Dom Quixote e seus Dogmas

12 de abril de 2004

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(Editorial originalmente publicado na edição 45, 04/2004)

Foram os dogmas, com certeza, que fizeram a obra de Cervantes, se tornar nesses últimos 400 anos, um dos livros mais lidos e apreciados no mundo.

Qual a razão dessa epopéia?

Por certo são as contradições do Quixote, pois Cervantes ao querer ridicularizar a cavalaria andante, termina ao contrário, em sublimar o ridículo e transformar as aventuras do Quixote em lições de coragem, renúncia, amor, pureza, dignidade, altruísmo e determinação.

Enquanto o Quixote se esmera na defesa dos desprotegidos, desamparados e injustiçados, Sancho Pança deixa-nos uma magnífica demonstração de fidelidade, quando apesar de verberar sobre as ações e atitudes transloucadas do Quixote, recusa a proposta de abandonar seu amo a troco do governo de uma ilha fantasiosa, afirmando: “É impossível que nenhuma outra circunstancia nos separe a não ser a pá e a enxada do coveiro”.

Os dogmas do Quixote repercutem nos dias de hoje, como se propuséssemos uma cruzada. Uma cruzada contra a pobreza, a ignorância, o crime, a crueldade, a injustiça, isto é, uma cruzada de verdade. Não são programas, discursos, radiofusões, estatísticas, artigos e conferências. Poderá ser uma “quixotada”; mas há de ser uma cruzada. Alma, devoção, sacrifício, coragem, risco, paixão. Uma cruzada sem Ricardo Coração de Leão, sem armaduras, arneses, adagas e lanças, mas um rio de emoção a correr pelas ruas, pelos caminhos e pelas casas.

Não apenas os conceitos e as categorias do pensamento jurídico, mas, igualmente, emoção, sentimento e transfusão de corações.

As verdadeiras causas do descontentamento, da inquietação, da angústia do homem contemporâneo não são de natureza econômica e política. São de ordem emocional. A emoção perdeu os pólos, os símbolos, os ideais por onde dar vazão ao imenso potencial que se acumulou durante séculos de abstinência e privação.

O mundo pede uma cruzada, que poderia começar esse grande abalo, ou esse grande escândalo de que o mundo tanto necessita. Bastaria para que essa cruzada se concretizasse, que, segundo velha pregação do sonhador quixotesco, o ex-ministro Francisco Campos, que o Papa e os evangelizadores saíssem pelo mundo, acompanhados de todas as ordens, confrarias e irmandades, formando uma imensa procissão, com as imagens, os emblemas, as flâmulas e os cantos adequados.

Além dos sonhos do “velho Chico Ciência”, também seria o de continuar sonhando e esperar que os partidos políticos, – despidos de abordagens cínicas e preconceitos nefastos – se empenhassem em reuniões, comícios e passeatas, pregando a moralidade e os princípios éticos enunciados pelo Quixote e defendendo efetivamente os interesses da população, que se queda desassistida, injustiçada e vilipendiada com enganos de falsos líderes e títeres da politicagem rasteira e malsã.

Dom Quixote nos transmite através dos princípios e dogmas uma lição de purificação do mundo pelo o heroísmo, não de um heroísmo hercúleo, mas por outro feito de fé intangível, de pureza perfeita, e de um atributo que a todos define – o dom de si mesmo.

O dom de si mesmo salva o Quixote, e o faz triunfar de seus fracassos e enganos pelos exemplos de que deixou ensementada a consciência dos tempos seguintes.

Este mundo de hoje, reclama a volta de Dom Quixote, pelo sentido dogmático de pureza, fidelidade, amor coragem, renúncia, dignidade, altruísmo e determinação, por sentir que sem ele a sua vida não teria sentido. De todos os lados, sob os mais variados e diversos nomes e as mais contraditórias aparências, o que o homem dos nossos dias pede e reclama, e o que ansiosamente espera – é o retorno de Dom Quixote.

Eis a razão pela qual, mais do que se estivesse vivo e presente entre nós, Dom Quixote seria hoje da maior atualidade, pelos exemplos e fundadas esperanças de que seus princípios e dogmas venham frutificar entre nós.