Direito e dependência química II

26 de agosto de 2013

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Introdução à segunda parte

A Escola Psicanalítica não foi a última na escala teórica cronológica da Criminologia.

Uma das definições de Criminologia é a Ciência interdisciplinar que estuda o Crime, o Infrator, a Vítima e o Controle Social do Delito.

Os objetivos principais são as investigações acerca das Causas pessoais e sociais das Condutas do Infrator e da Vítima e o estabelecimento de Princípios para Controle Social de comportamentos.

Criminologia e Direito se distinguem por ser a primeira empírica e multidisciplinar (Ciência do Ser) enquanto o Direito é Normativo e Valorativo ( Ciência do Dever Ser).

A Criminologia diz a que veio: servir de referência Teórica para implementação de Estratégias de Politicas Criminais para Controle de Criminalidade por parte do Poder Público

O mesmo não se pode afirmar em relação aos Estudos Teóricos Comportamentais em Dependência Química.

Às vezes a impressão é de tentativa de Predição de Comportamentos, ora a de Validação de Práticas de Tratamento Cognitivo sem a inclusão da Subjetividade e da indicação de qualquer Paradigma Ético – o que equivaleria em Criminologia a estudar o Crime excluindo desse estudo o Infrator e seu Contexto Cultural.

Estudar o Homem através dos ratos ( ou como se os  fossem, em ambientes artificiais e isolados, contados em milhares, querendo dar conta de fenômenos de bilhões) como soe acontecer, em regra, nas Pesquisas financiadas por Verbas Públicas.

Por outro lado, de que Causa está a se falar, na medida em que a Causalidade é comum aos dois ramos?

A esse respeito, Houaiss define Causa como:

o móvel de um ato, o que faz com que algo exista ou aconteça, Etiologia.

E é sobre os Paradigmas Etiológicos da Toxicomania que se pretende traçar um paralelo com as Escolas da Criminologia, paralelo esse que não significa identidade ou correlação expressa entre os dois ramos do Saber, mas de indicar pontos ou nós que os perpassam.

Houaiss também descreve os quatro modelos causais que Aristóteles concebeu:

Causa Final – a determinação da realidade de um ser por meio da força atrativa exercida por um fim ou objetivo (uma idéia gerada na mente do carpinteiro é a causa final da mesa).

Causa Formal – particularização e determinação que, a partir de uma forma geral, preexistente, produz ente individualizado e material (a forma geral que caracteriza todas as mesas, diferenciando-as de todos os outros objetos, é a causa formal de uma mesa concreta a e determinada.

Causa Material – a obtenção de uma forma específica pela matéria indeterminada é o que resulta em um objeto particular (a madeira é a causa material de uma mesa).

Causa Eficiente – fator que, por meio de uma ação, gera o efeito ( o carpinteiro é a causa eficiente de uma mesa)

A única modalidade mantida pela Ciência Contemporânea – e olhe que tão somente para se definir exatamente o que é Ciência e o que é Contemporâneo, Pós moderno e outras expressões afins são necessários livros e pesquisas – a Causa Eficiente. Mas será que à Causalidade Eficiente correspondem as Teorias Causais da Dependência Química?

Em “Etiologia dos Transtornos Relacionados ao Uso de Substâncias Psicoativas” um dos Capítulos que compõem o livro “Dependência Química, Prevenção, Tratamento e Políticas Públicas”, organizado por Alessandra Diehl, Daniel Cruz Cordeiro e Ronaldo Laranjeira, Editora Artmed, página 43 e seguintes, Luciane Ogata e Marcelo Ribeiro afirmam:

os modelos etiológicos são teorias com embasamento científico que objetivam explicar, guiar e orientar as observações dos autores acerca do mundo real. A finalidade dessa teoria é explicar a ordem e o motivo da ocorrência de determinados fenômenos e oferecer uma base para que essa observações possam ser constatadas por outros pesquisadores, possibilitando a predição dos fenômenos para fundamentar intervenções.

Tal afirmação deixa no ar a seguinte pergunta: que intervenções?

Se as Teorias Causais da Dependência Química somente constatam, sem indicar qualquer caminho específico de Intervenção é sinal que o Saber ficou excessivamente departamentalizado, seccionado, especializado. O que contraria o alegado multidisciplinarísmo da abordagem declarada no discurso dos que pertencem a área de Saúde.

De todo modo, tal afirmação vem de encontro à uma das definições de Houaiss sobre causa:

no empirismo, evento que condiciona a ocorrência regular e constante de um determinado efeito, em um encadeamento cuja previsibilidade decorre da frequência com que esta relação sucessiva é constatada pelo observador humano.

Nesse ponto algumas diferenças já podem ser percebidas entre Criminologia e as Teorias Causais da Dependência Química. Na primeira o objetivo de Controle Individual e Coletivo de Conduta é expressado e é limitado pela Ética Jurídica e pela Moralidade Pública.

As Teorias Causais da Dependência Química sugerem, guiam, indicam, mas não declaram um Objetivo Público, uma Ética Objetiva qualquer, nem afirmam estarem submetidas a qualquer Limite Jurídico ou Marco Legal

Se a Criminologia pode chocar pelo que afirma, a Causalidade na Dependência Química preocupa profundamente pelo que ela não diz! A analogia com o Adicto é inevitável: é o não dicto ou ausência de dicto.

Prosseguem os Autores afirmando que “os modelos etiológicos sobre dependência tentam ainda explicar os motivos do primeiro episódio de consumo, da permanência do uso ocasional, da manutenção do uso, do surgimento e padrões de uso nocivo e as razões para o surgimento da Dependência”    

Essa é a proposta atual do Saber na Toxicomania.

Importante registrar que, na Teoria do Crime, o Paradigma Etiológico como Patologia constatada por componentes específicos – físicos como na Escola Positivista de Lombroso ou Comportamentais foi de há muito considerada ultrapassada, quer pela ruptura, inerente a essa posição, com as demais ciências – que criavam uma dicotomia artificial entre NaturalCultural e entre SerDever ser – quer pela ausência de abordagem Biopsicossocial

As Regras de Causalidade da época eram Físicas e Mecânicas, hoje atualizadas pelas da Cinética, Relatividade e Mecãnica Quântica.

Claude Olivenstein em a “Clinica da Toxicomania” já alertava que, quando se trata de Toxicomania, as Regras de Causalidade cedem às da Intensidade e a Mecânica às da Cinética dos Movimentos.

IV – Os primeiros modelos etiológicos da dependência química

IV-A – O modelo moral

O Modelo Moral foi a primeira tentativa de entender e controlar o uso de substâncias Psicoativas. Esse modelo enfatiza a “Escolha Pessoal” como Causa Primordial.

Considerado pelos Autores já citados – Alessandra Diehl e Colaboradores – como uma reedição do que fora concebido desde o uso de álcool na Antiguidade, o modelo entendia o uso excessivo como uma violação consciente das normas sociais, sendo, por isso, passível de castigos e penitências.

Os Castigos e Penas já foram detalhados quando dos Capítulos II e III desse texto, dentro da Escola Positivista de Lombroso e a Escola Clássica de Beccaria.

O Modelo Moral tem um viés patologizante, com uma identificação com as Teorias do Crime que assim concebem o fenômeno do Infrator Penal.

Apesar de teoricamente dada como ultrapassada, seus reflexos no cotidiano do Direito Penal e dos Tratamentos e Dependência Química se fazem ainda presentes. Os discursos de Membros de Comunidades de Propósito Específico – os dois maiores deles surgidos nos Estados Unidos oriundos de Grupos Religiosos de Moral Ortodoxa e do reflexo da devastação da Guerra do Vietnã – contém em boa parte expressões e frases feitas (lemas) de aspecto valorativo moralista, e uma arquitetura em tríade.

Um, o transgressor de uma Norma Social nos casos de drogas ilícitas ou de uma norma interna de força e controle pessoal no caso do álcool.

O Dois, como sendo uma autoridade divinizada – constituída por uma Escritura específica, os Doze Passos, que vai purgar e mediar as consequências (necessidade de castigo) da ruptura com a ordem interna ou externa.

E o Três, o Panótipo, o lócus de Confissão e de Modificação do Comportamento e a via pela qual se dará a ressocialização do Sujeito, as reuniões do Grupo que os membros participam, de preferência diariamente e para o resto de sua vida.

A Estrutura Panotípica será vista em detalhes quando for analisada a Escola da Teoria Agnóstica do Crime, de Raul Zaffaroni.

IV-B – O modelo da temperança

Segundo os Autores, somente a partir de Benjamim Rush em 1790, e Thomas Trotter, foi possível desenvolver idéias congruentes com a Idade da Razão, ou Iluminismo, em contraposição ao obscurantismo dos séculos anteriores.

Para Trotter e Rush o beber excessivo não era um pecado mas um hábito a ser desaprendido. Trotter considerava que a embriaguez era uma doença e ambos concordavam que o resultado era uma perda de controle e comprometimento de equilíbrio pessoal.

Segundo Rush, “o consumo começa como uma escolha, torna-se um hábito e depois uma necessidade.”

Pela primeira vez foi considerada que a intensidade do consumo variava ao longo de um continuum de gravidade, e que os problemas decorrentes do uso ocorriam ao longo do tempo, ou seja tinham uma história natural.

IV-C – O modelo da degenerescência neurológica

Em 1849, Magnus Huss publica “Alcoolismus Choronicus” e o termo Alcoolismo é utilizado pela primeira vez. A concepção de Alcoolismo como doença foi então difundida pelo mundo.

O novo conceito enfatizava as alterações clínicas decorrentes do uso prolongado do álcool, dando pouca importância a suas repercussões psíquicas e comportamentais. O tratamento sugerido erma internações prolongadas, tônicos, banhos a vapor e o uso de sanguessugas. Evidente que ao longo da evolução da Medicina os tratamentos aplicados foram evoluindo, contudo há um “quê” desse Modelo ainda presente no atual Modelo Médico.

IV-D – A Lei Seca

Segundo Luciane Ogata e Marcelo Ribeiro, in opus lócus citi, na maior parte do Século XIX, a antiga abordagem religiosa continuou a funcionar.

Porém, nesse período surge nos Estados Unidos o Movimento Social “Temperança”, um movimento de leigos, ligados à maioria das igrejas cristãs, em especial as igrejas livres (ou seja àquelas que não fazem parte da tríade Catolicismo, Judaísmo e Muçulmanismo embora possuam, em regra, elementos comuns principalmente advindos do Cristianismo Judaico- Católico).

Ele pregava a abstinência, oferecendo ajuda individual ao bebedor problemático. Os que se “regeneravam” eram apresentados em praça pública como exemplos espetaculosos exemplos do poder divino. Nada muito diferente do que ainda atualmente acontece em algumas Igrejas americanas e brasileiras.

No movimento de Temperança o bebedor podia encontrar apreço e uma nova identidade.

Prosseguem os Autores afirmando que tal movimento radicalizou-se com a vedação de qualquer permissão quanto a possibilidade de beber moderado, pois este levaria o sujeito (os autores chamam de individuo – jargão hodiernamente usado pelas Polícias) a situações e lugres predisponentes ao abuso de álcool. O movimento culminou (tão somente contribuiu, mas isso é para posterior discussão) coma a proibição da fabricação e do uso por meio da Lei Seca, que vigorou de 1920 a 1933.

Parece que três questões de estratégica importância foram sumarizados sem sequer serem devidamente relacionados.

A Abstinência como resposta a determinada concepção das Teorias Causais da Dependência, ou como única forma adequada ou objetivo visado pelo Tratamento.

O impacto da questão religiosa, não só na concepção sobre o que significava Alcoolismo na Sociedade dá época, bem como o papel da Igreja Católica na própria fundação da Ciência Psicológica – eivada de noções e métodos científicos – religiosos de formulação de seus postulados, desde o século XV, até os dias de hoje.

E a atuação dos Grupos de Oxford, os quais, após a vacatio legis proibitiva, influenciaram e ajudaram na fundação dos Alcoólicos Anônimos.

Não se relaciona também (isso em nenhum momento do texto dos mencionados Autores) a relação Álcool Drogas, cujo marco histórico legal foi o fim da Guerra do Vietnã, o que possibilitou a integração das demais Substâncias Psicoativas (Drogas) como objeto também de estudo pelas Teorias Causais. A resposta em termos de Sociedade foi a Criminalização e a criação de Narcóticos Anônimos.

A Lei Seca não foi somente resultado de pressão religiosa, mas resposta da Sociedade a uma indagação até hoje sem resposta clara e consensual: o que fazer com quem foge à Regra Social? Criminalizar, Patologizar, Isolar?

Doente, assim como Criminoso, pela Escola Criminológica do Labeling Approach (a ser detalhada mais adiante), é o Sujeito que se diz ou aquele de quem se diz. Contudo, tal Etiquetamento não explica o Fenômeno nem promove sua solução.

À tendência da Psiquiatria e da Psicologia em Patologizar Condutas equivale a uma Corrente do Direito – o da necessidade de Defesa Social – que fantasia em solver os Conflitos Intersubindividuais pelo meio da utilização massiva do Código Penal e da inserção nele de novas condutas criminosas (como se verá mais a frente).

E os resultados concretos da Lei Seca são notórios. Foi feito com o Álcool o que se faz com as demais Drogas e o campo da Ilicitude se revelou terreno fértil para o Crime Organizado, a Lavagem de Grandes Capitais sem que houvesse diminuição do consumo do produto proibido. Ainda assim, são distintas porém as conclusões a que chegam os que se debruçam sobre o tema de Legalizar ou não as demais Drogas, assim como hoje é lícito embebedar-se.

Os Grupos de AA e NA são fato concreto social.

E a Abstinência?

Virou nome, invocado por várias e vários em vão, nenhum santo.

Não há uma, (sequer uma!) Pesquisa confiável, quer pela utilização de Métodos de Validação incontroversos, quer por follow-up rigoroso, quer por Transparência da Fonte de Recursos obtida para seu Financiamento, que conclua consistentemente em qualquer direção.

Existem inúmeras opiniões, indicações, convencimentos e Notas Técnicas, para qualquer opção a ser adotada em Tratamento de Dependência Química.

Se a opinião do Autor aqui se faz pela Abstinência Total o é pela aplicação do Princípio Jurídico da Cautela – usado Pelo Superior Tribunal de Justiça quando de Estudos de Impacto de Tecnologias – quando não se pode prever com relativo acerto as consequências e os danos potencialmente causados pela implantação de determinado método no presente e em um futuro qualquer.

Vale dizer, falta Know How no presente para decidir em sentido contrário sem admitir a possibilidade de causação de graves e irreparáveis danos.

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No próximo artigo, a Escola Estrutural Funcionalista de Durkheim e o Colapso dos Modelos iniciais das Teorias Causais da Dependência

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