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Documentário coloca em debate a modernização do Judiciário

10 de março de 2017

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Produzido em parceria pela Fecomercio/SP e a plataforma Um Brasil, o vídeo “Modernização do Judiciário” traz a opinião de diversos especialistas sobre os desafios do sistema de Justiça brasileiro e as soluções para aperfeiçoá-lo.

Existe, hoje, um volume superior a 100 milhões de processos para serem julgados e extintos no acervo dos tribunais brasileiros. Matematicamente, a conta seria de uma ação para cada dois dos 200 milhões de brasileiros que somos. Só que esta não é uma operação simples, já que envolve muitos elementos e especificidades. Procurar alternativas e soluções para resolver este grande e pesado impasse do Poder Judiciário, bem como promover um debate aberto com os operadores do Direito sobre a questão judiciária, foram os principais objetivos do Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (Fecomercio/SP) ao produzir, em parceria com a Um Brasil, o vídeo “Modernização do Judiciário”.

Com quase 20 minutos de duração, o vídeo conta com depoimentos de diversos especialistas, que debatem os desafios do sistema de Justiça brasileiro, as opções para diminuir a burocracia e as soluções para modernizar o Judiciário.

A primeira pergunta que devemos fazer antes de assistir o vídeo: onde começa o problema de lentidão do Judiciário brasileiro? Para o presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio/SP, o jurista Ives Gandra Martins, o excesso de processos e a Loman (Lei Orgânica da Magistratura Nacional), elaborada em um período no qual esse volume de processos era consideravelmente menor, têm dificultado a modernização do Judiciário, mesmo após o advento do novo Código do Processo Civil (CPC). “Parece-me fundamental – e a iniciativa é do Judiciário – que seja apresentado projeto de lei para o parlamento, adaptando a estrutura do Poder Judiciário aos novos desafios da Constituição de 1988 e da modernidade”, declara.

Direito ritualizado e caos

Se o caminho é buscar a modernização, quando olhamos para o sistema jurídico de nosso país esse conceito parece bem distante. “O Brasil vem de uma tradição jurídica oriunda do direito romano, um direito muito burocratizado, cheio de etapas. A palavra exata é bastante ‘ritualizado’”, afirma o professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), José Eduardo Faria, sobre o trâmite de um processo na Justiça do País.

Em seu depoimento no vídeo, Ives Gandra Martins afirma que “se examinarmos o elenco dos direitos e dos deveres da cidadania, nós verificamos que praticamente a Constituição ‘se esqueceu’ de incluir os deveres do cidadão”. Ele explica: “Como a Constituição Brasileira foi promulgada após um regime de exceção, os constituintes, com receio de um retrocesso institucional, consagraram uma plêiade de direitos, tornando-os, na maioria, ‘cláusula pétrea’. Ora, este ambiente à época levou a Assembleia Nacional a descartar o capítulo dos deveres da cidadania. Hoje, o elenco de direitos supera consideravelmente aquele dos deveres da cidadania. Se compararmos, todavia, os direitos colocados nas constituições bolivarianas da Venezuela, Equador e Bolívia, veremos que esse elenco de direitos é ainda maior. Como vivem, todavia, semi-ditaduras, principalmente na Venezuela, com o Poder Judiciário, mero acólito do Executivo, simplesmente não são respeitados”, avalia o jurista da FecomercioSP.

Para avaliar a extensão desta problemática e tentar encontrar o ponto de partida que levou ao crescimento quase exponencial no número de ações em trâmite no Judiciário, o professor José Eduardo Faria recomenda voltar ao início dos anos 1990. “Foi mais ou menos nessa época que ocorreu uma abertura da economia brasileira para o exterior e houve um processo não só de privatização de estatais, mas também de reforma administrativa, que liberou para a sociedade muitas das funções que eram do estado”, comenta.

O resultado: algo próximo do caos. “Aos poucos, nós percebemos, e eu acho que isso é a tendência geral, que o excesso de processos estava fazendo com que a disfuncionalidade nos levasse ao caos”, pontua José Renato Nalini, jurista e secretário da Educação do Estado de São Paulo. “Quando as controvérsias não se resolvem amistosamente, tudo desemboca no Judiciário, que é o ponto de unidade de todas as profissões jurídicas; o ponto de unidade do Legislativo e do Executivo”, acrescenta Carlos Ayres Britto, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF).

Litigantes sistêmicos

A abertura econômica e o vasto elenco de direitos não são os únicos elementos nesse imbróglio. Existem também os chamados “litigantes recorrentes”, como explica o diretor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV-SP), Oscar Vilhena. “Temos litigantes que são sistêmicos, eles vivem disso. Quem são? Em primeiro lugar, o poder público, a Previdência Social, responsável por uma montanha enorme de litígios. Depois, a Receita Federal, ou seja, a cobrança de impostos, não só no plano federal, mas nos estados também. E, depois, algumas áreas do setor empresarial, especialmente as prestadoras de serviços de telefonia e o setor bancário”, enumera.

Segundo Vilhena, sabendo que um processo pode demorar anos para chegar ao fim, é comum a Justiça ser usada para postergar ou escapar de uma condenação. “Há quem use estrategicamente o Poder Judiciário para não cumprir com suas obrigações”, completa o professor da FGV-SP.

O presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Gandra Martins Filho, comenta que esta é uma prática que se vê claramente em algumas empresas, quando chegam à conclusão de que é melhor recorrer de uma ação na Justiça, pois podem lucrar no mercado financeiro se esperarem a eventual condenação. “Até pelos juros, pela correção monetária que é aplicada na Justiça do Trabalho, muitos acreditam que vale mais a pena protelar. No final, o dinheiro que essa empresa coloca como ‘reserva’ serve para pagar o processo e ainda sobra. O Supremo tem hoje 330 temas para decidir e vai julgando um ou dois a cada quarta-feira. Ou seja, para terminar esse volume pode levar 4 ou 5 anos. Durante esse tempo não se pode fazer nada nesses processos. Portanto, você vai travando todo o sistema. E isso tem contribuído para que muita gente recorra”, revela.

O principal jurista da Fecomércio/SP concorda que esta seja parte do problema. “Em parte, o professor Oscar Vilhena tem razão, quanto ao excesso de processos e a existência de uma cultura de recorrer ao Judiciário, que, em face de sua lentidão por variados motivos, inclusive este, termina por beneficiar os devedores. À nitidez, pois, a demora de um processo beneficia sempre o devedor. A não ser que haja medidas cautelares antecipatórias da execução, que, todavia, trazem insegurança jurídica na medida em que, se revertidas, podem gerar prejuízo. Esta cultura precisa ser mudada”, diz Gandra Martins.

Mas nem tudo o que reside na falta de composição é estratégico. Ao menos na opinião de Marco Aurélio Mello, ministro do STF.Por que no setor público não se tem a negociação para se chegar a um entendimento? Porque existe o medo da presunção do excepcional que, transigindo aquele que é advogado do estado, será tido como cooptado pela parte contrária, como se todos no Brasil fossem salafrários, e não são”, declara.

Mecanismos alternativos

O presidente do TST é um dos muitos juristas a opinar que o problema do excesso de processos poderia ser aliviado com o uso de meios alternativos à Justiça tradicional. “Nós tínhamos de ter, primeiro, capacidade de compor os conflitos sem ter que chegar à Justiça. Tínhamos de ter meios alternativos de composição desses conflitos e, ao mesmo tempo, aqueles que chegassem, fossem rápidos”, afirma Martins Filho.

Iniciativas para isso não faltam. Marivaldo Pereira, analista do Tesouro Nacional e ex-secretário executivo do Ministério da Justiça, comenta que,no próprio Poder Judiciário, existem inúmeras iniciativas positivas que ajudam a resolver o problema da gestão. “Você tem juízes que estabelecem a reforma de todo o fluxo de processos no cartório de sua responsabilidade. Há aqueles que adotam ferramentas eletrônicas que ajudam a reduzir substancialmente o estoque de processos. Outros priorizam a mediação de conflitos”, enumera.

Então qual é o problema? Segundo o analista, essas medidas são, em geral, isoladas. Como o formato do Poder Judiciário é muito fragmentado, para uma iniciativa dessas se transformar em política pública existe, antes, todo um debate interno que depende de diferentes fatores: juiz de primeira instância precisa convencer o tribunal sobre a eficiência daquela medida; o tribunal, por sua vez, tem de convencer um órgão colegiado, que precisa convencer o presidente e assim por diante. “Essa fragmentação acaba dificultando. Talvez o poder mais concentrado para direcionar a gestão do Poder Judiciário fosse mais interessante. O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) foi uma tentativa para isso, mas ainda hoje você encontra resistências nos tribunais ao que é determinado pelo órgão”, comenta Marivaldo.

A verdade é que as medidas alternativas existem, as ferramentas idem e as experiências de sucesso podem ser vistas em tribunais brasileiros. Não é preciso reinventar a roda. Para Janaina Paschoal, advogada e professora livre-docente em Direito Penal da USP, leis que subsidiem uma mudança de cultura não faltam. “A Constituição é maravilhosa. Só tem de aplicar! Muitas vezes uma autoridade me diz que tem que criar determinada lei. Eu vou checar e a lei já existe. Ou eles estão brincando com a gente ou não conhecem a legislação vigente. O que precisa ter, na verdade, é a maturidade cívica de que a lei vale para todos”, defende.

Quebra de resistências

O que o Judiciário precisa, também, é vencer algumas resistências. O ministro aposentado do STF, Nelson Jobim, lembra que, para mexer no sistema Judiciário, é necessário lembrar que existe uma série de elementos por trás dele. “Você está mexendo com naqueles que não querem ser apenados, porque o sistema não funciona. Você acha que essas pessoas têm interesse que isso mude? Você também está mexendo no conjunto de profissionais que sobrevivem disso; você mexe com todo um sistema recursal, por exemplo. Você acaba destruindo ou reduzindo espaços de trabalho se privilegia a decisão do juiz de primeiro grau. Então vamos devagar, porque todo mundo fala que temos que azeitar o sistema Judiciário, mas quando você começa a mexer aparece aquilo que em política a gente chama de ‘jabuti no galho’: por que aquilo está ali em cima? Por que tem recurso, isso e aquilo? Porque tem gente interessada”, declara.

Também observando a primeira instância, o ministro do STF, Edson Fachin, coloca seu ponto de vista.Hoje, o juiz de primeiro grau, que é aquele que está rente ao litígio, que ouve as testemunhas, aquele que, na verdade, introjeta o fato, para sobre este aplicar a lei e chegar a uma solução justa e legítima. Acaba sendo quase que um rito de passagem em direção à segunda instância e, depois, em direção a uma corte superior. Inverter esse caminho é uma das necessidades que temos hoje. Porque isso contribuiria muito para que o processo começasse e, se possível, terminasse nas instâncias de primeiro grau ou, no máximo, nas instâncias revisoras de segundo grau. A descentralização pode contribuir para enfrentar essa sensação, que em boa medida é real, de que ir à Justiça demora muito”, opina.

Rever comportamentos

Para Ives Gandra Martins, embora a prática da arbitragem seja absolutamente normal em países da Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, aqui no Brasil ainda não conseguimos fazer o mesmo, principalmente em matéria econômica. “Não criamos o hábito de discutir mediação para ver se há possibilidade de uma composição, ou de procurarmos a arbitragem para desafogarmos o Judiciário”, lamenta.

O analista Marivaldo Pereira reflete que, apesar dos avanços importantes, ainda estamos muito longe daquilo que é esperado pela sociedade. De fato, a ministra do TST, Maria Cristina Peduzzi, afirma que não há, no novo CPC, uma diminuição significativa no número de recursos. “Temos mecanismos de aperfeiçoamento, de celeridade, mas não temos essa redução. Então não poderíamos dizer que é apenas culpa do advogado, que utilizadesses recursos, já que a lei os prevê”, afirma.

O pesquisador da Escola de Direito da FGV-RJ, Diego Werneck, opina que existem dois níveis em que o papel do STF seria decisivo para aprofundar e concluir a reforma do Judiciário iniciada com a Emenda Constitucional 45 – e assim influenciar a redução no número dos processos. “Uma das questões importantes, que se manifestaram na criação de súmula vinculante e da repercussão geral, por exemplo, é que você uniformiza minimamente as decisões sobre os mesmos temas para evitar demandas repetitivas, diminuir o volume de ações e também garantir mais segurança jurídica às partes”, avalia. “O Supremo está, aos poucos, se acostumando com esse papel, que é um papel muitas vezes parecido até com o de legislador; ou seja, o de criar regras para serem seguidas ‘para baixo’”, acrescenta.

Mudança social

O que fica como balanço da opinião desses especialistas é que o problema da Justiça não se resolve apenas na esfera do Judiciário. “De uma coisa eu tenho certeza, nós não vamos resolver esse problema da rapidez do Judiciário com mais do mesmo”, declara Nelson Jobim.

“Eu converso com muitos segmentos da sociedade e todos têm queixas. E todas são plausíveis, não no sentido de que devam ser simplesmente acolhidas, mas todas merecem ser debatidas. Modernizar é democratizar. É parar de achar que o Judiciário é uma força em si mesmo, porque ele não é. O Judiciário só tem sentido visto dentro de uma perspectiva democrática, e sujeito a todos os princípios que são inerentes à democracia, como a república, a dignidade da pessoa humana, o próprio princípio democrático. Tudo isso deve marcar a gestão do Poder Judiciário. Significa que todos os segmentos devem poder falar e ser ouvidos efetivamente no processo de reinvenção do Judiciário brasileiro”, sintetiza Márlon Reis, ex-juiz eleitoral e idealizador da Lei da Ficha Limpa.

Carlos Ayres Brito acredita que estamos assistindo, no Brasil, um processo de “depuração”. “O Judiciário tem de ser proativo, equidistante das partes, agir com neutralidade, de modo apartidário. Estamos em um processo de depuração, mas há a compreensão de que o Judiciário não pode deixar de ser um ponto de equilíbrio, um ponto de unidade. O desafio é persistir nesse modelo democrático, arquitetado e concebido pela Constituição de 1988”, diz.

“Não adianta pensarmos que vamos resolver esse problema pensando exclusivamente no conjunto do Poder Judiciário. Temos que examinar todo o conjunto da problemática, o que envolve a litigiosidade, a demanda”, opina Nelson Jobim.

Para Nalini, a primeira resistência à adoção daquilo que os norte-americanos chamam de ADR (Alternative Dispute Resolution) era do próprio Judiciário, que não admitia tais medidas. Vencida esta etapa, um novo movimento se apresenta. “Aos poucos percebemos – e acredito que é uma tendência –, que o excesso de processos nos levando ao caos”, diz, avaliando que o modelo de nosso Judiciário também contribui para essa disfuncionalidade. “É um sistema sofisticado: são quatro instâncias, 100 tribunais, cinco justiças, sendo três especiais e duas comuns”, enumera.

No entanto, ele acredita que, agora, estamos diante de perspectivas promissoras. “Essa consciência de que é melhor uma negociação do que aguardar o trâmite de quatro instâncias, todo o sistema caótico recursal etc., está impregnando todos os atores. Então, os juízes que tinham maior resistência já não têm. Os advogados estão aos poucos se convencendo disso. E o principal é que a sociedade está procurando caminhos”, conclui Nalini.

Quem tiver interesse em conferir o vídeo, pode acessar o site: www.umbrasil.com, e clicar na aba “Documentários”.