Democracia comunitária, construção de identidade e o ensino contextualizado do Direito

31 de agosto de 2011

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1. Democracia comunitária

Leonardo Boff, aqui e ali, vem tratando da democracia comunitária, expressão que não vejo senão associada ao seu nome no Brasil.

Por democracia comunitária ele entende a espécie de organização popular que nasce das iniciativas em que todos opinam e das quais participam, no espírito comunitário da troca, da interdependência, da solidariedade.

Parece tratar-se do resgate do modelo de negociação social que envolve todos os membros da comunidade, diretamente, e não por meio de representantes. Uma forma genuína de tomada de decisões em que se prestigia o bem comum como princípio ético, num profundo enriquecimento do espírito de cuidado com o outro.

Nesse passo, a democracia comunitária “é singular dos povos originários da América Latina e pouco conhecida e reconhecida pelos analistas. Ela nasce da estruturação comunitária das culturas originárias, do norte até o sul de Abya Yala, nome indígena para a América Latina” (BOFF, 2010).

Ele afirma que esse tipo de democracia “busca realizar o ‘bem viver’ que não é o nosso ‘viver melhor’, que implica que muitos vivam pior. O ‘bem viver’ é a busca permanente do equilíbrio mediante a participação de todos, equilíbrio entre homem e mulher, entre ser humano e natureza, equilíbrio entre a produção e o consumo […]”.

É claro que Boff trata da democracia comunitária no viés que tem sido objeto de sua obstinada dedicação: a paz social, a construção de um modelo de convivência repleto de cuidado, de gentileza, de pacto para tornar o convívio social realmente harmônico e produtor de homens mais felizes.

Nas palavras dele, “trata-se de uma democracia sociocósmica, onde todos os elementos são considerados portadores de vida e por isso incluídos na comunidade e com seus direitos respeitados”. São sujeitos concretos, tomando decisões concretas, coletivamente.

Romão (2005, p. 20-21), in Justiça procedimental, destaca que, embora não possa dizer com precisão o momento em que “a legitimação democrática do direito se revelou um problema”, ele pode afirmar que o problema da legitimidade e da efetividade do direito se tornou algo digno de investigação quando se deparou com duas questões: (i) como estruturar relações sociais solidárias para superar a opressão e (ii) como promover o exercício da capacidade comunicativa dos sujeitos.

A retomada do poder de autogerir, que se dá na implantação da democracia comunitária, é, certamente, uma forma de estruturação de relações sociais solidárias, nas quais todos os membros, efetivamente, se importam com o destino de cada um.

Porém, dar mais um passo e auxiliar tal comunidade a vencer a opressão depende de um trabalho mais intenso, no qual se estabeleçam claramente as bases de compreensão do arcabouço de direitos e de proteção a que cada pessoa faz jus. E aí se dá a segunda pergunta de Romão: como promover tal coisa?

Já orientando esse discurso para uma forma prática de realizar um projeto de ensino jurídico contextualizado, parece claro que as comunidades precisam ser auxiliadas no processo de se compreender coletivamente.

Participando da ação de Mobilização pelo Registro Civil, em 2003, na Bahia, encontramos pessoas com mais de 60 anos sem nenhum documento civil, morrendo de doenças cuja cura já foi encontrada, enterradas com o nome simples com que foram batizados, sem compor sequer a estatística oficial do censo demográfico.

Inexistentes para o Estado, vivendo em rincões distantes, alheios aos direitos previdenciários e à suposta gama de proteção de que eram destinatários, em completo abandono, esses cidadãos e toda sua comunidade pertencem a uma classe de brasileiros completamente esquecidos.

Por isso mesmo, é necessário encontrar, urgentemente, nossa identidade, vencendo as opressões, comunicando eficazmente nossa condição de cidadãos que pertencem, que fazem parte e que não são apenas “zeros econômicos descartáveis” (BOFF, 1999, p. 18).

2. Identidade latino-americana

Defendendo a necessidade de desenvolver uma identidade latino-americana, Wolkmer (2004, p. 2) propõe “introduzir, discutir e construir um pensamento crítico-libertador, síntese real da nossa própria experiência histórica, sociopolítica e jurídica”.

O autor reflete ser necessário revelar a “originalidade e autenticidade do ‘ser’ latino-americano”, embora a democracia conceituada por Boff já se apresente como um indicativo de que temos um constructo social importante, revelador desse modo de ser, que nos distingue de outras culturas.

Por que o Direito não pode contribuir com esta rica proposta que envolve criatividade, invenção, construção e crítica?

Da apática e discursiva apropriação de textos legais nos cursos de Direito, temos proposto passar a uma militância na mitigação de problemas sociais agravados pela indiferença dos indivíduos e pela falta de solidariedade, promovendo o “enriquecimento da razão intelectual com a razão sensível” (BOFF, 2010).

Apesar das grandes dificuldades representadas, especificamente, pelos estudantes que encaram a formação jurídica apenas como um passo necessário à aquisição de melhores condições de vida por meio dos concursos públicos, ainda florescem projetos que confrontam os estudantes com a sociedade mutilada de seus direitos, envergada sob o imenso peso das injustiças sociais.

Boff afirma que essa organização comunitária se apresenta como um movimento de contrafluxo em relação à globalização: uma nova forma de organização local, capaz de respeitar as singularidades de modo claro e resoluto.

Será esse um caminho para desvendar e qualificar nosso “jeito” latino-americano?

3. Os arranjos produtivos locais: um exemplo de efetividade

Buscando nossa identidade, podemos encontrar exemplos interessantes e criativos de um jeito brasileiro de enfrentar as dificuldades. Os Arranjos Produtivos Locais, do Sebrae, por exemplo, criam um novo modelo de desenvolvimento da produção, no agronegócio, levando em conta as chamadas vocações regionais, com o objetivo de “superar as deficiências oriundas do porte e isolamento” dos pequenos negócios, nos quais não estão presentes “as vantagens da economia de escala, do investimento em inovação produtiva e gerencial” (Sebrae, 2011).

O projeto se desenvolve, fundamentalmente, dentro do conceito de democracia comunitária, permitindo que a produção local, caseira, familiar e pequena seja absorvida pela comunidade, num movimento que mantenha as riquezas ali circulando, independente do movimento mundial ou global, que atende melhor aos interesses dos grandes produtores.

Esse belo projeto é um exemplo de ruptura com o pressuposto de que não é possível construir uma nova forma de satisfação das necessidades de consumo. Pode ser uma difícil alternativa a uma sociedade que se solidifica dentro do conceito de globalização alienante, mas é uma possibilidade real de mudança de paradigma ou, apropriando-me das palavras de Volkmer, “é a libertação como desafio, como transposição do instituído, como utopia real, como redefinição da solidariedade e afirmação da alteridade” (2004, p. 8).

Além disso, é claramente um modelo aplicável a outras áreas do conhecimento, em especial ao ensino do Direito a partir das comunidades.

Pelas assombrosas estatísticas do Poder Judiciário, nota-se que o brasileiro está entre os maiores demandistas do mundo, gerando milhões de processos por ano. Ao lado de ser um problema imenso para o Poder Público, é um sintoma evidente de que não possuímos meios de solução de conflitos eficazes e aceitos socialmente.

Compreendendo melhor nossos direitos, ou melhor informados sobre eles, geramos a tendência de aumento das demandas.

Acredito que os Arranjos Produtivos Locais, destinados a superar as dificuldades da produção e distribuição de bens e riquezas, podem servir de modelos para Arranjos Legais Locais nos quais a população tenha, a um só tempo, a oportunidade de conhecer os seus direitos e de encontrar formas de solucioná-los sem o auxílio do Poder Judiciário.

Uma imensa quantidade de pequenas empresas poderiam ser beneficiadas, por exemplo, com a compreensão dos direitos do consumidor, trabalhistas, previdenciários, tributários, entre outros.

Tal projeto mobilizaria profundamente os estudantes de Direito, caracterizando-se como uma autêntica pedagogia da libertação (WOLKMER, 2004, p. 19).

4. Importância do ensino jurídico para a democracia comunitária e para a consciência latino-americana

Não seria temerário dizer que a democracia comunitária, que surge em diversas localidades da América Latina, não somente no Brasil, é um movimento emancipatório, necessariamente ligado à formação da consciência popular sobre o papel que cada um desempenha na estamparia do tecido social.

Isso é concebido como realidade em organização comunitária para Boff e como proposta de uma consciência latino-americana por Wolkmer.

Contribuindo com este debate, Jelin & Hershberg (2006, p. 19) apresentam a seguinte questão:

“Que fatores determinarão os aspectos para a construção, na América Latina, de democracias em que os direitos de cidadania alcancem um âmbito que vá além da esfera política formal?”

Vejo uma resposta na educação e uma resposta bem clara na educação para os direitos, que pode e deve ser patrocinada pelas centenas de cursos de Direito existentes no país. Há, em verdade, um pequeno exército de estudantes de Direito no Brasil para cumprir essa agenda.

A conquista de direitos e a preservação de direitos já alcançados são passos fundamentais a amparar o paradigma de convivência democrática participativa, e nesse viés é que o Direito pode apresentar toda a sua pujança.

Por um lado, porque poucas coisas produzem maior autonomia do que a compreensão dos direitos, o desvendamento das extraordinárias potencialidades de que o sujeito é portador pelo simples fato de ser um nativo. Por outro lado, porque o modelo atual de ensino jurídico está tão desgastado que a oportunidade de sua reforma deve ser apropriada com grande entusiasmo.

Camus (2007, p. 21), fazendo suas considerações sobre o suicídio, afirma que “no apego do homem à sua vida, há algo mais forte que todas as misérias do mundo”, e eu reflito que na compreensão que um homem adquire dos seus direitos, há algo mais poderoso do que as mais básicas necessidades de sobrevivência.

A emancipação de um povo reside na capacidade de compreender os limites dos seus direitos, descobrindo sua liberdade, sua força e a margem de expressão de sua individualidade no mundo.

Por isso, o processo de ensinar e aprender Direito representa mais um postulado para o fortalecimento individual. Uma força que simultaneamente nos torne sensíveis para a grande causa social e nos leve a reivindicar a sociedade sonhada, com identidade e consciência latino-americana.

A prática da democracia comunitária, orientada pelo conhecimento e reconhecimento dos direitos, pode produzir efetivamente uma sociedade mais justa e menos oprimida.

Não se trata, vale dizer, de uma inconsequente apresentação das normas, numa liturgia oca de vontade, meramente informativa, mas de um enfrentamento das questões fundamentais para a construção daquele ideário libertador, daquele modo de ser brasileiro e latino-americano.

Os estudantes do Direito que se envolvam com o projeto dessa sociedade plural e igualitária certamente estarão marcados, definitivamente, para a praxis de qualquer profissão jurídica.

Trata-se de “pensar a educação sob a perspectiva comunitária, popular e antipositivista. Um paradigma educacional identificado com as necessidades reais da vida humana”. É isso que se propõe: “é a educação libertadora que rompe com a estrutura escolar autoritária, ineficiente e domesticadora, responsável pela reprodução da injustiça da sociedade e pela formação de padrões alienantes”. (WOLKMER, p. 18).

As comunidades estão ávidas por esse conhecimento, desejosas de melhor compreender os seus direitos e de melhor exercitá-los.

Desse encontro, pode decorrer tanto a busca de aperfeiçoamento pessoal do estudante, como a oportunidade de ajudar na construção da paz social, no elevado pensamento kantiano, aqui reduzido singelamente.

A democracia comunitária, portanto, parece uma porta aberta para a experimentação do Direito libertador sobre o qual falamos e com o qual sonhamos. Um Direito que não pode prescindir da experiência social e que contribua, efetivamente, para a formação de um status latino-americano forte, pujante e livre.

Modo de atuar nessas comunidades não nos faltam. Motivos para tanto, sobram.

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Referências bibliográficas

http://sustentabilidadenaoepalavraeaccao.blogspot.comhttp://sustentabilidadenaoepalavraeaccao.blogspot.com/2010/07/leonardo-boff-um-design-ecologico-para.html

http://www.sebrae.com.br/uf/sergipe/areas-de-atuacao/apl

CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Trad. Ari Roitman e Paulina Watch. 4ª ed. São Paulo: Record, 2007.

JELIN, Elizabeth & HERSHBERG, Eric (orgs). Construindo a democracia: direitos humanos, cidadania e sociedade na América Latina. Trad. Ana Luisa Pinheiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

ROMÃO, José Eduardo Elias. Justiça procedimental: a prática da mediação na teoria discursiva do Direito de Jürgen Habermas. Brasília: Maggiore, 2005.

WOLKMER, Antonio Carlos (org). Direitos humanos e filosofia jurídica na América Latina. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.