das suas limitações, para obter e ou restabelecer a sua liberdade e da sua família.

Com efeito, após a segunda metade do século XIX, a escravidão passou a ser contestada pela Inglaterra, interessada em ampliar seu mercado consumidor no Brasil e no mundo. O Parlamento Inglês aprovou a Lei Bill Aberdeen, exatamente em 1845, que proibia o tráfico de escravizados.

Apenas em 1850 o Brasil cedeu às pressões inglesas e aprovou a Lei Eusébio de Queiróz que “acabou” ou deveria ter acabado com o tráfico de escravizados. Pois bem: em 28 de setembro de 1871 foi aprovada a lei do ventre livre que dava liberdade aos filhos de escravizados nascidos a partir daquela data. Em 1885 foi promulgada a lei dos sexagenários, que permitia a liberdade aos escravizados com mais de 60 anos de idade.

Assim sendo, somente no final do século XIX é que a escravidão foi mundialmente proibida. Aqui no Brasil a abolição se deu apenas a partir do dia 13 de maio de 1888, com a promulgação da intitulada “Lei Áurea”, portanto, há apenas 126 anos, praticamente ontem, e podemos sentir o cheiro das senzalas, ver as cicatrizes nos corpos dos negros e o sofrimento que cada um dos ancestrais passou para que hoje possamos discutir o futuro do povo negro.

Acrescente-se que, em 1854, foi editado o malsinado decreto que proibiu o negro de aprender a ler e a escrever. Ora, como podemos falar na igualdade talhada no artigo 5o da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, se o negro foi proibido de aprender a ler e a escrever?

Diante dessas informações é claro que o negro foi prejudicado, lesado e punido, sem dar causa a essa perversa punição. Uma coisa é empobrecer por conta da má administração dos seus bens como aconteceu com alguns muitos; outra coisa é o miserável e escravizado ser impedido de exercer qualquer direito, inclusive e principalmente a educação, ainda que deficitária. A história revela que o negro foi uma vítima da perversa ação do homem que aqui se encontrava. Como podemos fechar os olhos para as atrocidades que ocorreram no passado recente? Não, não podemos. Estamos falando em reparação rápida, urgente, imediata e não me venham com o discurso frágil de que as cotas devem ser sociais porque o Brasil é composto pela maioria pobre. Sim, não desconhecemos isso, mas nem toda maioria pobre foi proibida de estudar, açoitada, humilhada, estuprada e escravizada.

O Brasil sustentou mais de 300 anos de escravidão, e essa mancha está talhada na nossa história. Não adianta simplesmente dizer que somos iguais com um passado tão nebuloso e que clama por uma reparação justa e equilibrada, sem causar prejuízo às novas gerações. Precisamos de uma reparação humana, moderna e ao mesmo tempo satisfatória, de modo a tornar o economicamente fraco socialmente forte. A esperança de dias melhores não pode continuar caminhando em passos tão vagarosos.

Com efeito, o dia 5 de outubro de 1988 marca momento histórico para as liberdades no Brasil. Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, intitulada “Constituição Cidadã”, o Brasil iniciou um novo momento na sua história. Note-se que isso ocorreu, coincidência ou não, no mesmo ano em que o Brasil comemorou cem anos do final da escravidão. Ousaria dizer que o Brasil promulgou em 5 de outubro de 1988 a segunda abolição da escravidão quando afastou, de uma vez por todas, o período de exceção com o resgate e a implementação de direitos e garantias individuais e coletivas. Assim sendo, nunca será demais lembrar que estamos há 126 anos do final da escravidão e há 26 anos da promulgação da Constituição da República do Brasil.

E não é só. Não estamos no campo da “reparação financeira”. O que se enfrenta é a necessidade de uma reparação pragmática de modo a tornar o excluído por conta de um processo escravagista covarde de modo a inserir no mundo livre todos os descendentes de escravizados que ainda não encontraram o seu rumo na sociedade.

A história recente nos remete aos casos de reparação financeira aos familiares de vítimas do regime totalitário, com todo acerto e digna de apluasos. Quem lutou pela redemocratização do Brasil não pode e não poderia ficar esquecido. Se hoje o país respira novos ares devemos aos nossos valentes brasileiros que optaram por lutar em prol da liberdade plena. Nesse diapasão, não podemos esquecer que também os escravos e abolicionistas da época, cada qual com suas peculiaridades, merecem toda a nossa admiração e respeito por lutarem pelo fim da escravidão no Brasil.

O período totalitário vigorou de 1964 à 1985, portanto, durou longos 21 anos e estamos em estado de recuperação dessa mancha na nossa história. Portanto, a escravidão no Brasil perdurou por mais de 300 e pesados anos, frise-se, quase 15 vezes mais tempo do que o da ditadura. É claro que não se pode comparar um e outro período. São momentos distintos e qualquer comparação seria indevida e inoportuna, mas equívocos aqui mencionados devem permanecer vivos na memória para que nunca mais retornem às nossas vidas.

A dignidade do negro foi cassada. O negro foi subjugado e o que se espera é tão somente o reconhe­cimento efetivo de que algo de muito grave aconteceu no passado recente e que pessoas morreram e ou foram torturadas para a construção desse país que se tornou uma das maiores economias do mundo e não se pode negar, com suporte no trabalho escravo. O que se espera é, pelo menos, a reparação parcial com a criação, em alguns casos e a manutenção em outros tantos, de um percentual médio de 20% (vinte por cento), temporário, de modo a cumprir o artigo 3o, III e IV da Constituição da República Federativa do Brasil, imprimindo condições iguais para todos, é claro, levando-se em consideração elementos históricos inafastáveis, mas que servem de base para rechaçar qualquer tentativa de desqualificar o instituto das cotas raciais, como mais um instrumento conhecido como ação afirmativa.

Engana-se quem pensa que as cotas chegaram para reduzir o acesso aos não negros. O que se pretende é a reparação de um dano de difícil reparação, mas possível de ser minimizado em sua extensão. Não podemos encarar com normalidade o aumento da mortalidade dos jovens negros em oposição a redução dos jovens não negros. O Brasil precisa e deve responder com ações afirmativas pela redução da mortalidade juvenil de forma simétrica. Não queremos o aumento do encarceramento da juventude negra. O Brasil é um país livre e precisamos resgatar a dignidade desse segmento excluído.

Que as cotas raciais sejam implementadas efetivamente, pelo menos enquanto não chega ensino de qualidade na rede pública que garanta a isonomia entre todos os candidatos para as vagas nas universidades públicas e para o serviço público em geral, notadamente para os cargos de destaque.