Direito e dependência química

13 de agosto de 2013

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Este artigo não pretende esgotar todas as possíveis interpolações entre estes dois ramos do Saber Científico, tão somente designar e descrever alguns Marcos Históricos fundamentais, de modo a permitir possibilidade de estudo comparativo e fomentar um “Discurso do e para o Encontro” entre os dois Saberes, na feliz de expressão de Papa Francisco quando de sua passagem no Brasil na JMJ.

Existe uma falsa Dicotomia ao se pretender tratar a Dependência Química ora como questão de Saúde ora como questão de Segurança Pública. Fato é que é problema Individual e Coletivo, mas não há, ou deveria não haver, monopólio ou apropriação exclusiva de qualquer ramo da Ciência acerca do Saber referente à questão.

Ela é mais do que multidisciplinar, é interdisciplinar, e abarca muito mais questões do que apenas aquelas afetadas ao Direito e a Medicina. Se tal complexidade é afastada, (assim como a contribuição de inúmeras Ciências Humanas e Exatas ), o é na medida em que interessa a poucos o exercício de Poder através do Saber em relação aos muitos que passam a ser hierarquizados, em capitis diminuto, por quem faz disso um jogo, Jogo de Poder, recebimento de Verbas Públicas e Egolatria.

O Direito e a Dependência Química se fazem “encontro como discurso” aparentemente em quatro ou cinco tópicos especiais, a saber:

a) A Criminologia e as Teorias Causais da Dependência Química;

b) A Tipologia Jurídica dos Códigos e a Tipologia Patogênica dos Manuais Diagnósticos – CID 10 e DSM. IV (e o recém lançado DSM.V);

c) A Justiça Terapêutica e as novas modalidades de abordagem do Dependente Químico;

d) Os Direitos e Deveres Legais de cada um dos Atores envolvidos e a questão da Lei Simbólica e a da Densificada na Lei Jurídica – inclusive sua incidência e prática nos locais de Prevenção, Tratamento e Políticas Públicas;

e) As Defesas contra as Sanções Penais e os Interditos Cíveis como forma de Proteção da Dignidade da Pessoa Humana, do Patrimônio e das Capacidades para realizar Atos Jurídicos e sua utilização para contribuírem como instrumento de Prevenção e Tratamento; uma nova visão do conceito de Manejo de Contingências.

I – A criminologia e as teorias causais

As dependências químicas

O Crime, assim como a Dependência Química, já foi entendido como comportamento inato. E é importante registrar que a maior parte do que será escrito abaixo também se aplicava ao Dependente Químico, que carrega ao longo do tempo a pecha de criminoso e doente incurável.

I-A – A Escola Positivista de Lombroso

A Escola de Criminologia Positivista, que tinha como principal teórico LOMBROSO, respondia a indagação do porque alguns cometerem crime e outros não com uma regra de Causalidade Física e Mecânica: o homem era dissecado tal qual um cromossoma. Um objeto Ontológico cuja verificação consistia no Empirismo e nos Sentidos.

Houve a constituição de um Paradigma Etiológico: a Patologia é constatada em componentes físicos específicos – forma do crânio e dos maxilares, tipo de nariz, regras de proporcionalidade entre tronco e membros, etc.

Vale dizer, havia uma ruptura entre as Ciências Naturais de um lado e as Culturais de Outro.

A Ciência do Ser divorciada da do Dever Ser.

Tal diferenciação atualmente perde muito de seu sentido quando se verifica que a melhor forma de compreender a Doença, inclusive a Dependência Química, é de modo multidisciplinar e de forma Biopsicossocial.

II – A Escola Clássica

BECCARIA foi quem melhor representou o Classicismo na Criminologia.

A Europa trazia da era Medieval o ranço histórico do Suplício, técnica de Sanção a quem cometia crimes.

Necessário dizer que o Suplício não era forma desenfreada de fazer sofrer; eles eram minuciosamente tarifados e detalhados, submetidos a regras e fórmulas específicas para resposta do Príncipe a quem infracionava.  Pode-se dizer que havia uma “matemática da dor” que os regia.

Da mesma forma era importante a “teatralidade” dos personagens em cena, cada qual – carrasco, criminoso, familiares, multidão e o representante do Príncipe – desempenhando papel social objeto de constructo da época. Ao Ritual correspondia o que se denominava Código Jurídico da Dor.

O Suplício tinha três funções básicas:

a) Divina –  a antecipação do Castigo que que presumivelmente o Criminoso sofreria pela Ira Divina;

b) Política – a justa retribuição à Agressão, ainda que indireta, ao Príncipe, e

c) Militar – a garantia da manutenção da Hierarquia, potencialmente rompida pelo ato de insubordinação das Regras do Estado que promoviam a ordem e a estratificação da população.

A Justificativa àqueles que se sentiam repugnados com a crueldade dos Suplícios era de que a repugnância não era do Suplício, mas mero reflexo do ato repugnante do criminoso. O Estado agia como em um jogo de espelhos, a refletir e a retribuir o crime praticado.

A Teoria do Reflexo ainda é utilizada como método de tratamento da Dependência Química, por alguns profissionais que se amparam numa interpretação equivocada dos Sintomas descritos no CID 10 e nos DSM IV e V, quando se trata de responder a demanda de reparação dos pacientes acerca das consequências do seu uso de Drogas. Não existe espaço para o contingente, tudo é reflexo do uso.

O Suplício era na verdade um método regrado de Tortura. E essa, Meio de Prova – em oposição ao Inquérito (ver a “enquéte” de Foucault) – e Punição.

A esse respeito sugere-se a leitura de “Vigiar e Punir” e “A verdade e as formas jurídicas”, ambos de Michel Foucault.

Todavia a ambivalência do método e a grande incidência de condenações consideradas injustas pela população – evidente, condenados sem metodologia qualquer de investigação e com grau alto de subjetivismo – levava à situações de inconformismo intensos, inclusive com casos de enforcamento do carrasco pela multidão para salvar o criminoso.

O receio, do ponto de vista Político, de que tal reação popular cada vez mais frequente ressaltasse não só a ambiguidade da prática em si, mas das outras ambiguidades do Sistema do Estado, fez com que os Estados passassem a abolir o Suplício.

A Escola Clássica nada mais é do que o que vem após a extinção do Suplício.

Segundo Foucault, tal Escola promoveu uma “humanização oportuna” da Sanção para garantir o Estado.

A Escola Clássica se fundamentava na Ideologia da Defesa Social. O Estado era legitimado – não importa como, o que havia era Presunção de Legitimidade – para a manutenção da Ordem Social, e como Ordem Social se compreendia o controle das condutas dos indivíduos.

A principal característica do Direito Penal no período da Escola Clássica foi o de controle de conduta, marcado com um certo maniqueísmo do tipo criminoso – não criminoso.

Aqui é importante registrar o comparativo com algumas das Técnicas de Tratamento de Dependência Química que buscam através do controle do comportamento do Paciente (Abordagem Comportamental) dar conta de toda a complexidade da Recuperação em Dependência Química.

A princípio, se usadas isoladamente, fadadas ao fracasso, quer por ausência de Técnicas efetivas de Controle, Social ou de conduta,  já consagradas pela Ciência Jurídica e desconhecidas pela área de Saúde, quer por reducionismo a somente um aspecto da Patologia.

Ressalte-se que não existe em tal afirmação qualquer idéia de pejoratividade aos Profissionais da Saúde, mas mera constatação que o avanço do Direito – por sua característica cronológica de existir há muitos séculos – é incomparável ao avanço de Ciência ainda em fase de início de consolidação.

Aparece também a idéia de Culpabilidade – a reprovabilidade Social da conduta criminosa.

Tal conceito (Culpabilidade) é ainda hoje Elemento Essencial da Teoria do Crime. Sua compreensão e aplicação serão objeto de artigo específico, dada sua importância para o Crime em geral e especialmente para as Infrações Penais cometidas por Dependentes Químicos.

III – A Escola Psicanalítica

Para Theodor Reik, um dos fundadores da Escola Psicanalítica, não se deve acalentar uma relação de encantamento pelo Id em função de uma ausência de contenção pelo Superego.

Para ele o Id libera as Pulsões e o Superego as refreia. E, na medida em que as refreia, essas Pulsões vã se acumulando no Inconsciente.

Se não há liberação dessa energia mediante descarga adequada cultural e socialmente, Catarse ou Sublimação afirma ele, e se ocorre curto circuito psíquico, deficiência ou ausência de Representação Simbólica, Recalque intenso, a libido é liberada e descarregada pelo comportamento criminoso.

Para Reik, tal relação entre Id e Superego também concorre para a necessidade impulsiva de punir o criminoso – a Teoria do Bode Expiatório.

Essa necessidade se dá para reforço do Superego dos demais em relação ao criminoso, ante a tentação promovida pelo Id para identificar-se com o criminoso.

Será então que a necessidade de “punir” o Dependente Químico, isolando-o, etiquetando –o sob a fala “eu sou Dependente Químico, Toxicômano, e etc.” caracterizá-lo como Doente Incurável, marginal, inseri-lo em Comunidades de Propósito Específico ao revés de promover sua reinserção social vai de encontro a Teoria de Reik?

O limbo social e a sua posição na Família (como Paciente Identificado) não seriam reflexos de uma época jurídica cultural em que o Ébrio e o Toxicômano eram identificados aos criminosos, os de comportamento desviante? E mereciam os degredo social pela necessidade de supressão de qualquer possibilidade dos demais virem a ter seu Id tentados a serem inflados pela fantasia do Paraíso Artificial? Pai, afasta de mim esse cálice? De vinho tinto e de Pó?

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Este Artigo é o primeiro de uma série de outros que serão publicados semanal ou quinzenalmente na INTERNATIONAL CRIME ANALYSIS ASSOCIATION pelo GRUPO DE ESTUDOS EM TOXICOMANIA E PSICANÁLISE DA UNIAD – UNIFESP

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