Edição

Critérios determinantes da relação de filiação no direito contemporâneo

5 de maio de 2002

Compartilhe:

Toda pessoa integra-se numa família em face as relações de parentesco que a filia – entendidas as expressões família e parentesco no sentido amplo. Os integrantes de uma família são unidos por laços de consangüinidade ou de afinidade.

O vinculo familiar na atualidade se verifica tendo em linha de consideração o seguinte:o casamento civil;o casamento religioso com efeito civil;a união estável.

Verifica-se nesta introdução que o parentesco originado destas vinculações, filiam seus frutos por laços de:consangüinidade; afinidade.

O parentesco por consangüinidade e a vinculação natural e jurídica que ocorre ou existe entre as pessoas que descendem de um mesmo ancestral ou, melhor explicitando, que descendem de um mesmo tronco familiar.

Neste contexto a expressão parente se emprega restritamente para indicar tão-somente os indivíduos ligados pela consangüinidade e disto decorre ser imprópria a expressão parente para indicar pessoas que se unem a família em razão do casamento.

Com efeito, torna-se impossível a abordagem da filiação sem adentrar no conceito de parentesco e sua origem.

Origem da família

A família nasce e se desenvolve pela comunhão de direitos, obrigações e sobretudo pelo encontro afetivo que se mostra presente nas situações sociais antes referidas e aqui reiteradas:

-casamento civil;

-casamento religioso com efeitos cíveis (Lei n° 1.110/50 e art. 71 e 75 da Lei n° 6.015/73);

-união estável entre homem e mulher (Lei n° 9.278/96 que regulamentou o § 3° do art. 226 da Constituição Federal através da Lei da Convivência).

A entidade familiar reflete-se na comunidade integrada pelos pais e seus descendentes. Surgindo desta comunidade a filiação, gerada pela paternidade responsável.

Neste contexto, o parentesco se estabelece, seja na linha da ascendência masculina ou na linha feminina.

Com relação ao vinculo de afinidade, guarda ela simetria ou paralelismo com o parentesco por consangüinidade, enleando os parentes de um cônjuge ou companheiro e de outro no que diz com as linhas,as espécies e a contagem dos graus.

No que diz com o parentesco por linha, tem-se a dimensão da linha reta e da linha colateral, sendo parentes na linha reta aquelas pessoas que descendem umas das outras na relação direta de ascendentes e descendentes.

Neste tópico interessa o tema em questão e versado nesta explanação pertinente aos critérios determinantes da relação de filiação no direito contemporâneo.

A filiação

Desde que o parentesco na linha reta ou direta e infinito, por mais afastado que seja o ascendente, guardara com o recente descendente a linha de parentesco, cada geração representa um grau correspondente a relação de parentesco de pai para filho.

A filiação que decorre na linha reta, de parentesco natural ou civil, qual seja a que decorre da consangüinidade ou não – (tal é a hipótese da adoção ou do reconhecimento judicial) – já não composta a distinção quanto a sua legitimidade, a teor do art. 227, § 6°, da Constituição Federal, in verbis:

“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar a criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito a vida, a saúde, a ali­mentação, a educação, ao lazer, a profissionalização, a cultura, a dignidade, ao respeito, a liberdade e a convivência familiar e comunitária, alem de colocá-los a salvo de toda forma de negligencia, discriminação, explo­ração, violência, crueldade e opressão.

§ 6.° Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualifica­ções, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas a filiação.”

Ocorre no direito contemporâneo a assimilação da filiação natural ou civil sem qualquer distinção quanta a origem da paternidade – compreendida esta na ampla extensão do genitor e da progenitora (geratriz) ou mãe.

De tal sorte que os filhos, sejam havidos ou não da constancia do casamento ou fruto da união estável ou do casamento religioso, integram a família de seus pais pelo laço da filiação ou do parentesco na linha direta ou na linha reta. E no desenvolver natural da humanidade dão continuidade a mesma família ou a seu desdobramento ou ramificação.

A moderna concepção de filiação tem por escopo a proteção do núcleo familiar enquanto célula da sociedade civil e destinatária da proteção do Estado.

A concepção moderna de filiação

Com efeito, suficiente não se mostrasse a destinação protectiva do Estado, a filiação ainda se mostra como o laço afetivo que une os filhos a seus pais em estreita ligação da qual origina-se a solidez da família que, fortalecida, inspira e projeta a base da sociedade na qual se integra.

Presunção de legitimidade da filiação

Efetivamente sob o aspecto jurídico, não ocorre mais quaisquer distinções quanta a filiação legitima ou ilegítima, seja em face a ordem constitucional, seja em razão de legitimação da família enquanto organismo que surge da vinculação afetiva e moral dos cônjuges e ou dos companheiros.

Da legitimação da origem do grupamento familiar, decorre a legitimidade da filiação de suas frutificações. Afirmando-se com efeito a inversão da, ordem antecedente e mesmo se propiciando a presunção de legitimidade aos filhos de quantos se unem com objetivo permanente.

O direito ao nome

Da presunção de legitimidade dos laços da filiação natural ou civil, tem-se uma projeção primeira, que reside no direito ao nome. O direito ao nome não regulamentado pelo Direito Civil Brasileiro no Código de 1916, integra a personalidade do individuo como atributo que o distingue e o identifica pessoal­mente.

Conveniente pontuar a lição de San Tiago Dantas, verbis: “O Código Civil Brasileiro não regulamentou o direito ao nome, pois isto parecia desnecessário a Clovis Bevilaqua, visto como, na sua opinião, o nome já estava suficientemente protegido com aquelas normas jurídicas que impedem a alguém de usurpar a personalidade alheia, fazer-se passar por outrem. Mas a verdade e que o direito ao nome cada dia se impõe mais a consciência dos juristas como uma categoria autônoma dos direitos da personalidade. É, realmente, um atributo do homem, que ele precisa defender de todos os modos, pois que por ele se identifica a sua personalidade e a usurpação dele por outrem pode trazer a mais graves consequencias, tanto patrimoniais como morais. Não se pode levar a pro­teção ao nome ao ponto de impedir que uma pessoa adote o nome de outra, mas pode-se levá-la ao ponto de impedir que uma pessoa que tenha um nome tome para certos fins, mesmo lícitos, o nome de uma terceira. Quer dizer que precisamos dar uma proteção especifica ao nome, pois, não basta a regra que proíbe o estelionato, impedindo que uma pessoa tome o nome de outra pessoa para cometer um ato ilícito; e preciso proteger mesmo a usurpação do nome inocente, pois que existe ai a apropriação de um bem que esta na personalidade de outra pessoa. Note-se que o nome civil não tem nada de comum com o nome comercial. Enquanto que o nome civil e um direito da personalidade com todas as características de intransmissibilidade, inestimabilidade, etc., O nome comercial é um bem patrimonial que esta nas mãos do comerciante como as mercadorias nos seus armazéns.”

O respeito a dignidade da criança e do adolescente.

Outro aspecto que se reflete na moderna concepção de filiação diz com o respeito a dignidade da criança e o direito do filho a convivência familiar.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, como se viu, nitidamente se erigiu a grau hierarquicamente superior, a noção da ”paternidade responsável‘, já que, de acordo com o art. 227, § 6°, “os filhos havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas a filiação”.

E a partir deste marco, novas leis ordinárias foram promulgadas com a finalidade de regulamentar o comando constitucional, mas sem que tenham conseguido, na verdade, alcançar tal desiderato.

A fragmentação da matéria por textos legislativos que se superpõem indicam a evolução social e política da condição dos filhos não-matrimoniais. A legislação infraconstitucional, abaixo relacionada, notícia o processo social evolutivo, a saber: Lei 7.841/89, que revogou o art. 358 CC, exatamente a norma impeditiva de reconhecimento de filhos havidos fora do casamento.

Lei 8.069/90, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, e da outras providencias.

Lei 8.560/92, que regula a investigação de paternidade de filhos havidos fora do casa­mento e da outras providencias, revogando o art. 337 CC.

O direito a declarada paternidade

Com relação a esta matéria, a Lei n° 8.560/92 estatui no art. 2°, e seus parágrafos, que “em registro de nascimento de menor apenas com a maternidade estabelecida, o oficial remetera ao juiz certidão integral do registro e o nome e prenome, profissão,identidade e residência do suposto pai, a fim de ser averiguada oficiosamente a procedência da alegação”.

Instala-se assim, por via obliqua, uma averiguação da paternidade. Tal dispositivo tem por escopo o resguardo do direito a declarada paternidade ­direito personalíssimo – art. 29 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Criticado tal dispositivo sob o argumento de que a opção do legisla­dor insinua-se claramente contra a autonomia da pessoa humana ao converter a paternidade, literalmente, de questão de estado em questão de Estado.

No entanto, a referida lei tem por finalidade não somente o resguardo do direito a paternidade como perquirir esta com a finalidade de torná-la responsável pela filiação que gerou, a teor do art. 226, § 7°, da Constituição Federal, verbis:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 7.° Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar e livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.”

Principio da paternidade responsável

Infere-se do teor da lei em co­mento o principio da paternidade responsável, que se encontra imbricado com o do respeito a dignidade da criança e do adolescente, pretendendo seja o legislador constitucional ou o infraconstitucional assegurar-lhes a certeza da paternidade e o direito ao convívio familiar.

Principio da afetividade

A afetividade tem fundamento social e viés constitucional; não sendo mais um aspecto exclusivamente sociológico ou psicológico. No que respeita aos filhos, a evolução dos valores da civilização ocidental levou a progressiva superação dos fatores de discriminação, entre eles. Pro­jetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade. Encontra-se na Constituição Federal brasileira três funda­mentos essenciais do principio da afetividade, constitutivos dessa aguda evolução social da família, máxima durante as ultimas décadas do Século XX: a) todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227, § 6°); b) a adoção, como escolha afetiva, alçou-­se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5° e 6°); c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, § 4°).

A filiação biológica era nitidamente recortada entre filhos legítimos e ilegítimos, a demonstrar que a origem genética nunca foi, rigorosamente, a essência das relações familiares. A Constituição não tutela apenas a família matrimonializada e não estabelece mais distinção entre filhos biológicos e adotivos. As pessoas que se unem em comunhão de afeto, não podendo ou não querendo ter filhos, e família protegida pela Constituição.

O principio da afetividade, assentado nesse tripé normativo, especializa, no campo das relações familiares, o macroprincípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1°, III, da Constituição Federal), que preside todas as relações jurídicas e sub­mete ao ordenamento jurídico nacional bem insuscetível de valor.

Emmanuel Kant, em li­ção que continua atual, procurou distinguir aquilo que tem um preço, seja pecuniário seja estimativo, do que é dotado de dignidade, a saber, do que é inestimável, do que indisponível, do que não pode ser objeto de troca. Diz ele:

No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se por em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa esta cima de todo a preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade“.

A dignidade humana e aquilo que e essencialmente comum a todas as pessoas, impondo-se um dever de respeito e intocabilidade, inclusive em face do Poder Publico.

Principio da afetividade na perspectiva da filiação

Impõe-se a distinção entre origem biológica e paternidade/maternidade. Em outros termos, a filiação não é um determinismo biológico, ainda que seja da natureza humana o impulso a procriação. Na maioria dos casos, a filiação deriva-se da relação biológica; todavia, ela emerge da construção cultural e afetiva permanente, que se faz na convivência e na responsabilidade.

No estagio em que nos encontramos, ha de se distinguir o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, com esta dimensão, e o direito a filiação e a paternidade/maternidade, nem sempre genético.

O afeto não e fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não do sangue. A história do direito a filiação confunde-se com o destino do patrimônio familiar, visceralmente ligado a consangüinidade legitima. Por isso, e a história da lenta emancipação dos filhos, da redução progressiva das desigualdades e da redução do quantum despótico,na me­dida da redução da patrimonialização dessas relações.

Conclusão

O desafio que se coloca aos juristas e doutrinadores, principal­mente aos que lidam com o direito de família, e a capacidade de ver as pessoas em toda sua dimensão humana e social, a ela subordinando as considerações de caráter biológico ou patrimonial. Impõe-se a materialização dos sujeitos de direitos, que são mais que apenas titulares de bens. A restauração da primazia da pessoa humana que se revela no direito a filiação, nas relações civis, e a condição primeira de adequação do direito a realidade e aos fundamentos constitucionais.

A família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas: a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida. O principio jurídico da afetividade, da dignidade da condição dos filhos, da responsabilidade dos pais faz despontar a igualdade entre irmãos biológicos e adotivos e o respeito a seus direitos fundamentais, alem do for­te sentimento de solidariedade recíproca, que não pode ser perturbada pelo prevalecimento de interesses patrimoniais. É o salto, a frente, da pessoa humana nas relações familiares.

No estagio em que se encontram as relações familiares e o desenvolvimento cientifico, ten­de-se a encontrar a harmonização entre o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, ate como necessidade de concretização do direito a saúde e prevenção de doenças, e o direito a relação de parentesco, fundado no principio jurídico da afetividade.