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Delação premiada à luz do direito probatório no estado democrático

30 de abril de 2008

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A chamada “Delação Premiada” vem prevista esparsa-mente em nosso ordenamento e se constitui, em breve síntese e de forma bastante simplificada, em instituto processual-penal através do qual se beneficia alguém (seja réu, indiciado ou mero suspeito) em troca de informação “privilegiada” acerca da empreitada criminosa, identificando comparsas.

Não se pretende aqui aventar quais os pressupostos para a concessão de benefícios em favor do delator, nem se estes se devem dar de forma cumulativa ou isolada, tampouco se verterá sequer uma gota de tinta para resgatar o empoeirado debate sobre se tal instituto é direito subjetivo do delator ou faculdade jurídica. Dedicar-se-á o presente artigo – é bom precaver o leitor desde já – a algo mais humanista ou ‘jusfilosófico’: ‘pensar’ a informação oriunda da delação premiada à luz do direito das provas, tendo por ambiente legitimador o Estado Democrático.

A “delação premiada” parece, tal como uma pandemia virótica, ter contaminado muitos dos colegas que atuam no front de combate do Ministério Público contra o crime, em especial, o supostamente organizado. Um dia desses, ouvi estarrecido um antes lúcido colega anunciar entorpecido que com o que os delatores diziam denunciaria um monte de pessoas tidas até então como idôneas e respeitáveis.

Floreiam-se os méritos da “delação”, sustentando seus admiradores que só por meio de tal artifício é que as organizações criminosas poderiam ser desarticuladas; que só com tal artimanha legal é que crimes de materialidade fugaz poderiam ser provados; que só e somente só com este mecanismo é que o “Bem” venceria o “Mal”, dentre outras alegações cataclísmicas e apocalípticas, que, com as devidas escusas, beiram o radicalismo acéfalo.

Neste contexto, e em verdadeira contramaré, propõe-se um criterioso repensar. Os que têm ouvidos de ouvir não podem ficar surdos ao clamor dos inocentes, que, atingidos visceralmente pelo maligno anverso da delação, vêem-se às voltas e às turras com a (in)Justiça – sempre e sempre irreparável – de uma acusação temerária, baseada tão apenas (pasme-se!) na delação – e isto é o que aqui se critica enfaticamente.

Adiante-se: não se diz, sequer em meia linha, que a delação – se e quando tida como algo medianamente moral – deva ser abolida. Mas se insiste que a informação (precária) obtida por meio desta, por não sintetizar nem mesmo indício suficiente, seja sucedida de cuidadosa investigação para, somente após sua verificação, ser-lhe dado o crédito (ou descrédito) devido.

Não se reduz aqui a argumentar o paradoxo categórico de se dar mais valor ao delator, enquanto criminoso confesso, que àquele por este indicado como o agente catalisador das condutas criminosas. E tanto pior quando a dita delação vem precedida de depoimentos em sede policial em sentido absolutamente diverso e incompatível, sendo mero virtuosismo jurídico lembrar que a confissão pode ser cindida.

Nem mesmo se pretende fazer excursão ao mundo da Moral e se confrontar a vantagem de encontrar um (suposto) culpado à custa da chamada “sociedade de delatores”, experiência concreta – e desastrosa – vivida pela China ditatorial e pela Alemanha hitlerista há pouco tempo atrás. Pais entregando filhos; esposas delatando maridos; netos “dedurando” avós… Uma sociedade pestilenta.

Quem sabe Maquiavel não estivesse mesmo certo quando bradava que “os fins justificam os meios”? Teria sido Franz Kafka profético quando, ao escrever seu festejado livro “O Processo”, externou os pensamentos do protagonista K. no sentido de que “o processo não era nada senão um grande negócio, como os que ele já havia fechado com vantagem para o banco; um negócio no interior do qual, conforme a regra, espreitavam diversos perigos que tinham de ser conjurados”?

Nem se levantará a sufocante questão acerca da possibilidade de o primado constitucional da Moralidade Administrativa ser flexibilizado, ou antes, irremediavelmente rompido por norma infraconstitucional. Afinal, há a presunção de constitucionalidade da lei – quiçá especialmente reforçada quando favorável à acusação.

Tampouco se fará uso justamente dos argumentos dos que entendem de forma diversa para demonstrar, de forma cabal, a indisfarçável incoerência das denúncias oferecidas com base em delação: se as previsões mais pessimistas hão de se concretizar, servindo a delação como nossa “tábua de salvação”, resta por demais evidente que aqueles que a erguem não podem ser justamente aqueles quem se queria, antes de tudo, condenar. Não é soltando um criminoso e prendendo outro que a sociedade avançará.

Quer-se, em verdade, atentar aos incautos que o criminoso confesso pode fazer – e usualmente faz – uso inescrupuloso de tal benevolência legislativa, não em proveito da sociedade ou em detrimento do crime, mas sim em favor próprio. Não é difícil entrever-se o ‘falso dilema’ que se nos apresenta: escolheria o delator contar a verdade, incriminando seus comparsas (e quiçá correndo risco de vida, dada a provável vingança destes últimos), ou apontar um cidadão inocente, preferencialmente inofensivo, para servir como seu “bilhete” para o maravilhoso mundo para o qual o Ministério Público, de forma descuidada, pode lhe encaminhar? A segunda opção, por óbvio. Bem mais simples apontar alguém que certamente não lhe faça mal algum a “entregar” um comparsa perigoso e – por que não? – vingativo. Pueril pensar-se de forma diversa.

Sob um prisma teórico, instaria relembrar que a denúncia oferecida com lastro tão somente em delação premiada insujeita a qualquer posterior verificação padece de rotunda ausência de justa causa, condição para legítimo exercício do direito de ação penal.

Isto porque, repita-se, o fruto da delação premiada não consubstancia prova, tampouco indício, mas tão somente precaríssima suspeita – que deve, consigne-se uma vez mais, ser submetida à cuidadosa verificação de procedência –, que sequer atende ao vetor do in dubio pro societate. Admitir-se o contrário seria menoscabar a própria Constituição Federal e sua veste protetora contra perseguições vazias. A denúncia, nestes casos, deve ser rejeitada.

Relembrando-se a ilustrada lição do eminente colega Walter Coelho, MD. Procurador de Justiça e insigne professor de Direito Penal das Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura do Rio Grande do Sul, o indício pode ser classificado em três categorias distintas de acordo com seu caráter intrínseco: “indícios manifestos ou de evidência; indícios veementes, de alta probabilidade, também denominados de indícios próximos; e indícios vagos, isto é, leves ou remotos”.

Se os primeiros – ditos suficientes – levam a conclusões certas e indubitáveis, os segundos, também denominados contingentes necessários, apenas orientam, embora com alta probabilidade, para a simples pertinência de causa e efeito, fundados que estão numa relação ordinária de causalidade, não ensejando um raciocínio estritamente dedutivo, por recorrer à inferência analógica. Os últimos, de menor probabilidade, afiguram tão somente uma inexpressiva suspeita.

Quiçá se possa concordar seja tal informação fornecida pelo delator, despida de outras provas (ou indícios não remotos) e insujeita à verificação, identificada como indício, mas somente se este vier adjetivado como vago, leve ou remoto. Nada mais.

O Ministério Público, eleito pelo Constituinte Originário como Defensor do Regime Democrático, não pode se comportar, de forma irrefletida e sem maiores pudores, como Acusador Sistemático. Com muito esforço é que nossos antecessores conseguiram respirar ares mais saudáveis e entender que acusar sempre e incondicionalmente é uma lástima profunda que só a distorção profissional e o espírito pouco iluminado podem justificar. Sobrevive o ideal de ‘fazer justiça’ e não de ‘ser justiceiro’. Deve-se, sem hipocrisia, resistir à diabólica tentação do conhecido “denuncio agora e o réu que se defenda”. Deus, livrai-nos deste mal!

Se admitida denúncia tão apenas com base em delação premiada, por quantos anos se esperará para que a suprema injustiça seja corrigida? Já há muito se dizia que o mero indiciamento infundado do cidadão de bem em inquérito policial é inominável constrangimento, devendo, se incorreto, ser prontamente retificado. Pois bem: imagine-se o grau de devastação provocada por uma denúncia (in)fundada somente em delação premiada?

Pode-se afirmar, sem medo de errar, que a condenação do inocente se dá sumariamente e sem direito de defesa no exato e irresgatável momento em que a denúncia é distribuída ao Juízo. Na máxima kafkaniana, “ter um processo desses já significa tê-lo perdido.”

Os danos inestimáveis à honra, à família, à cidadania e à dignidade humana – tudo sem contar gastos, no mais das vezes, bastante significativos, com advogados – não serão cobrados de ninguém, bem menos do delator, que, então, somará ao seu cartel mais um delito odioso. Mauro Fonseca Andrade aduz que “foram noticiados, até, casos de pessoas investigadas – ao depois reconhecidas como inocentes – que cometeram suicídio, diante da verdadeira execração pública a que se viram expostas”. E com isto não se pode compactuar.

A polícia judiciária – tanto mais quando incorporada pelo Ministério Público – há de cumprir seu papel constitucional! Deve-se investigar para que, depois, se possa denunciar e não – jamais! – o odioso inverso. Não se denuncie para, em sede processual, colher um lastro mínimo indiciário, vale dizer, investigar. Bem ao revés: investigue-se para denunciar. A anômala, perniciosa e abjeta “denúncia investigativa” não pode ser esposada por aqueles que têm o ‘múnus’ constitucional de defesa do regime democrático.

Volte-se aos ensinamentos de Walter Coelho, ipsis litteris: “Não bastam, pois, simples suspeitas ou meras presunções para instaurar-se a ação penal. Há que ter indícios significativos ou mesmo provas em sentido amplo do fato e de quem o praticou ou para ele colaborou, material ou moralmente”. A palavra vazia do delator – indício vago que é – não permite o oferecimento de denúncia nem seu aditamento.

Adrede, acresce o autor que, no que concerne às medidas “assecuratórias” (como o seqüestro de bens), basilar estejam escoradas, ao menos, em indícios veementes, havendo sido o Código de Processo Penal bastante enfático em seus artigos 126 e 132. Ad lateris, anota Coelho que assim também se deve dar com a “sentença” de pronúncia, perfilhando-se a Bento de Faria (in “Código de Processo Penal”), André Martins de Andrade (in “A Reforma do Júri”), Ary Azevedo Franco (in “Código de Processo Penal”), Pimenta Bueno (in “Processo Criminal”) e Eduardo Espíndola Filho (in “Código de Processo Penal Anotado”). Noutras palavras, tampouco nestes casos será bastante a informação oriunda da delação premiada despida de outras provas ou indícios e insujeita à mínima verificação de veracidade.

E vale tudo isto para chamar os colegas a um segundo momento de reflexão sobre o uso impensado de “delação premiada”. Não se trata de simplesmente questionar a moralidade maquiavélica de se premiar um bandido (ainda que escorado na lei [inconstitucional?]), mas o de fazer inocentes pagarem injustamente o prêmio àquele, tendo seus nomes, suas vidas e suas famílias jogadas à lama, negando-lhes a própria cidadania e a mínima dignidade humana. Para isto, não há resgate.

Antes de denunciar, pronunciar ou requerer medidas cautelares constritivas de direitos (à liberdade ou até ao patrimônio) com base na delação, absolutamente fulcral à prévia verificação das informações fornecidas pelo réu confesso, notadamente quando despidas suas palavras de provas do que diz, para, somente após, se for o caso, o Ministério Público agir.

Conclusões
• A informação (precária) obtida por meio da “delação pre-miada” não sintetiza prova, tampouco indício ple-no ou suficiente. Trata-se de mera suspeita ou indício vago (também conhecido como leve ou remoto);

• Tal informação deve ser sucedida por cuidadosa verificação para, somente após, ser-lhe dado o crédito (ou descrédito) devido;

• Trata-se de anômala, perniciosa e abjeta “denúncia investigativa” aquela oferecida com base tão apenas em tal informação fornecida pelo delator, despida de outras provas (ou indícios suficientes) e insujeita à dita verificação;

•   Mais grave e mais odioso que o indiciamento infun-dado do cidadão de bem em inquérito policial é o inominável constrangimento provocado pela denúncia (in)fundada somente em informação oriunda da delação premiada;

•   O aditamento à denúncia, por idêntica fundamen-ta-ção, não pode ter espeque na palavra vazia do delator;

•  No que concerne às medidas constritivas de direito (à liberdade ou ao patrimônio), basilar estejam escoradas, ao menos, em indícios veementes, não sendo, portanto, a princípio, viável lastrarem-se em tal informação fornecida pelo delator, indício vago que é;

• Tampouco será bastante para a pronúncia a infor-ma-ção oriunda da “delação premiada”, despida de outras provas (ou indícios suficientes) e insujeita à mínima verificação de veracidade;

•  Obviamente, exceções se dão quando a palavra do delator vier acompanhada por documentos ou outras provas que permitam prontamente a verificação de sua (im)pertinência;

• O Ministério Público não é acusador sistemático e o Pro-cesso Penal não serve à condenação a qualquer preço.