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Domínio e competência sobre os recursos hidrícos no Brasil

5 de abril de 2004

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Introdução

A Constituição Federal divide entre a União e os Estados o domínio da água, da seguinte forma: (1) são bens da União os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham (CF art 20, inciso III); (2) são bens dos Estados as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, na forma da lei, as decorrentes de obras da União (CF, art. 26, inciso I).

O eminente relator da Constituição de 1988, jurista Bernardo Cabral, destaca que o “art. 5º da Constituição de 1967 incluía entre os bens dos Estados, os lagos e rios em terrenos de seu domínio e os que têm nascente e foz no território estadual… (negritamos). Já a Constituição de 1988 não inclui explicitamente os rios dentro do rol de bens dos Estados”. Apesar disto, por tradição, tem-se interpretado a Constituição de 1988 como se tivesse, neste tópico, a redação adotada na Constituição de 1967. Consequentemente, os governos estaduais têm exercido absoluta competência administrativa nos rios que têm foz e nascente em seu território, mesmo quando esses rios desembocam em outros rios que fluem em direção a outros estados.

Entendemos que a situação atual não necessariamente confronta a Constituição de 1988, que não é muito específica sobre o significado da expressão “águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito”. Defendemos a tese de que, quando as águas superficiais ou subterrâneas fluírem para outros estados, a competência administrativa estadual deve ser condicionada por parâmetros e critérios decididos para cada bacia hidrográfica. Em outras palavras, a competência administrativa estadual deve ser exercida de forma relativa, e não absoluta, sempre que existirem externalidades em outros estados.

Do ponto de vista de competência administrativa, a norma constitucional, em seu art. 21, inciso XIX, indica a competência da União para “instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso”. Por outro lado, no que tange à competência formal, nossa Carta Magna, no art. 22, inciso IV, determinou a competência privativa da União para legislar sobre água. O parágrafo único deste mesmo do art. 22 é previsto que lei complementar poderá autorizar os Estados a legislarem sobre esse assunto. Todavia, tal lei ainda não foi editada.

Como se pode notar, estão bem claras as premissas instituídas por nossa Carta Maior no que tange aos direcionamentos diferenciados dados aos  institutos jurídicos, dominialidade e competência e aos papéis dos entes federados. Entretanto, temos observado que os comandos constitucionais não têm sido bem assimilados, o que vem provocando uma série de desencontros políticos, jurídicos e administrativos, com retardo e desvios na gestão da água no Brasil. Em particular, notamos uma exacerbação do conceito de dominialidade, certamente não cogitada pelo legislador constituinte, em prejuízo da correta aplicação do que determina a Constituição em relação às competências administrativas.

A Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, regulamentou parcialmente o art. 21, inciso XIX, através da criação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Em seu art. 1º, indicou os fundamentos da norma: (1) água é um bem de domínio público; (2) a gestão deve ser descentralizada e participativa; (3) a bacia hidrográfica é a unidade territorial para planejamento e gestão dos recursos hídricos.

O art.4º da Lei nº 9.433/97 determina que a União e os Estados devem se articular para implementar o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Isto significa que a União, através da ANA, e as autoridades estaduais devem atuar harmônica e complementarmente através de um sistema unificado, específico para cada bacia hidrográfica, para outorga, fiscalização e cobrança pelo uso dos recursos hídricos. Para isso, é necessário dar tratamento adequado à questão da dominialidade dos corpos d’água, reforçando o pacto federativo. Isto significa, na prática, que nenhum Estado da federação deve unilateralmente tomar decisão administrativa que prejudique a disponibilidade hídrica, em termos quantitativos ou qualitativos, para cidadãos de outros estados. Ou seja, os estados localizados a montante (rio acima) devem ser solidários com os localizados a jusante (rio abaixo).

Todavia, nenhum texto legal regulamenta a forma como se deve dar a articulação em bacias hidrográficas nacionais, composta por rios de diferentes domínios. A ANA propôs e está implementando uma estratégia para avançar. Baseia-se na construção de acordos sociais estabelecidos nos comitês de bacia hidrográfica, visando a formação de consensos sobre a utilização dos recursos hídricos e evitando assimetrias entre usuários ou entre Estados.

Este trabalho traz uma contribuição para o estabelecimento da articulação da ação governamental, tanto da União quanto dos Estados, à luz do texto constitucional.

Domínio

Bens públicos são todos os bens que pertencem às pessoas jurídicas de Direito Público, isto é, à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios, às respectivas autarquias e às fundações de Direito Público, bem com os que, embora não pertencentes a tais pessoas, estejam afetados à prestação de um serviço público. O conjunto de bens públicos forma o “domínio público”, que inclui tanto bens imóveis como móveis.

A noção de domínio público é mais extensa que a de propriedade, pois se trata de uma relação de poder que o “Estado” exerce sobre os bens públicos ou particulares de interesse público que merecem sua proteção tendo vista o interesse da sociedade. Ao conjunto de poderes desta soberania apontada dá-se o nome de domínio eminente.

Segundo Fiuza “domínio eminente é o poder político pelo qual o Estado submete à sua vontade todas as coisas que se achem em seu território. Seus limites se fixam em lei.” Trata-se de uma das manifestações de soberania interna; não é direito de propriedade.

Os bens públicos, nos termos estabelecidos pelo Código Civil, são classificados em bens: (1) de uso comum: mares, rios, estradas, etc; (2) uso especial: edifícios ou terrenos aplicados a serviço ou estabelecimento federal, estadual ou municipal; e (3) dominicais: constituem patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios, como objetivo de direito pessoal ou real da entidade pública.

Sem entrar no mérito da questão, uma vez que não é o tema do presente estudo, necessário destacar que os bens de uso comum, por força do art. 81 do Código de Defesa do Consumidor e art. 225, da Constituição Federal, são bens metaindividuais. Esta constatação, entretanto, não descaracteriza o domínio eminente do Estado sobre esses bens, como é o caso da água. É o que apregoa nosso eminente mestre, Dr. Paulo Afonso, ao afirmar “o domínio público, afirmado na Lei nº 9433/97, não transforma o Poder Público Federal e Estadual em proprietário da água, mas o torna gestor desse bem, no interesse de todos.” Citando Giannini, afirma “o ente público não é proprietário, senão no sentido puramente formal (tem o poder de autotutela do bem), na substância é um simples gestor do bem de uso coletivo.”

Competência

Conforme assevera José Afonso, em sua clássica obra Curso de Direito Constitucional Positivo, competência “é a faculdade juridicamente atribuída a uma entidade ou a um órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões”. As competências são atribuídas aos diversos agentes do Poder Público sob a égide de separação de poderes (legislativo, executivo e judiciário) e divisão de funções do poder  (especialização de tarefas governamentais à vista de sua natureza).

A forma de Estado determina o exercício do poder político em função do território em que exerce sua soberania. Como assegura o Prof. José Afonso “se o poder se reparte, se divide, no espaço territorial (divisão espacial de poderes), gerando uma multiciplicidade de organizações governamentais, distribuídas regionalmente, encontramo-nos diante de uma forma de Estado composto, denominado Estado federal ou Federação de Estados.” É o caso brasileiro. Dois dispositivos constitucionais embasam nossa forma de Estado: (1) art. 1º. “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”; e (2) Art. 18 “ A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

Explica mais adiante o Prof. José Afonsoque “o Estado é o todo dotado de personalidade jurídica de Direito Público Internacional. A União é a entidade federal formada pela reunião das partes componentes, constituindo pessoa jurídica de Direito Público interno, autônoma em relação aos Estados e a quem cabe exercer as prerrogativas da soberania do Estado brasileiro.” Os Estados são entidades federativas componentes, dotadas de autonomia e também de personalidade jurídica, são titulares tão-só de autonomia, compreendida como governo próprio dentro do círculo de competências traçadas pela Constituição Federal.”

As competências são fixadas em três segmentos: (1) material, trata da execução de tarefas administrativas determinada aos diversos entes da administração pública; (2) formal, refere-se ao poder outorgado a cada ente federado para elaboração de normas jurídicas; e (3) jurisdicional, relativa ao juízo competente para dirimir conflito de teor jurisdicional. Estamos tratando aqui das duas primeiras modalidades: competências material e formal.

No que tange à competência material, a Constituição Federal, em seu art. 21, inciso XIX, estabeleceu a competência da União para instituir o Sistema  Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso. No que concerne à competência formal, a União detém a competência privativa para legislar sobre águas, conforme indica o art. 22, inciso IV, de nossa Carta Maior.

Como se vê, a competência privativa de legislar da União exclui a intervenção legislativa dos outros entes federados. Aos Estados a permissão para legislar sobre águas somente se dará através de  autorização indicada por Lei Complementar.

Adicionalmente, os Estados não podem administrar as águas de seu domínio apenas com regras próprias. A limitação deriva da Constituição, que atribui à União a responsabilidade de implementar o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e, em particular definir critérios de outorga de direitos de uso. Portanto, mesmo quando um corpo hídrico for de domínio do Estado, o correspondente Governo Estadual está impedido de emitir outorgas de direito de uso em desacordo com os critérios estabelecidos pela União. Mais ainda, como todos os usos de recursos hídricos, com exceção dos insignificantes (art. 12, § 1º, da Lei 9433/97) devem estar amparados por uma outorga de direito de uso, é de responsasibilidade do Governo Estadual a coibição de usos em desacordo com os referidos critérios.

É preciso estar bem claro que o sistema de competência instituído para legislar sobre as águas e administrar este bem, é diverso daquele instituído para legislar e administrar as águas em sua vertente ambiental. Neste caso, teremos a competência comum de todos os entes federados para proteger o meio ambiente, incumbência de órgãos competentes, e competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal para legislar sobre a defesa dos recursos naturais.

Neste sentido, explica o Prof. Paulo Afonso “ Em matéria de águas a competência privativa (art. 22 da CF) e a competência concorrente (art. 24) cruzam-se e permanecem entrelaçadas. Os Estados podem estabelecer, de forma suplementar à competência da União, as normas de emissão dos efluentes lançados nos cursos de água, visando a controlar a poluição e defender o recurso natural (art. 24, VI, da CF), mas dependem do que dispuser a lei federal, à qual cabe definir os padrões de qualidade das águas e os critérios de classificação das águas de rios, lagos e lagoas.”

Controvérsias

Entretanto, a tese aqui defendida não é compartilhada por todos que militam na área. Alguns juristas entendem que o ente que detem o domínio também tem a competência para indicar regras dentro de seu quinhão territorial. Atentamos, a partir daí, que é necessário muito atenção aos dispositivos constitucionais para que não se desvie a intenção do legislador constituinte. Com todo respeito àqueles que pensam de forma contrária, tentaremos, com o exemplo abaixo, identificar a inconsistência da tese por eles defendida.

Vamos supor que determinada corrente de água com nascente e foz no espaço territorial de um único Estado desague em um rio de domínio federal. Será que o Estado poderá editar normas de lançamento de resíduos mais permissivos dos que aquelas que forem adotads águas abaixo, em rio de domínio da União? Ou ainda, poderá o Estado conceder outorgas de direito de uso de água, por sua exclusiva decisão, sem consulta à União e aos Estados localizados a jusante, quando essas outorgas resultarem em diminuição da disponibilidade hídrica para usuários radicados além de suas fonteiras? Em ambos os casos, entendemos que não!

Na realidade,  rio e corrente de água são dois termos que se referem ao mesmo fenômeno natural, visto sob óticas diferentes. Uma ótica é a do observador estático, que se posta à beira de um rio, e observa a água passar. Outra ótica é a do observador dinâmico, que senta numa bóia e se desloca flutuando com a corrente de água. Uma corrente de água que ultrapasse as fronteiras de um Estado tem que ser administrada de forma condicionada, e não absoluta.

No que se refere ao poder da União de legislar sobre águas, cumpre a ela estabelecer uma determinação indispensável e estratégica para a Federação. Neste sentido a ideía do Prof. Paulo Afonso: “existe a obrigação para a própria Federação de velar para o bem daqueles que a compõem”, ou seja,  a União tem a incumbência de promover o interesse geral da Estado brasileiro. Analisando o exemplo acima, caberá a União, como guardiã do interesse nacional, indicar o critério de outorga que prevalecerá em todos os rios de uma determinada bacia; e caberá aos Estados que tenham domínio sobre corpos de água na bacia tomar as providências administrativas para outorgar direito de uso de recursos hídricos consonantes com o referido critério.

A missão de estabelecer este critério foi dada ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos – CNRH pela Lei nº 9433/97 (art. 35, inciso X). O CNRH é composto por representantes do Governo Federal, de governos estaduais e por representantes de organizações não governamentais. Suas decisões se aplicam tanto em rios sob administração federal quanto naqueles nos sob administração estadual.

No escopo do Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos, os Estados não poderão quebrar as regras indicadas pela Lei Federal, sob pena de reverter todo o sistema de administração traçado para a gestão das águas no Brasil.

O legislador pátrio possibilitou a articulação da União com os Estados tendo em vista o gerenciamento dos recursos hídricos de interesse comum. Todo o arranjo instituído tem como finalidade a integridade das águas brasileiras visando a atender os objetivos da República, garantir o seu desenvolvimento nacional e promover o bem de todos.

Os Estados, conforme o art. 25 da Constituição Federal, organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios da Carta Maior. Não há, ao nosso ver, na obediência aos fundamentos constitucionais, lacunas ou abandono de águas dos Estados.

Conclusão

Conforme o texto constitucional, o domínio hídrico da União ou do Estado não relaciona necessariamente competência para legislar ou mesmo administrar a água, notadamente quanto  às tarefas operacionais indicadas, como é o caso da outorga e implementação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

O domínio eminente do Estado ou da União sobre seus bens diz respeito a auto-organização e autogoverno, na esfera da atribuição outorgada pelo comando constitucional. A competência, quer material ou formal, que determina tarefas próprias para a União, não quebra os poderes e autonomia em relação as tarefas de incumbência dos Estados sobre bens de seu domínio, apenas resguarda a Integridade Nacional.

A questão exige bom senso das partes envolvidas no sentido de se promover a melhor gestão dos recursos hídricos, e não a interpretação normativa com foco exclusivo nos consectários da dominialidade.