Edição

Direito, moralidade, ordem concreta e Constituição

30 de novembro de 2006

Membro do Conselho Editorial, advogado e ministro aposentado do STF

Compartilhe:

A evolução do pensamento sobre o direito nos últimos vinte anos é notável. Na última década do século passado apreendemos a importância dos princípios e, em seguida – a partir da que se convencionou chamar nova hermenêutica –, que o momento da produção normativa é posterior ao da redação dos textos normativos. Nesse sentido, mais do que apenas evolução, o pensamento jurídico foi campo, nos últimos anos, de uma revolução.

Discernimos, entre tantas outras coisas, a distinção entre o direito posto pelo Estado e o que tenho designado direito pressuposto, uma das linguagens do social. Poucos a perceberam. A grande maioria dos que participam das práticas sociais expressivas da produção das normas jurídicas o fazem sem se dar conta dessa enorme revolução.

Daí suportarmos paradoxos e contradições. A superada subsunção convive, nas abstrações dos que carecem de vocação para as abstrações, com sua mais completa negação hermenêutica. Como faltam pensadores capazes de um salto à frente e hoje livros repetitivos são publicados aos borbotões, o simples compreender resulta enigmático. Pretendo apenas, neste breve e despretensioso texto, assinalar dois pontos que entendo dignos de alguma reflexão por quem se disponha a praticar esse antigo hábito (o da reflexão) sem arrogância intelectual.

O primeiro diz com a circunstância de que há no ar uma vontade de superação da cisão entre o direito e moral. O que se deseja é trazer valores éticos para dentro do horizonte do jurídico. Isso permitiria qualificar como tal, como jurídico, somente um sistema normativo, ou uma norma singular, dotado de certo conteúdo de justiça. O que permitiria caracterizar como válida a norma ou o sistema de normas seria esse conteúdo de justiça.

Bem a propósito, lembro que a Constituição do Brasil define a moralidade como um dos princípios da administração. Não a podemos contudo tomar de modo a colocar em risco a substância do sistema de direito. O fato de o princípio da moralidade ter sido consagrado no artigo 37 da Constituição não significa uma abertura do sistema jurídico para introdução, nele, de preceitos morais.

O que caracteriza o surgimento do chamado direito moderno – esse direito que eu chamo direito posto pelo Estado, opondo-o ao direito pressuposto – é a substituição do subjetivismo da eqüidade pela objetividade da lei. Isso significa a substituição dos valores pelos princípios. Não significa que os valores não sejam considerados no âmbito do jurídico. Não significa o abandono da ética. Significa, sim, que a ética do direito moderno é a ética da legalidade. A legalidade supõe a consideração dos valores no quadro do direito, sem que, no entanto, isso conduza a uma concepção substitutiva do direito pela moral. O sistema jurídico deve por força recusar a invasão de si mesmo por regras estranhas a sua eticidade própria, advindas das várias concepções morais ou religiosas presentes na sociedade civil. E, repito, ainda que isto não signifique o sacrifício de valorações éticas.  O fato é que o direito posto pelo Estado é por ele posto de modo a constituir-se a si próprio, enquanto suprassume a sociedade civil, conferindo concomitantemente a esta a forma que a constitui.

Os valores – que são teleológicos – alcançam o direito pelo caminho deontológico dos princípios. Isso assim se dá, sem que seja esquecida a distinção hegeliana entre moralidade e eticidade. A moralidade respeita as virtudes do homem na sua subjetividade, ao passo que a eticidade repousa sobre as instituições e as leis – o nomos. Homem virtuoso será, em ambos os casos, o que exerce de modo adequado seu predicado essencial, o ser racional; virtuoso é o homem que usa a razão (logos) exercitando a prudência (phrónesis). No plano da eticidade, o homem já não é visto isoladamente, porém inserido no social, logo sujeito às instituições e às leis. Virtuoso então, desde a perspectiva da tradição que vai de Platão a Hegel, no plano da eticidade, é o homem que respeita as instituições e cumpre as leis. Portanto é preciso sempre tomar cuidado, muito cuidado com os que afirmam o antipositivismo sem limites, ignorantes de que a ética da legalidade não pode ser ultrapassada, sob pena de dissolução do próprio sistema. Certo conteúdo de justiça por certo se impõe na afirmação do direito, mas conteúdo de justiça interno a ele, quer dizer, conteúdo de justiça positivado.

Outro ponto diz com o que se deve ter como o próprio direito. Começaria por indagar o que é a Constituição. Para dar resposta a essa pergunta eu começaria dizendo o que não é a Constituição. Diria inicialmente que a Constituição não é apenas o conjunto, o sistema de normas situadas, na hierarquia da pirâmide das leis, imediatamente abaixo da norma fundamental. Diria que a Constituição é a representação mais elevada, no plano do direito posto, de uma ordem anterior, de uma ordem concreta anterior ao direito posto pelo Estado. Uma ordem concreta que arranca de um direito pressuposto e expressa a visibilidade de um nomos, de modo que o pensamento jurídico não pode ser convertido exclusivamente em pensamento legal. É necessário compreendermos que o nomos não é a lei isoladamente, mas o direito. É necessário compreendermos que as ações do rei, do senhor, do mestre, do governante – e também do juiz ou do tribunal – nos remetem sempre a uma ordem institucional concreta que não é simplesmente uma regra isolada.

Por isso diremos que o ordenamento é a expressão de uma ordem histórica, de uma ordem concreta. E de modo tal que a violação de uma norma é expressão não apenas de uma conduta adversa ao que está escrito num texto, no plano abstrato do mundo do dever ser. A violação de uma regra é de ordem concreta, histórica, situada no tempo e no espaço. Diria – e isso em especial aos kelsenianos (aqui estou a fazer alusão a uma escola que vicejou entre nós com grande sucesso entre os anos setenta e noventa e picos, escola que o próprio Kelsen desconheceria por conta do uso de seu nome em vão) – que o direito há de ser concebido como um plano da realidade social.

Daí que os temas da inconstitucionalidade normativa e da inconstitucionalidade institucional não podem ser examinados exclusivamente no plano do abstracionismo normativista, como se devêssemos prestar contas a Kelsen e não a uma ordem concreta. O que comunica o sentido do jurídico a cada regra –  e isso já dizia Santi Romano – é a circunstância de ela pertencer a um tronco maior. A Constituição é a representação mais elevada, no plano do direito posto, de uma ordem concreta. Mas esta ordem concreta é anterior ao direito posto pelo Estado; arranca de um direito pressuposto e expressa a visibilidade de um nomos. Ao mencionar o direito pressuposto, tomo-o, o direito, como produto cultural, como uma construção da sociedade, como algo que arranca da realidade concreta. O direito é uma linguagem do social, um plano da realidade – aqui não há nenhuma conotação metafísica – um plano que expressa a visibilidade de um nomos; que permite à sociedade civil transacionar, compor-se, chegar a entendimentos. Daí a concepção que se pode ter de sociedade civil, a partir da concepção de Hegel, como um momento anterior à ordem estatal.

Sempre que nos referimos ao direito pressuposto e à idéia de uma ordem concreta estamos a supor que o processo de objetivação que dá lugar ao fenômeno jurídico não tem início na emanação de uma regra, mas sim em um momento anterior, no qual aquela ordem concreta é culturalmente forjada. Uma ordem situada geograficamente e no tempo, com as marcas históricas e culturais que a conformam de uma determinada maneira, por isso mesmo incompleta e contraditória, reclamando permanente refazimento, complementação e superação das situações de exceção. A evolução do pensamento permitiu-nos a superação da visão do direito como um sistema fechado. Pois o que há mundo real, na verdade, é uma ordem concreta que, por ser rica e viva, é incompleta, permanentemente reclamando complementação e superação de situações de exceção.

Por isso o poder judiciário, na tarefa de concretização da Constituição, ao aplicar-se a prover sua força normativa e sua função estabilizadora, reporta-se à integridade da ordem concreta da qual ela é a expressão mais elevada do plano do direito posto. Aí a beleza da interpretação da Constituição, que supõe caminharmos de um ponto a outro, do universal ao singular através do particular. A interpretação compreende esse caminhar e a possibilidade de conferirmos a carga de contingencialidade que faltava para tornar plenamente contingencial o singular. Daí que a interpretação feita pelo intérprete autêntico, o poder judiciário, exige a consideração não apenas dos textos normativos, mas também de elementos do mundo do ser, da realidade, dos fatos do caso, a realidade em si, no seio e no âmbito do qual cada decisão há de ser tomada.

A reflexão em torno desses dois pontos, desenvolvida com simplicidade no pensar, eis o que proponho ao leitor.