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Discurso em homenagem ao ministro Carlos Mário Velloso proferido em 28/06/2007

31 de julho de 2007

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Incumbiu-me a Excelentíssima Senhora Presidente Ellen Gracie a prestigiosa tarefa de falar em nome do Supremo Tribunal Federal na merecida homenagem que ora se presta ao eminente Ministro Carlos Mário da Silva Velloso, a quem, para grande honra minha, sucedi nesta colenda Corte de Justiça.

Esta é, sem dúvida, uma feliz oportunidade para que se reverencie a competência, a lucidez e a sensibilidade de alguém que, sobre ser magistrado de escol, foi e é professor de destaque, além de edificador de uma vida pessoal que se eleva às alturas dos grandes nomes que plasmaram a Nação brasileira.

Carlos Velloso veio ao mundo em Entre Rios de Minas, situada na “patriazinha”, como docemente Guimarães Rosa apelidou Minas Gerais. Bom filho das Alterosas, sempre exaltou suas origens, a exemplo da verdadeira declaração de amor que fez à terra que o viu nascer, quando foi homenageado pelo tradicional Instituto dos Advogados
de Minas Gerais, ocasião em que proclamou, em alto e bom som:

“Se há algo de que me orgulho é de ter nascido em Minas, de ser filho, neto e bisneto de mineiros, de ter me criado nestas montanhas, onde se respira liberdade, e de jamais ter-me afastado de minhas raízes, fiel, aliás, à observação de Tancredo Neves, que conheci nos albores de minha juventude e que me disse, eu já na idade madura, que a fidelidade a Minas e ao povo enobrece e dignifica”.

Moço estudioso, cursou o ginasial em São João Del Rey no conceituado Colégio de Santo Antonio, partindo, em seguida, para Belo Horizonte, onde concluiu o Clássico no afamado Colégio Estadual, diplomando-se depois em Direito na atual Universidade Federal de Minas Gerais.

Disciplinado e idealista, o jovem bacharel iniciou, então, uma fecunda carreira profissional, fazendo opção pela vida pública, à qual dedicou mais de cinqüenta anos, quase todos dedicados ao árduo ofício da judicatura.

Com verdadeiro sentido de missão, Carlos Velloso exerceu a magistratura de forma linear, equilibrada, sem saltos nem sobressaltos – e sem recuos – em um trilhar contínuo, determinado, como quem sobe, calma e seguramente, as suas velhas conhecidas montanhas mineiras.

Ainda na infância, travou contato com as agruras e também com as realizações da nobre e difícil arte de julgar, pela mão segura do pai, o juiz Achilles Velloso, cuja influência em sua formação de magistrado Carlos Mário relembra, saudoso, em passagem várias vezes recontada:

“Visitei, desde cedo, muitos fóruns, assisti muitas audiências, júris e fui aprendendo por sua mão protetora. Ele dizia que não tinha idade para assistir aos júris, mas eu insistia e ele me colocava atrás de sua cadeira. Foi o grande exemplo de minha vida, o meu pai. Foi seu exemplo que me fez juiz”.

Daí para diante, o caminho foi sempre ascendente, e Carlos Velloso fez-se juiz completo.

Iniciou-se nas lides forenses com a admissão ao cargo de escrevente juramentado do Cartório da 3ª Vara Criminal de Belo Horizonte. Seguiu-se a sua investidura como escrivão. Depois, o exercício da função de Diretor de Secretaria da Junta de Conciliação e Julgamento de Uberlândia.

Na seqüência, prestou concurso para Promotor de Justiça, para Juiz Seccional e Juiz de Direito. Por seus reconhecidos méritos foi nomeado Juiz Federal e, posteriormente, para o antigo Tribunal Federal de Recursos, integrando, mais tarde, o Superior Tribunal de Justiça.

A reputação ilibada e o notável saber jurídico alçaram-no ao Supremo Tribunal Federal e, de lá, ao Tribunal Superior Eleitoral, tendo exercido a Presidência de ambas as Casas.

Ao longo de sua profícua e ascendente carreira, Carlos Velloso sempre cumpriu suas obrigações com notável dedicação e empenho. Foi criterioso, sem ser excessivamente severo. Manteve-se altivo, sem transparecer arrogância. Geriu com firmeza, sem ser desnecessariamente enérgico. Enfrentou os desafios da judicatura e da administração pública com competência e serenidade. Fez história na Magistratura por seu denodado empenho em prol de um Judiciário, em suas palavras, “cada vez mais forte, mais independente, mais respeitado”.

Carlos Velloso foi, antes de tudo, um humanista. Um humanista que, embora preocupado com as angústias e sofrimentos de seu povo, jamais se olvidou da pessoa humana, do indivíduo por detrás da massa anônima, sobretudo daquele a quem, quase sempre, se nega o acesso aos mais elementares bens da vida.

Essa virtude, infelizmente cada vez mais rara entre os homens públicos, reflete-se em inúmeros julgados e votos seus, como naquele que proferiu no RE 328.232/AM, onde assentou:

“(…) que uma das razões mais relevantes para a existência do direito está na realização do que foi acentuado na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 1776, o direito do homem de buscar a felicidade. Noutras palavras, o direito não existe como forma de tornar amarga a vida dos seus destinatários, senão de fazê-la feliz”.

Mas tal qualidade não impediu que Carlos Velloso, enquanto juiz, fosse preciso, cirúrgico até. Como nos versos de Fernando Pessoa, nada exagerou ou excluiu. Suas decisões, reveladoras de um conhecimento superior do Direito, notabilizaram-se pela escrita clara e acessível, a partir da qual construiu sólido acervo jurisprudencial, nas mais diversas áreas do saber jurídico, especialmente na seara tributária, em que se revelou mestre respeitado.

O intelectualizado magistrado, porém, nunca foi um nefelibata, um burocrata confinado ao gabinete, preso às rotinas processuais. Ao contrário, cumpridas – e bem cumpridas – as tarefas do cotidiano forense, sempre encontrou tempo para dedicar-se com entusiasmo à luta pela modernização do Judiciário, pela adoção de práticas que, sonhava, levariam a “uma justiça ágil, eficaz, barata, próxima do povo”.

Dentre as medidas a que deu seu valioso apoio, destacam-se a simplificação do processo, com a eliminação dos formalismos inúteis, a racionalização do sistema de recursos, a adoção da súmula vinculante e a valorização do juiz de primeiro grau, cujas angústias e carências logrou experimentar pessoalmente.

Homem público por excelência, sempre sustentou não haver de nada mais importante para um povo do que suas instituições políticas, tal como o fez em memorável discurso proferido na oportunidade em que se despediu da Presidência do Tribunal Superior Eleitoral.

A contribuição de Carlos Velloso, nesse campo, no entanto, não se limitou a concitar a cidadania a prezar as suas instituições, materializando-se, dentre outras iniciativas, em uma decisiva atuação em favor da informatização do voto, que ainda está a merecer o devido destaque.

Antes mesmo de sua posse na Presidência do TSE, envidou esforços nesse sentido. Pesquisou, estudou, ouviu notáveis para buscar alternativas tecnológicas que permitissem a expressão da vontade popular sem distorções. A primeira eleição informatizada ocorreu em outubro de 1996. Dela participou como eleitor na Capital de Minas Gerais. Compartilhou o orgulho e a emoção de haver exercido o direito de sufrágio, por meio do novo sistema, com uma eleitora analfabeta, que, segura, lhe manifestou a confiança que devotava na urna eletrônica, depositária de sua opção política. Registrando, depois, a vibração cívica de que foi tomado na ocasião, consignou:

“O computador, a pequena máquina de votar, fê-la cidadã. Ora, só não se emociona diante de um fato assim quem não tem músculos, nervos e sentimentos”.

Espírito generoso, o juiz Carlos Velloso encontrou tempo para ser mestre também fora dos tribunais. Lecionou francês na Escola de Comércio Santo Afonso, em Belo Horizonte. Ensinou Direito na então Universidade de Negócios e Administração de Minas Gerais e na Pontifícia Universidade Católica, na qual chegou a professor titular e diretor. Lecionou ainda na Universidade Federal e na Academia da Polícia Militar de Minas Gerais.  Fez carreira também na Universidade Nacional de Brasília, dela recebendo o título de professor-emérito.

Como educador, cuidou de ser completo, indo além das lições ministradas em sala de aula, sabedor de que elas, por melhores que sejam, podem perder-se no tempo. Afinal, verba volant, scripta manent. Autor fecundo, publicou vários livros e numerosos artigos, em revistas nacionais e estrangeiras, leituras essenciais para os estudiosos da Ciência Jurídica, especialmente aos que se dedicam ao Direito Público, em seus diversos ramos.

É dele a preciosa lição, reproduzida em sua renomada obra Temas de Direito Público, segundo a qual a ordem política que a Constituição brasileira consagra é o Estado Democrático de Direito:

“(…) capaz de conciliar direitos individuais com direitos sociais, ações negativas do Estado com suas ações positivas, e que não se conforma apenas com o aspecto formal das leis, mas que busca significado para o conteúdo destas, a requerer ações prontas do Estado em favor do bem-estar social.”

Conferencista de renome, amplamente requisitado no País e no exterior, distribuiu com prodigalidade seus vastos conhecimentos, que empregou também nas diversas bancas e comissões de concurso de que participou.

Foi agraciado com inúmeras condecorações e honrarias. Integrou e integra diversas instituições culturais e científicas, dentre as quais a Academia Mineira de Letras, a Academia Brasileira de Letras Jurídicas, a Association Française des Constitucionnalistes, e a Academia Internacional de Direito Econômico e Economia. Recebeu também o título de Doutor honoris causa da Universidade Craiova, na Romênia, além de um sem número de outros galardões acadêmicos.

Realizado na profissão e na cátedra, jamais permitiu que as homenagens recebidas lhe toldassem a modéstia – própria dos sábios – que sempre cultivou, atribuindo o seu sucesso pessoal aos inúmeros de amigos que amealhou ao longo da vida.

Para Carlos Velloso, tal como para o tribuno romano Marco Túlio Cícero, “viver sem amigos, não é viver”. No discurso que proferiu ao receber a medalha-prêmio por seus cinqüenta anos de serviço público, o ilustre juiz e professor, debitou a honraria à amizade, registrando o seguinte:

“Fiz muitos amigos. Sou de fazer amigos e de conservá-los. Posso dizer com orgulho que fiz, nesses cinqüenta anos, uma legião de amigos, esforçando-me por mantê-los. É do meu avô, Carlos Velloso, que homenageio usando o seu nome, a sentença: os amigos são como plantas. Precisam ser regadas. Essa é uma sentença líquida, em sentido metafórico e literal”.

E arremata, com compreensível orgulho: “[meus amigos] constituem o que considero o maior tesouro de minha
vida”.

O culto ao afeto, em especial aos mais próximos, é, certamente, a nota emblemática de seu rico trajeto existencial. Carlos Velloso sempre que pôde registrou a sua gratidão à família de origem: ao pai, o Juiz Achilles Velloso, à mãe, D. Olga, aos irmãos. Jamais deixou de proclamar, também, por gestos e palavras, o profundo carinho que nutre pela família que constituiu: a sua esposa, D. Maria Ângela, ao seu filho e filhas, aos genros, noras e netos.

Nosso homenageado, salta aos olhos, é, antes de tudo, mineiro. Um notável mineiro. E como bom mineiro, preza o sentimento. À moda de Saint Exupéry, sabe que “apenas com o coração se pode ver direito”, pois “o essencial é invisível aos olhos”.

Esse delicado traço do sentimento, que se evidencia a todos aqueles que se propõem a conhecer a sua trajetória de vida e a revisitar seus registros pessoais, constitui a característica mais marcante de uma existência pautada pelo trabalho, pelo estudo, pela dedicação à causa pública e, sobretudo, pelo amor aos seus semelhantes.

Feliz o povo que tem um juiz e um concidadão como Carlos Mário da Silva Velloso.