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De escutas e algemas

30 de setembro de 2008

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O fato é bem conhecido, mas é oportuno relembrá-lo.
No final do século XVIII, o Rei Frederico II da Prússia olhando pelas janelas do seu palácio de verão, recém construído, percebeu que não podia contemplar integralmente a bela paisagem porque um velho moinho, de propriedade do seu vizinho, poluía o visual. Orientado pelos seus ministros ordenou: “Destruam o moinho!”
O modesto moleiro, entretanto, não concordou com a proposta, embaraçando a ordem real.
Diante da resistência, o rei, com toda sua autoridade, mandou chamar o moleiro ao palácio, dirigindo-lhe as seguintes palavras: “Você não está entendendo, eu sou o rei e poderia confiscar a sua fazenda!” Ao que o moleiro redargüiu: “Ainda há juízes em Berlim!”
Os meandros dessa história não são conhecidos, mas o velho moinho continua lá, impávido, na cidade de Potsdam, a 30 minutos de Berlim, como um farol permanentemente aceso, símbolo da liberdade e da independência da magistratura. Como diria Lacordaire, “entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, é a liberdade que oprime e a lei que liberta”.
Tudo isso vem a propósito da atitude do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes que, em despacho recente, pronta e corajosamente, restabeleceu o império da ordem jurídica, mostrando, para quem tivesse olhos de ver, que o combate ao crime e à corrupção deve coexistir com a lei e com a dignidade da pessoa humana, ambas por um momento ultrajadas pelo açodamento e pela busca de falsa notoriedade.
O Poder Judiciário nos dias que correm, mais do que em qualquer outro tempo, está imprensado contra a parede por uma mídia que processa, julga e condena as pessoas cujos nomes de alguma maneira, certa ou errada, são referidos em escutas telefônicas, procedidas à sorrelfa.
Há algum tempo atrás escrevemos sobre esse tema, em crise semelhante, o seguinte:
“Mais uma vez a sociedade brasileira é sacudida pelos grampos e agora pela forma mais deletéria que se poderia admitir. A notícia veiculada pela imprensa brasileira é a de que todos os ministros do STJ estariam com os seus telefones grampeados. Como os do STJ já estavam grampeados mesmo, o fato já não causaria nenhum impacto, salvo se nesse novo enfoque não estivessem envolvidos valores fundamentais da democracia. A mídia logo se interessou pela matéria, em razão dos seus conceitos sensacionalistas, e a população feliz, embalada pelo noticiário dos escândalos dos últimos tempos. Afinal, imaginam que o país agora se democratizou. Ninguém mais escapa dos grampos redentores da moralidade pública e no Brasil de hoje, provavelmente no Brasil do PT, todos são iguais perante a lei. Aliás, a bem da verdade, todas as escutas, em qualquer das suas manifestações já foram institucionalizadas e banalizadas há muito tempo. Não há autoridade neste País que assuma um cargo público sem antes promover ou encomendar uma varredura, que se repetirá ao longo de todo o exercício. A população está vibrando. Doravante vamos saber de todos os segredos! Especialmente os amorosos, pecaminosos, tão ao agrado dos bisbilhoteiros de ocasião, inspirados nas tramas das novelas das 8. E tudo acabaria em pizza, como se convenciona dizer, se a mídia não tivesse ouvido a opinião dos ministros grampeados. O eminente ministro Celso Mello disse claramente: ‘É intolerável essa atmosfera em que vivemos, com a conduta abusiva de agentes ou órgãos entranhados no aparelho de Estado. A interceptação telefônica generalizada é indício e ensaio de uma política autoritária’. Da mesma forma, o eminente ministro Gilmar Mendes, vice-presidente daquela Suprema Corte: ‘A Polícia Federal se transformou num braço de coação e tornou-se um poder político que passou a afrontar os outros poderes. Basta ver o caso Vavá. Constrangeram até o Presidente. Hoje falo ao telefone sabendo que a conversa é coletiva’. Na mesma linha de raciocínio o eminente ministro Marco Aurélio Mello: ‘Hoje você não sabe mais quem está ouvindo suas conversas. Um dia minha irmã ligou para falar do espólio de meu pai. Repeti várias vezes que os valores se referiam ao espólio. Era para quem estava ouvindo entender’. Outros dignos ministros também reprovaram a prática espúria, como Sepúlveda Pertence e Carlos Ayres Britto, mas foi o ministro Eros Grau, constitucionalista consagrado, quem deixou no ar uma reflexão muito importante: ‘A lei não vale mais nada, a sociedade está abrindo mão das suas conquistas’. Em l988, há 25 anos portanto, o Brasil depois de uma mobilização memorável, onde todos os segmentos sociais se viram envolvidos, varreu da sua vida institucional uma ditadura de quase três décadas. Lembro-me bem do comício da Candelária, onde estiveram presentes todos os grandes líderes políticos do país, das mais diversas correntes de opinião, e uma multidão de milhão de pessoas enchendo a Av. Presidente Vargas, respirando a plenos pulmões os novos ares da liberdade. A partir de agora já não se prenderiam pessoas fora das estritas hipóteses legais; a dignidade da pessoa humana seria o farol projetando luzes sobre todas as relações entre o Estado e as pessoas; já não se invadiriam as casas a qualquer hora do dia e da noite para buscar provas contra o seu proprietário; os advogados estariam protegidos pelo segredo profissional e já não seriam considerados cúmplices dos seus clientes, nem precisariam declarar a origem do dinheiro que recebiam como honorários profissionais; os indiciados teriam notícia das acusações contra eles assacadas; o princípio da presunção da inocência seria insculpido no texto da Constituição, que se convencionou chamar de Constituição Cidadã; para a condenação criminal se exigiriam provas plenas e insuspeitas; as algemas seriam utilizadas como instrumento de segurança, e não como fatores de desmoralização das pessoas sem culpa formada; e a mídia só se prestaria ao seu relevante papel de guardiã dos princípios do Estado Democrático; a mídia não substituiria mais os poderes legalmente constituídos, acusando, julgando e condenando pessoas antes do pronunciamento dos órgãos estatais legitimamente constituídos. Pois bem, repetindo o eminente ministro Eros Grau, ‘estamos jogando fora quase três décadas de sofrimento, de lágrimas, de angústias e de conquistas democráticas. O que mais me assusta nisso tudo, é a sofreguidão com que as pessoas de uma maneira geral abraçam essas teses, aplaudindo as arbitrariedades cometidas e julgando moralmente as pessoas tais como apresentadas pelos jornais e pela televisão, sem nenhuma chance de defesa, até porque qualquer palavra nessas circunstâncias só se presta para jogar mais lenha na fogueira. A sociedade neste momento esta vivendo um terrível paradoxo, uma vez que, orientada pela mídia, reclama soluções em detrimento dos valores consagrados pelo processo político democrático. Qualquer pessoa neste País que levantar a sua voz em defesa desses princípios, há de ser tida pelo menos como politicamente incorreta e corre o risco de ser presa e algemada perante as câmeras de televisão’.”
Pobre de quem reagir. Na melhor das hipóteses será acusado de conivência com a corrupção, sob os aplausos dos mal informados. Graças a Deus, a intervenção heróica do nosso Presidente fez com que as pessoas de bem desse país parassem para refletir. Hoje, pelo menos duas questões envolvidas nos desatinos são objeto de especial atenção dos legisladores: o abuso de autoridade e o uso indiscriminado das algemas. A primeira é uma espécie de repetição da Lei nº 4.848 de 1965, ainda em plena vigência. O Brasil, como todos sabemos, tem memória curta. Em 1965, um ano depois de um movimento militar que se instalou no país em 1964, os líderes revolucionários, impressionados com o destempero dos seus quadros de segurança, resolveram editar a referida lei, destinada a coibir uma série de abusos e ilegalidades. Isso no auge do movimento, quando a ditadura começava a se instalar.
Pois bem, agora, restabelecida a forma democrática de viver, sob os aplausos das forças vivas deste país, novamente as autoridades precisam botar um basta nestes desmandos que, embora com outra roupagem, refletem o mesmo sentimento autoritário.
O que todos queremos é que a lei penal seja aplicada com todos os rigores, mas de acordo com a Constituição.
O caso das algemas é mais significativo. Parece que poucos se aperceberam da sua cruel significação. O Congresso Nacional também está votando uma lei para disciplinar o uso das algemas, coisa, data venia, rigorosamente desnecessária. Quem deve saber sobre as reais necessidades do uso desse mecanismo de segurança é a autoridade policial ao efetuar o transporte ou a captura do preso. E não me venham com essa história absurda de que os ricos também devem ser algemados tal como os pobres. Quem deve ser algemado, e a Polícia está farta de saber, são os presos que resistem à prisão, sejam ricos ou pobres.
No momento o que está acontecendo é que esse instrumento de segurança vem sendo usado como meio de desmoralização das pessoas referidas nas escutas telefônicas, culpadas ou não, fato que só posteriormente a prova vai esclarecer.
É tudo muito grave, porque afronta um preceito constitucional consagrado depois de séculos de arbítrio. O “nullum crimem nulla poena sine lege”, repetido na legislação penal de qualquer Estado Democrático, é um princípio básico do Estado de Direito. Pois bem, com a exposição pública que se vem fazendo das pessoas antes referidas, passou-se a punir os investigados antes da corporificação da acusação do MP, com a mais cruel das penas. Depois de algemado e exposto nos jornais e na televisão, qualquer outra punição passa a ser secundária, especialmente para os envolvidos nos chamados crimes de colarinho branco, para quem não têm aplicação os princípios que regem a finalidade das penas, matéria que sempre preocupou os filósofos do Direito Criminal. Todos que lidamos com a ciência penal.
Imaginávamos que a utilização da pena como fator de desmoralização pública do criminoso e a segregação reduzida a mero castigo tivessem sido banidas do nosso sistema penal.
Há alguns anos viajando pela Alemanha, pude ver e me horrorizar no Museu do Crime, em Rotterburg ob der Tauber com as práticas de desmoralização e de violência física usadas contra os infratores da lei. Mas isso, é claro, no período mais obscurantista da Idade Média.
Tenho a convicção de que o nosso Presidente, constitucionalista emérito, constatou o perigo que a reiteração dessas práticas poderiam trazer para o sistema democrático.
A democracia, principalmente nos países mais novos, é uma coisa tão delicada que precisa estar permanente protegida e vigiada pelos que têm a responsabilidade constitucional de zelar por ela. Foi nesse patamar que eu pude ver o gesto pronto e destemido do nosso Presidente, independentemente dos interesses individuais que ocasionalmente se encontravam sob a sua tutela.
Por um instante, quase três séculos depois, o presidente Gilmar Mendes fez ressuscitar em nós, juízes, aquela bela história ocorrida na Prússia, sobre a independência e a grandeza do Poder Judiciário, última trincheira do sistema democrático em que todos queremos viver.
Parabéns Ministro, que Deus vos ilumine, vigilante eterno da democracia brasileira.