Denuncismo e degradação do Direito

5 de junho de 2005

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A denúncia da prática de ilegalidades por uma autoridade pública é um fato grave, mais grave ainda quando se trata de uma autoridade superior, que deve agir com a máxima responsabilidade pela repercussão jurídica e social de seus atos. Por tudo isso, a denúncia de ilegalidade não pode e não deve ser feita com leviandade, sem que o denunciante assuma a responsabilidade pelas acusações. Uma denúncia leviana sempre deixa suspeitas quanto aos seus objetivos e deve ser repudiada, para que não produza os efeitos ilegais e imorais pretendidos pelos que a fazem. Essas breves considerações foram sugeridas por vários fatos que vêm ocorrendo no Brasil nos últimos tempos. Denúncias têm sido feitas com escândalo, pretendendo aparentar preocupação com a legalidade, mas com tal inconsistência que fica evidente serem inspiradas numa falsa e hipócrita defesa do direito e do bem público. Não seria absurdo imaginar que há o propósito de comprometer a imagem de instituições e autoridades, para semear o descrédito no direito e nas instituições jurídicas e abrir caminho para aventuras antidemocráticas.

Na seqüência de inovações positivas, ocorridas no Brasil com o fim da ditadura militar, o povo brasileiro elegeu um operário para a Presidência da República, dentro da mais absoluta normalidade democrática e constitucional, mas os preconceituosos e os tradicionais ”donos do poder” ainda não se conformaram com isso, o que explica alguns episódios de falso moralismo e falsa preocupação com o respeito às normas jurídicas, que foram manchetes recentemente. Assim, por exemplo, noticiou-se, com grande escândalo, que o presidente da República, numa conversa informal com uma alta autoridade, soube que nas privatizações efetuadas durante o governo Fernando Henrique houve corrupção, tendo agora o presidente recomendado que não se levantasse esse tema pela imprensa, o que, para os oportunistas do moralismo, estaria caracterizando o crime de improbidade, justificando até a cassação de seu mandato. Por mais esforço que se faça, não há como caracterizar aí um ato de improbidade do presidente e não custa lembrar que a ocorrência de corrupção naqueles episódios foi referida pela imprensa e chegou a ser objeto de pedido de uma CPI, que os donos do poder trataram de sepultar. Por que a imprensa não foi agora aos próprios arquivos e não restabeleceu a memória de fatos precisos que foram então noticiados? Por que a hipocrisia de sugerir a prática de crime pelo atual presidente por não falar sobre a possível prática de corrupção no passado, silenciando quanto a esse passado?

Nessa mesma linha, uma revista de grande circulação publicou, com escândalo, as declarações atribuídas a um agente policial, segundo o qual um grupo de guerrilha estrangeiro teria planejado dar dinheiro para a campanha eleitoral do atual presidente da República. Antes de mais nada, o denunciante que vendeu a notícia à revista diz estar transmitindo informações obtidas no exercício de suas funções públicas e classificadas como sigilosas. Se esse personagem existe, ele é desonesto e pratica um crime, vendendo a um órgão de imprensa informações que ele mesmo diz serem produto de investigação policial sigilosa. A par disso, é mais do que lógico que as declarações de um tal personagem, feitas atrás do biombo do anonimato, não podem servir de base a um procedimento jurídico, tanto pelo anonimato quanto por não merecerem o mínimo crédito informações oriundas de uma situação imoral e ilegal.

O brasileiro deve ficar atento e repudiar esse denuncismo, que, na melhor das hipóteses, é mal explicado e mal fundamentado. A restauração democrática, a implantação do Estado de Direito, a adoção de uma Constituição inspirada no humanismo, na liberdade e na justiça, tudo isso é extraordinariamente importante e não pode admitir retrocessos. Tudo foi conquista do brasileiro e deve ser por ele defendido. Para ser coerente com essas conquistas, o povo deve fazer-se presente, criticando o governo e as autoridades, quando entender que não está sendo atendido o interesse público, e participando ativamente do governo, por meio de organizações da sociedade. Sem qualquer espécie de discriminação, homens e mulheres devem trabalhar juntos, com espírito de justiça e solidariedade, para garantir o respeito à dignidade e a prioridade do desenvolvimento humano. Mas, sejam quais forem os desafios, o subterrâneo da legalidade deve ser repudiado. As instituições jurídicas podem ser aperfeiçoadas, mas é indispensável que sejam preservadas, para que não prevaleçam a violência e a corrupção.