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Crimes Políticos: 1964-1968/69 – A Hermenêutica de Victor Nunes no STF

30 de junho de 2015

Membro do Conselho Editorial / Professor Titular Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UniRio)

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Aurelio Wander BastosA pesquisa que estamos realizando sobre esta exposição é (também) uma homenagem ao Ministro Victor Nunes Leal (1914/1985), pela passagem dos 30 anos de seu falecimento (em 17 de maio de 1985), autor do clássico estudo sobre o regime representativo no Brasil, denominado Coronelismo, Enxada e Voto (1948). O homenageado foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal pelo Decreto de 26 de novembro de 1960. A pesquisa jurisprudencial consolida 27 (vinte e sete) acórdãos relatados pelo Ministro Victor Nunes Leal no Supremo Tribunal Federal – STF, entre maio de 1964 e agosto de 1968, sendo 16 Habeas Corpus, 5 Recursos em Habeas Corpus, dois Recursos Criminais, três Conflitos de Jurisdição e um Recurso em Mandado de Segurança.

O total destes acórdãos, decididos após 1964 e antes de 1969, podem ser subdivididos em três períodos legislativos: os acórdãos referentes a crimes políticos decididos na forma da Lei nº 1.802, de 5 de janeiro de 1953, que define os crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social, que se fundamentam na Constituição brasileira de 1946; os acórdãos que foram avaliados também sob a influência do Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965, combinado com o Ato Institucional nº 4, de 7 de dezembro de 1966, que alteram dispositivos da Constituição de 1946 e, posteriormente, o Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967, que definiu os crimes contra a Segurança Nacional, a ordem política e social e deu outras providências conforme dispositivos da Constituição de 1967. Por fim, os acórdãos que vieram a ser publicados após a edição do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, que antecedeu a Emenda no 1/69 (Constituição de 1969).

Com relação ao primeiro item, não é preciso uma análise profunda para se verificar que a atuação do Ministro Victor Nunes Leal evoluiu no contexto da legislação anteriormente citada. Neste sentido, a sua hábil hermenêutica procurou evitar a utilização dos documentos autoritários, atendo-se, principalmente, à aplicação da Lei 1.852/53. A Lei de Proteção do Estado e da Ordem Política (1953), que evoluiu, de qualquer forma, no quadro de repressão ao chamado “Movimento Comunista Internacional”, tinha um grande número de dispositivos voltados para inviabilizar a tentativa de organizar, ou reorganizar de fato, ou de direito, partido suspenso por força de disposição legal (como foi o caso do Partido Comunista Brasileiro) e eventuais insurreições armadas (como acontecera em 1935). Esta citada Lei tratava de movimentação violenta contra a Constituição; atentado contra a vida, a incolumidade e a liberdade de autoridade pública; desobediência à Ordem Pública; contribuição com o serviço secreto e estrangeiro ou pôr em perigo a defesa nacional; revelação de fatos políticos através da espionagem.

Podemos subdividir o período de 64/68 que esteve basicamente suscetível à aplicação da Lei 1.802/53 em três matérias discutidas nos acórdãos: em 1o lugar, as investigações que envolviam o Partido Comunista do Brasil; em 2o lugar as investigações que envolviam a União Nacional dos Estudantes – UNE; e em 3o lugar, as investigações que envolviam a formação do Grupo dos Onze, de influência brizolista. De qualquer forma, as investigações e a orientação dos acórdãos estavam sempre associadas à leitura de atividades políticas relacionadas à reabertura do Partido Comunista Brasileiro, que fora dissolvido em 1947 (nos arquivos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro está processo de 1948, que trata de novo pedido de legalização do Partido Comunista Brasileiro, o que não ocorreu).

Esses acórdãos sobre a reorganização do Partido Comunista Brasileiro eram sobre a reconstituição do Partido, assinaturas em documentos sobre o tema, sendo que nestes casos o Ministro sempre buscava subsídios em acórdãos antecedentes do Supremo. Esta matéria era discutida em Recurso em Habeas Corpus, distribuídos para outros Ministros da mesma Corte (mesmo anteriormente ao período estudado). Nesse item baseado na Lei 1.802/53 se identifica acórdãos de período anterior à 1964 (1963), dentre eles movimentos para organizar a Comissão Permanente de Sindicatos da Bahia que estariam também sobre a influência do Partido Comunista, assim como movimentos pela Reforma Agrária e pelas Reformas de Base. Esta mesma linha aparece em acórdãos sobre ligação do Partido Comunista do Brasil com o Movimento Popular de Libertação de Angola – MPLA, quando concluiu que a Justiça Militar brasileira não tinha competência para tratar da matéria, deixando ao Supremo a discussão do Recurso de Habeas Corpus.

Ainda nesta fase legislativa, como observamos, existem decisões que envolviam a União Nacional dos Estudantes (UNE), na organização de seus congressos e encontros preparatórios, principalmente o de Florianópolis (1964). Todavia, encontra-se, também, material que discute a Lei nº 4.464, de 9 de novembro de 1964 (Lei Suplicy) que reorganizou a representação estudantil criando novos órgãos, omitindo a UNE como entidade representativa, ou seja colocando-a na ilegalidade. A UNE, todavia, apesar da ilegalidade imposta pela Lei Suplicy, se reuniu precariamente em 1964 no espaço da Faculdade Candido Mendes, mas  em julho de 1965 teve o histórico encontro na Faculdade Politécnica da Universidade de São Paulo, quando tirou uma diretoria. Imediatamente após a realização desse encontro, foram cassados os registros cartoriais da UNE, na forma do Decreto no 57.364, de 14 de janeiro de 1966. Apesar desse grave fato, o que significa que em principio a UNE não existia nem cartorialmente, em 1966 realizou-se outro Congresso no Convento dos Dominicanos, em Belo Horizonte, quando foi eleita a Diretoria que preparou o famoso Encontro de Ibiuna (a Lei Suplicy foi revogada pela Lei nº 228, de 28 de fevereiro de 1967, que foi revogada pela Lei nº 680 de 1969 e novamente reconhecida pela 7.395 de 31 de outubro de 1985).

Interessantemente, também dentre os acórdãos destaca-se um tema bastante interessante sobre a filmagem de cabra Marcado Para Morrer, no sertão da Galiléa, de Pernambuco, como proposta no Centro Popular de Cultura da UNE, que mostra uma tendência incompreensível no contexto das lutas políticas de esquerda dentro do Supremo Tribunal Federal. O voto não identificou na “hipotética filmagem” qualquer indicador de crime político e alega que nem mesmo o filme foi encontrado à época.

Ainda neste período de 1964/68, existem acórdãos que tratam da organização brizolista do “grupo dos onze”, que evoluiu também, numa linha mais radical, muito embora se apresentem como grupos que têm seus fundamentos em princípios cristãos  no regime democrático. A maioria do material é sobre ocorrências ainda de 1963/64 no interior do Rio Grande do Sul, principalmente em Ponta Grossa e Erexim, especialmente no distrito de Mariano Moro.

Cabe observar antes de analisar o segundo período legislativo que o Ato Institucional nº 2/65, no seu artigo 6º, alterou a redação do artigo 98 da Constituição de 1946, determinando que o STF se compusesse de 16 (dezesseis) Ministros, divididos em três turmas de cinco Ministros cada uma. Por outro lado, este próprio Ato Institucional, no 2 de 1965, resguardou aplicáveis os dispositivos materiais da Lei 1.802/53, mas transferiu, no entanto, a competência para julgar estes delitos, em primeira instância, para a Justiça Militar, mantendo o Supremo Tribunal Federal como instância recursal de 2o grau para os crimes políticos ou matéria semelhante, conforme a Lei 1.802/53. Genericamente, o Ministro entendia que os fatos que ocorreram antes da edição desse ato remanesciam na competência da justiça comum, e, como não poderia deixar de ser, os recursos em habeas corpus seguiam para o STF.

Em geral, como já observamos, estas tantas questões não são confrontadas juridicamente pelo Relator e, também, não estão explicitadas no voto. Esta posição acontece exatamente porque o caminho que o Ministro entendeu, mesmo tendo o Ato Institucional nº 2/65 transferido a competência para tratar em 1a instância de crimes políticos, para as Auditorias Militares, que a instância recursal final era o Supremo Tribunal Federal.

No que se refere especificamente ao segundo período legislativo, este foi um momento difícil, também para o Supremo Tribunal como um todo, pois  a Constituição de 24 de janeiro de 1967, com vigência prevista para 15 de março de 1967 (na sua Sessão V também tratava da Segurança Nacional nos artigos 89/91), entendia no parágrafo 1º do artigo 122 que: “esse foro especial poderá estender-se aos Civis, nos casos expressos em lei, para repressão de crimes contra a Segurança Nacional ou as Instituições Militares, com recurso ordinário para o Supremo Tribunal Federal”. Concomitantemente foi editada a Lei de Segurança Nacional (de 13 de março de 1967), que, por outro lado, entendeu no artigo 44 de excluir a competência do STF para apreciar os crimes políticos, sendo também que no artigo 45 dispôs que: “o foro especial estabelecido nesse Decreto-Lei prevalecerá sobre qualquer outro(…). O artigo 47 do referido Decreto-Lei foi mais positivo e dispôs que o Recurso Ordinário previsto na letra c do Inciso II, do artigo 114 da Constituição (de 24 de janeiro de 67), será interposto da decisão final no Superior Tribunal Militar”.

Neste sentido, os recursos a partir desse Decreto-Lei deveriam seguir para o Superior Tribunal Militar, mas isso não impediu no entendimento do STF, e, principalmente em função das decisões do Ministro Victor Nunes Leal, que os Recursos de Habeas Corpus apreciados na Justiça Comum de 1a instância fossem apreciados no Supremo Tribunal Federal, assim como os recursos de Habeas Corpus originários de Auditoria Militar.

Por outro lado, existem habeas corpus em que a alegação de soltura deve-se ao princípio do excesso de prazo na prisão preventiva, principalmente quando já ocorrera a prorrogação de 30 dias. Encontram-se também alguns votos que se orientam no sentido de reconhecer a falta de elementos essenciais constitutivos do crime e também devido à necessária aplicação na leitura do acórdão do princípio da indivisibilidade da ação penal. As linhas de argumentação utilizadas pelo Ministro Victor Nunes apóiam-se, principalmente, no princípio da ausência de justo motivo, inépcia da denúncia ou falta de justa causa. As decisões liminares em habeas corpus eram concedidas mediante a alegação da incompetência da Justiça Militar. Victor Nunes Leal, como se verifica no texto acima, evitou, nos seus votos, se referir ao Decreto-Lei nº 314/67 (Lei de Segurança Nacional) preferindo mesmo depois da promulgação desse Decreto, como já observamos, orientar as suas decisões na forma da Lei 1.802/53. A Lei de Segurança Nacional introduziu um panorama criminal, se não apenas diferente da Lei de 1953, com uma proposta conceitual que indicava no seu contexto político a evolução da natureza do Estado liberal e democrático para um Estado de Segurança Nacional, redimensionando (juridicamente) o tipo penal dos crimes políticos.

Finalmente, na terceira etapa legislativa, com a promulgação do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro 1968, sucedido pela Emenda Constitucional no 1, de 17 de outubro de 1969, definitivamente foi retirado do parágrafo 1º do seu artigo 129 a referência ao STF, restando, por conseguinte, à Justiça Militar a competência absoluta para tratar de crimes políticos, inclusive em última instância pelo Superior Tribunal Militar. O terceiro período, a partir de 1968, adquiriu uma natureza da ação política mais radical de esquerda. Esta fase se define por uma linha revolucionaria ruptiva, mas, paralelamente, e coincidentemente, neste mesmo período, em janeiro de 1968, após a promulgação do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, o Ministro Victor Nunes foi aposentado compulsoriamente e afastado da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, juntamente com seus contemporâneos, o Ministro Hermes Lima e o Ministro Evandro Lins e Silva, por Decreto de 26 de janeiro de 1969.

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