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Dividindo o indivisível e relativando o relativismo em matéria de direitos humanos

5 de março de 2005

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho destina-se a trazer à colação a questão da indivisibilidade dos Direitos Humanos, sob o ponto de vista daqueles que entendem que estes são universais e indivisíveis e daqueles que entendem que devam ser relativados, tendo-se em conta o respeito à cultura e soberania dos povos.

Inicialmente, traremos os conceitos de indivisibilidade e relativismo, na visão dos estudiosos da questão, suas origens e destinos.

Em seguida, a opinião dos pensadores que não adotam qualquer das duas posições, de forma radical, e propõem linhas intermediárias de abordagem na questão dos direitos humanos, através da regionalização em cortes intermediárias, fazendo respeitar as características individuais de cada grupo.

Por fim, apresentamos a nossa conclusão com a analise do problema, sob o ponto de vista do princípio universal do respeito à dignidade humana e as diretrizes que entendemos devam ser tomadas, na renegociação visando uma Corte Mundial.

O CONCEITO DE INDIVISIBILIDADE E SUA ORIGEM.

Segundo Lindgren, in Cidadania, Direitos Humanos e Globalização1, a origem da indivisibilidade dos Direitos Humanos repousa no fato de que, desde que os Direitos Humanos foram adotados pela ONU, estes sempre padeceram de desequilíbrio quanto a sua priorização, tendendo para os de primeira geração.

Observa que a Declaração Universal dos Direitos do Homem, não priorizou espécies de Direitos Humanos, mas nos dois pactos firmados para os dois blocos de direitos, cada bloco divergia do outro, em termos de proteção.

O bloco de direitos civis e políticos, dispunha de um comitê de peritos, encarregados de monitorar a implantação, acolhendo inclusive queixas individuais, enquanto o outro bloco de  direitos sociais e econômicos e culturais não foi agraciado com essa proteção, embora tenham tentado suprir a lacuna, criando comitês com essa finalidade, porém sem direito à acesso individual, como o primeiro.

Diante dessa disparidade, os países em desenvolvimento estabeleceram esse mecanismo de proteção que é a indivisibilidade de todos os Direitos Humanos, reafirmado pela ONU inúmeras vezes.

Na verdade, segundo o referido autor, a indivisibilidade foi infirmada pela declaração de alguns países em desenvolvimento que violavam direitos civis, sob a alegação da necessidade de priorizar o desenvolvimento, além dos direitos econômicos e sociais.  Nesse sentido, o Prof. Lindgren, na mesma obra, entende que o desenvolvimento não garante  o respeito aos demais Direitos Humanos.

Relata, ainda, que o término da Guerra Fria e a Queda do Muro de Berlim foram eventos que levaram a crença de que o processo de democratização era irreversível, gerando a convocação para a Conferência de Viena em 1993.

Segundo ele, essa conferência estabeleceu conceitos importantes, como da universalidade, da legitimidade do monitoramento internacional de violações, a inter-relação entre os Direitos Humanos, o desenvolvimento e a democracia, o direito ao desenvolvimento e a interdependência entre todos os Direitos Humanos.  Nesse sentido, reputa essa conferência como a mais importante no discurso contemporâneo sobre Direitos Humanos.

Na sua obra, constata que o fenômeno mais importante após a Guerra Fria é a globalização. Se antes ocorria a bipolarização liberalismo X comunismo, com o Estado-Previdência nos países desenvolvidos, objetivando afastar a contaminação pela utopia antagônica, o que se vê, hoje, é a adoção do laissez faire absoluto, sob a alegação de que a liberdade de mercado leva à liberdade política e a democracia.

Com isso justificou-se o investimento em países de regime autoritário, aceitando neles o sacrifício das liberdades civis e políticas em favor do desenvolvimento. Nos países de sistemas democráticos as proteções mercadológicas, trabalhistas e previdenciárias foram objetadas em nome da modernidade, assim como o Estado-Previdência em razão da fatalidade do desemprego.  Entende o autor que essas são as premissas para o desenvolvimento vertiginoso da globalização.

Constata, também, que a indivisibilidade só tem guarida naqueles Estados-previdência, pois , sem as prestações positivas ofertadas por essas instituições, o que se vê é uma cidadania incompleta.

De outra banda, temos que Clarence Dias, no seu texto  Indivisibilidade, In: PINHEIRO, Paulo Sérgio; GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Direitos Humanos no Século XXI,2 preleciona que os conceitos de universalidade, indivisibilidade, interdependência e inter-relacionabilidade em matéria de Direitos Humanos estão completamente sedimentados.  Porém, põe em discussão se há consenso universal quanto à indivisibilidade e qual seria o seu conceito e que passos deveriam ser tomados para a sua plena realização.

Inicialmente, tenho que, de mister, uma perspectiva histórica da origem da indivisibilidade:

1. A Carta das Nações Unidas não menciona esse conceito;

2. A Declaração Universal dos Direitos do Homem também nada menciona;

3. O Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto sobre Direitos Civis e Políticos, mencionam a interdependência entre todos os direitos humanos.  Por esse motivo, entende-se que o conceito de interdependência foi  precursor da indivisibilidade.

4. A Proclamação de Teerã de 1968 faz menção explícita à indivisibilidade, embora não a justifique ou a defina. Nessa carta, afirma-se ser impossível atingir-se plenamente os direitos civis e políticos sem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais e vice-versa.

5. A Convenção Européia de 1950 trata de direitos civis e políticos, mas não fala da indivisibilidade. A Carta Social Européia de 1961, na ata final de Helsinque conclama os Estados participantes a “promoverem e estimularem o exercício efetivo dos direitos e liberdades civis, políticos, econômicos , sociais, culturais e outros, que se originam em sua totalidade, da dignidade inerente ao ser humano e são essenciais para seu livre e pleno desenvolvimento”(Seção VII, parágrafo segundo).

6. O protocolo adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos na área dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais(Protocolo de San Salvador adotado em 1988) trata do conceito de indivisibilidade no seu preâmbulo. Esse protocolo baseia a indivisibilidade no reconhecimento da dignidade humana, reafirmando o papel da indivisibilidade na plena realização de todos os direitos, negando a prática de compensações adotadas pela escola asiática.

7. A Carta Africana (Nairobi, 1981) propõe um conceito de indivisibilidade que relaciona direitos econômicos, sociais e culturais aos direitos políticos, relacionando, assim, direitos individuais a coletivos e encarando o desenvolvimento como forma de consolidar a indivisibilidade.

8. A região Ásia-Pacífico é a única que não possui acordo regional sobre direitos humanos, mas a Sexta Oficina (Teerã, 1998) reafirma a universalidade, indivisibilidade e interdependência dos Direitos Humanos.

Assim, a Professora  Clairence Dias, na obra já referida, afirma que o conceito de indivisibilidade encontra-se introduzido de forma definitiva nas normas internas e internacionais.

Nesse sentido, conclui que os direitos humanos e da pessoa humana são indivisíveis, são inerentes e emanam da própria natureza humana. A indivisibilidade é uma relação mútua, vez que o gozo dos direitos humanos é que torna humana a vida das pessoas; eles existem para garantir o mais preciosos dos direitos: de ser e permanecer humano.

Segundo ela, o conceito de indivisibilidade confere aos grupos minoritários uma base sólida para que reafirmem o caráter inato desses direitos, apresentando cinco dimensões, infirmando esse conceito:

1- Todos os direitos humanos são iguais não cabendo alegação de precedência de um sobre o outro. Portanto, não há gradação;

2- É dever dos Estados promover e proteger os direitos humanos e as liberdades fundamentais;

3- Não se permite qualquer tipo de concessão em matéria de direitos humanos;

4- Não poderá haver concessões entre desenvolvimento e direitos humanos, embora alguns governos asiáticos aleguem que o desenvolvimento econômico deve ter precedência sobre outros direitos;

5- Em razão da indivisibilidade não se realiza os direitos civis e políticos sem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais. Todos os direitos são iguais.

Conclui, ressaltando que a indivisibilidade é chave para o avanço da universalidade, interdependência e inter-relacionamento dos Direitos Humanos, havendo mais violações em relação à indivisibilidade do que aos demais princípios.

No que concerne ao Programa de Direitos Humanos das Nações Unidas, verifica-se que começou com a criação da Comissão sobre Direitos Humanos e o Centro para Direitos Humanos e concentrou a sua ação no monitoramento das violações de Direitos Humanos, especialmente os direitos civis e políticos, não havendo sinais de inclusão do princípio da indivisibilidade nas atividades do programa.

Com relação aos Estados Membros, apesar de aceitarem o princípio, não o vêm aplicando. Organizados em grupos esses Estados persistem na prática da seletividade. Os EUA recusam-se a reconhecer os direitos econômicos, sociais e culturais. O Vaticano junto com as religiões islâmicas recusam-se a reconhecer diversos direitos da mulher, os da reprodução especialmente, sem contar o grupo asiático que relativiza a importância dos direitos civis e políticos.

A ratificação do Pacto sobre direitos econômicos, sociais e culturais não aconteceu  e os avanços têm sido lentos.

No que concerne a indivisibilidade há uma grande distância entre a retórica e a realidade, ocorrendo crescente falta de credibilidade.

O RELATIVISMO E SUA ORIGEM.

Nesse estado de indefinição e falta de credibilidade quanto a implantação definitiva do princípio da indivisibilidade, instalou-se o relativismo, que originou-se com o desafio dos valores asiáticos.

A questão se introduziu com a tese de Lee Kuan Yew sobre os valores asiáticos, tendo sido seus comentários considerados simplistas, pretensiosos e fechados em interesses próprios.

A escola do pensamento de Cingapura tem as seguintes convicções:

1- os valores asiáticos são diferentes dos ocidentais. Os asiáticos dão ênfase aos laços familiares, a prioridade da comunidade sobre o individuo, a estabilidade social e a ordem pública acima da democracia.

2- as mudanças sociais e econômicas da modernização trazem instabilidade, a menos que haja um governo autoritário, pois a democracia gera indisciplina e desordem que são inimigas do desenvolvimento.

3- os líderes asiáticos estão corretos ao estabelecer que as necessidades materiais do povo estão acima das liberdades pessoais e direitos individuais.

4- as políticas participativas não devem ser impingidas às sociedades asiáticas pelo ocidente.

5- os valores asiáticos e os impulsos culturais favorecem mais os deveres que os direitos, as responsabilidades mais que as liberdades, o desenvolvimento mais que a democracia liberal e a estabilidade social mais que o pluralismo político e cultural.

Quando esses princípios foram anunciados, também seguidos por Mahatir Mohamed, houve um grande apoio aos problemas enfrentados por eles, especialmente os problemas multirraciais.

Os dois pensadores têm sido críticos severos do imperialismo ocidental e vêm sendo amplamente apoiados pela imprensa chinesa e demais. O governo chinês, em 1991, no White Paper, adotou a tese da concessão entre direitos humanos e desenvolvimento, declarando que comer e se agasalhar são as demandas básicas do povo chinês que por muito tempo sofreu com fome e frio e, ainda, acrescentou que a questão dos direitos humanos está circunscrita à soberania de cada estado.

Posteriormente insurgiram-se quanto a tentativa da imposição de padrões pessoais a outras culturas, sob o manto dos Direitos Humanos, havendo proposta, por parte de Mahatir, no sentido de ser revista a Declaração Universal dos Direitos do Homem, uma vez que suas origens e natureza são ocidentais.

Segundo a Profa. Clairence, na obra supracitada, os valores asiáticos que até então eram mera divergência, agora ameaçam romper a corrente global dos Direitos Humanos, que são a maior conquista do século.

A ANÁLISE DESCOMPROMISSADA

Norberto Bobbio, in “A Era dos Direitos”,3 fala-nos que, na verdade, o pós guerra  propiciou dois fenômenos: o da multiplicação e o da universalização.

Nesse sentido, constata que o fenômeno da multiplicação dos direitos se deu por três motivos:

1- Maior quantidade de bens merecedores de tutela;

2- Extensão de alguns direitos do homem a outros titulares;

3- Porque o próprio homem não é mais visto individualmente, mas num contexto: velho, mulher, criança etc.

Portanto, em substância: mais bens, sujeitos e status. Os três processos possuem interdependência e revelam a necessidade de fazer referência a um contexto social.

Menciona, no primeiro caso, a passagem dos direitos de liberdades negativas (religião, opinião de imprensa), para direitos políticos e sociais, com intervenção direta do Estado.

No segundo, a passagem do indivíduo singular, titular dos direitos naturais, para sujeitos diferentes do individuo: família, minorias étnicas e religiosas e até mesmo para animais e a natureza onde respeito e exploração passam do individuo para esses novos atores.

No terceiro processo, sai o homem genérico para o homem específico(sexo, idade, condições físicas), bastando examinar as cartas de direito nos últimos quarenta anos.

Assim, segundo Bobbio, os direitos  de liberdade negativa valem para o homem abstrato. A liberdade religiosa foi se estendendo a todos e o mesmo processo se estendeu para os direitos a liberdade: “todos os homens são iguais” (art.1º da Declaração Universal).

Essa universalidade, segundo ele, não vale para os direitos sociais e políticos, nos quais os indivíduos só são iguais genericamente, mas não especificamente, nestes existem diferenças de grupos para grupos (Ex: direito ao voto, que era exclusivo masculino). Hoje os menores não votam, concluindo-se que no reconhecimento dos direitos políticos há que se levar em conta as diferenças, justificando um tratamento não igual.

Constata que a doutrina dos direitos do homem nasceu da filosofia jusnaturalista, que parte do princípio de que os direitos do homem são poucos e naturais (vida, sobrevivência etc.) e que, segundo  Kant, o único direito do homem é o direito à liberdade em face de todo o constrangimento imposto pela vontade do outro, sendo que todos os outros direitos estão incluídos nela.

Ressalta, ainda, que o estado de natureza era uma tentativa de racionalizar determinadas exigências que iam se ampliando cada vez mais, inicialmente nas guerras de religião, a necessidade de liberdade de consciência contra toda forma de imposição de uma crença e, num segundo momento, na época das revoluções inglesa, americana e francesa, quando houve a demanda de liberdades civis contra todo nepotismo.

A passagem da hipótese racional para a análise da sociedade real e de sua história vale com maior razão hoje que as exigências de proteção a indivíduos e grupos que vieram de baixo, aumentaram e continuam a aumentar, sendo certo que a ampliação dos direitos demonstra que o ponto de partida hipotético do estado de natureza perdeu toda a plausibilidade, mas nos fazem refletir que o mundo das relações sociais que dela derivam é muito mais complexo, não bastando os direitos fundamentais como a vida, a liberdade e a propriedade.

Assim, a conclusão do autor é de que a análise dos direitos humanos não pode ser dissociada da análise do desenvolvimento da sociedade e ressalta que não há uma carta de direitos atuais que não inclua, por exemplo, o direito à educação, primeiro elementar e depois secundária, pouco a pouco chegando à universitária. O estado de natureza não dá notícias de menção ao direito à instrução. As principais exigências dizem respeito a liberdade face às Igrejas e ao Estado.

Reafirma que as novas exigências de direito de liberdades civis eram fundadas na existência de direitos naturais, prova disso é que as exigências sociais tornaram-se mais numerosas, quanto mais rápida e profunda foi a transformação da sociedade.

A proteção dada aos idosos é decorrente do aumento da população idosa e da expectativa de vida, decorrente das mudanças nas relações sociais e progressos da medicina.  Constata, assim, que a conexão entre a mudança social e mudança na teoria e na prática dos direitos fundamentais sempre existiu, os direitos sociais é que a tornaram mais evidentes.

A Profa. Flávia Piovesan, in “Direitos Humanos e Jurisdição Constitucional Internacional”4, menciona que, na verdade, a internacionalização dos Direitos Humanos é recente, tendo surgido como uma resposta, da humanidade, ao nazismo.

Na sua análise constata que a guerra foi a destruição e o pós-guerra a reconstrução, fortalecendo a idéia de que essa proteção não pode se restringir a competência nacional,  prenunciando-se, assim, o fim da era em que o Estado tratava seus nacionais como um problema de jurisdição interna.

Analisando os tratados internacionais, constata que estes enfocam quatro dimensões:

1- um consenso internacional para adotar parâmetros mínimos para a dignidade humana;

2- a imposição de deveres jurídicos aos Estados, positivos ou negativos;

3- instituem órgãos de proteção aos direitos;

4- criam mecanismos de monitoramento, objetivando a implementação desses direitos.

Enfim, estabelece o conceito do “mínimo ético universal”, como um fator de relativização da noção de que vivemos um relativismo cultural que inviabiliza a construção de valores universais capazes de se tornarem balizadores da humanidade, a despeito das diferenças culturais existentes na sociedade internacional.

Nesse sentido, aponta o aparecimento das Cortes Regionais, como a Européia, Sul-americana e Africana, além de um incipiente sistema árabe e asiático, ao lado do sistema global, consolidando os dois sistemas (ONU e Regionais).  Ressalta, nesse giro, que embora dicotômicos, os dois sistemas são complementares e interagem em benefício dos protegidos.

CONCLUSÃO:

No que concerne ao principio da indivisibilidade, tenho que este é o ideal da humanidade: que todos os direitos humanos sejam implantados na sua totalidade, sem seletividade e priorização.

Não há dúvida de que devamos lutar por isso, sendo inadmissível que ainda não se tenha avançado para a sua aproximação, pois sequer estamos tangenciando o mínimo ético universal.

O Prof. Andrei Koerner in “ O papel dos direitos humanos na política democrática: uma analise preliminar”5 e in “ Ordem política e sujeito de direito no debate sobre direitos humanos”6, adota uma posição de espera, pois após os ataques de 11 de setembro, ocorreram muitas mudanças e houve um retrocesso na negociação dos direitos humanos, sendo necessário um lapso de tempo para que se retome os caminhos já percorridos.

Os ataques terroristas têm sido um “jato de água fria” no princípio da universalidade.  Há ódios seculares, rancores que parecem invencíveis e máguas ainda muito recentes. A ferida está, ainda, aberta e exposta.

A reação dos países asiáticos às propostas ocidentais é muito contundente e não pode deixar de ser apreciada.  Estamos lidando com civilizações milenares, que guardam convicções de que seus princípios são os corretos e não aceitam adotar princípios ocidentais em substituição às suas culturas e tradições.

Um exemplo típico desse espírito, de não se curvar aos valores ocidentais, é o que vem acontecendo com o surgimento dos homens-bomba e os ataques suicidas, demonstrando claramente que preferem morrer a ter que sepultar suas convicções morais e religiosas.

A tentativa de forçar uma negociação para a adoção do princípio da indivisibilidade dos direitos humanos, significa sepultar de uma vez por todas a possibilidade de algum dia atingirmos a cidadania universal pregada por Kant ou seja, o princípio da universalidade.

Vejo com reservas a adoção radical do princípio da indivisibilidade pela ONU, pois um posicionamento nesse sentido somente irá afastá-la do grupo relativista, composto especialmente pelo bloco asiático e por outras nações que acabam por assinar tratados, aceitando conceitos semelhantes, apenas por medo de retaliações e  isolacionismo.  Nesse sentido, as Nações Unidas devem se abster de tais posicionamentos, prevenindo-se da possibilidade de acabar por falar sozinha e restar sem interlocutores.

Constata-se, facilmente, esta tendência quando se houve o grupo asiático propor a reformulação da Declaração Universal, considerando que a mesma foi erigida com base em conceitos e valores ocidentais. A questão toma proporções visíveis, quando os Estados Unidos, considerado um dos modelos de capitalismo e de democracia universais, vem violando reiteradamente os direitos econômicos, recusando-se a ratificá-los em relação aos demais Estados, por evidente medida de  protecionismo aos seus interesses.

Entendo que devamos retomar as negociações, quando possível, pelo mínimo básico à dignidade humana que é o direito à vida, abolindo-se a pena de morte no mundo inteiro.  Se os responsáveis pela implantação e monitoramento das violações de direitos humanos não se mobilizarem, inicialmente, pelo supremo direito à vida, tudo restará na retórica e os agentes responsáveis pela implementação dos direitos humanos e monitoramento das violações terminarão por cair no descrédito.

Concomitantemente, à evidência da dificuldade da internacionalização das constituições, vê-se, claramente, o florescimento dos direitos regionais, como o Tribunal Europeu e a Corte Interamericana que, com a última reforma passou a ser dotada de maior jurisdicionalização.

Importante destacar que o Prof. Cançado Trindade, in “Consolidação da Capacidade Processual dos Indivíduos na Evolução da Proteção Internacional do Direitos Humanos”7, dá conta da regionalização em relação aos países árabes e africanos, restando, tão somente, ao bloco asiático aderir ao movimento. Creio que, com isso, avançou-se bastante.

Sobre esta questão, insta ressaltar a contribuição trazida pelo Prof. Blanke , da Universidade de Direito Internacional de Erfurt, no primeiro Seminário “A tutela judicial no sistema multinível”, promovido pelo Conselho da Justiça Federal, em setembro de 2004, quando nos trouxe a experiência da Alemanha em relação ao Tribunal de Estrasburgo.  Segundo ele, a jurisprudência emanada da Corte Regional, em nada vem contribuindo para o Poder Judiciário alemão, uma vez que as garantias individuais previstas na Constituição da Alemanha são mais abrangentes que aquelas oferecidas pelo estatuto daquela Corte. Esse, na minha modesta opinião, deve ser o nosso ideal e é, já que a nossa Constituição Cidadã inspirou-se, em parte, no texto “tedesco” e, também, no modelo espanhol, considerados os textos com maior amplitude de garantia aos direitos fundamentais.

A direção a ser tomada é essa, sem sombra de dúvidas, uma grande amplitude de direitos previstos na legislação interna, a integração das Cortes Regionais até a total sistematização numa Corte Mundial, seguindo o ideal kantiano, da Constituição Universal.

Por esse motivo, entendo, que aqueles autores que defendem radicalmente a adoção do princípio da indivisibilidade, ressalvados o que não adentram a questão, encontram-se na contra-mão da história, ao tentarem impor ao mundo, um pacote de direitos humanos que entendem universais e indivisíveis.

O relativismo não é nenhum pecado mortal, se procurarmos entender as peculiaridades culturais de cada um. A indivisibilidade é um ideal que devemos buscar e não um óbice a adoção de um mínimo básico: ou tudo ou nada é um jogo desvalorado quando estamos lidando com pessoas.

Como exigir direitos políticos, econômicos e culturais para pessoas que vivem abaixo do nível de pobreza; a miséria humana, a total perda da dignidade.  O trabalho há que começar pelas bases sim, obtendo de todos os Estados um mínimo essencial para que seus nacionais tenham dignidade e só assim, os organismos internacionais poderão agir e exigir o cumprimento do ratificado.

Destarte, conclui-se que a relativação  do relativismo e a divisão da indivisibilidade vem sendo, aos poucos, implementadas, com a criação das Cortes Regionais, que detêm as peculiaridades de cada grupo intermediário, sem deixar de atender aos princípios básicos devidos à dignidade da pessoa humana.

Notas Bibliográficas _____________________________________________________________

1 LINDGREN ALVES, José Augusto. Cidadania, Direitos Humanos e Globalização. In: PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, Globalização Econômica e Integração Regional. Ed. Max Limonad, São Paulo, 2002, pg.77-98.

2 DIAS, Clarence. Indivisibilidade. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio; GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Direitos Humanos no Século XXI. Brasília: Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais/Fundação Alexandre de Gusmão, 1998.

3 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, Ed. CAMPUS, Rio de Janeiro, 1992, pgs. 49-83.

4 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Jurisdição Constitucional Internacional. Mimeo, 2004.

5 KOERNER, Andrei. O papel dos direitos humanos na política democrática: uma análise preliminar. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.18, no.53,  São Paulo, 2003.

6 KOERNER, Andrei. Ordem política e sujeito no direito no debate sobre direitos humanos. In: Revista Lua Nova no. 57   São Paulo 2002.

7 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Consolidação da Capacidade Processual dos Indivíduos na Evolução da Proteção Internacional dos Direitos Humanos. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio; GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Direitos Humanos no Século XXI. Brasília: Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais / Fundação Alexandre de Gusmão, 1998.

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