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Dívida astronômica

28 de fevereiro de 2006

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Ao criar o mundo, Deus – em sua infinita sabedoria – concedeu a cada animal uma qualidade especial, um trunfo para competir, uma vantagem na competição pela sobrevivência. Deu à frágil lebre a velocidade para fugir de seus predadores. E revestiu a lenta tartaruga com um pesado casco impenetrável.

Já os homens, falhos que são, ao criar a Justiça, se equivocaram: conferiram a ela a resistência da lebre e a velocidade da tartaruga.

Daí o conhecido adágio: “A Justiça tarda, mas não falha”, provando que a sabedoria popular também se equivoca. Justiça não é como a Liberdade, “ainda que tardia”, como disse Vergílio. Justiça que tarda não é Justiça.

Justiniano assinala: Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuens – “A justiça é a vontade constante e perpétua de conferir a cada um o seu direito”. E Cícero complementa: Nihil honestum esse potest, quod justitia vacat. – Nada pode ser honesto, quando falta a justiça.

A lentidão da Justiça tornou-se um fato histórico, tão corriqueiro que parece já existir um sentimento de aceitação, como se a morosidade fosse inelutável, algo entranhado em nossa cultura e nossos costumes, no quotidiano social desde séculos. As causas desta morosidade são múltiplas, entrelaçadas, inter-relacionadas, o que retro-alimenta a cada uma delas.

Esta lentidão judiciária se agrava quando a causa envolve pessoas ou entidades privadas de um lado como Autor e o Poder Público de outro, como Réu, e não somente pela obrigatoriedade do duplo grau de jurisdição. As entidades de direito público, federais, estaduais e municipais, alegam simplesmente não dispor de recursos para cumprir as decisões judiciais. Desta forma, a lentidão se transforma em virtual descumprimento.

Ao vencer a ação judicial contra uma entidade pública que resulte em compensação financeira, deve ser expedido o precatório, que é a carta de sentença remitida pelo juiz da causa ao Presidente do Tribunal de Justiça para que este requisite ao Poder Público, mediante previsão orçamentária anual, o pagamento da quantia certa para satisfazer obrigação decorrente de condenação de pessoas públicas, suas autarquias e fundações.

Contudo, os poderes públicos, impunemente, incluem apenas uma verba simbólica, que não chega a satisfazer 1/50 avos do necessário.

A Constituição Federal, em seu artigo 100, caput, ao tratar do pagamento dos precatórios, impõe a estrita observância da ordem cronológica de apresentação. O parágrafo 1o., do mesmo artigo, torna “obrigatória à inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos constantes de precatórios judiciários, apresentados até 1o. de julho, data em que serão atualizados seus valores, fazendo-se o pagamento até o final do exercício do ano seguinte,”.

Ora, estamos em face de duas esferas de morosidade: uma, para obter a concessão do precatório em si; outra, para se fazer cumpri-lo. Apesar de obrigatória a inclusão da verba nos orçamentos das entidades públicas, seu valor é irrisório. O Estado do Rio de Janeiro deve 1 bilhão e seiscentos milhões de reais, uma soma estratosférica que não pára de crescer ano após ano e que se tornou literalmente impagável, se não forem tomadas providências drásticas, decisivas, corajosas e urgentes. Estudos recentes indicaram que o Estado do Rio poderia, sem prejuízo da saúde das finanças estaduais, pode incluir em seu orçamento, durante dois anos, verba mensal de R$ 80 milhões para pagamentos dos precatórios em atraso, sem contar com os novos.

Não é por falta de legislação penalizante que os precatórios não são pagos. A alegação, em todos os níveis da administração, é de que não há verba disponível. Provavelmente é verdade, principalmente porque os administradores, durante anos a fio, varreram os precatórios para debaixo do tapete, permitindo o crescimento espantoso desta dívida.  Enquanto isto, muito dinheiro é mal gasto com compras e obras faraônicas, mal direcionadas com shows milionários, ou com a propaganda enganosa etc. Isto quando não se esvai pelas artérias da corrupção.

O art.100 da Constituição Federal prevê em seu § 2º, o seqüestro de quantia necessária para satisfação dos precatórios. Não somente a administração pode sofrer seqüestro de bens, como já têm procedido alguns juízes. O “Presidente de Tribunal, que por ato comissivo ou omissivo, retardar ou tentar frustrar a liquidação de precatórios, incorrerá em crime de responsabilidade”. Existe ainda possibilidade de intervenção federal.

O descaso com que milhões de brasileiros têm sido tratados induz os cidadãos honestos à descrença nas instituições democráticas. A falência generalizada do Estado alimenta as justificativas da corrupção e ajuda a compor os pretextos da sonegação, que no Brasil já alcança a 40% do PIB.

Enfim, a imprevidência dos gestores da coisa pública e o desleixo com a questão dos precatórios têm-se arrastado durante décadas deixaram acumular uma dívida astronômica, um triste exemplo de como não se deve administrar. Ignoraram suas responsabilidades legais, como se o Estado estivesse acima das leis. O embate entre um devedor forte, o Estado, contra um credor fraco, o cidadão, decretou o naufrágio da universalidade e da coercitividade da norma legal.