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Em prol de um sistema socioeducativo real – Entrevista com Reinaldo Cintra

31 de agosto de 2011

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Entrevista: Reinaldo Cintra, juiz auxiliar do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
A maior parte dos estados brasileiros não tem uma política socioeducativa de fato, destinada à reinserção dos adolescentes em conflito com a lei. É o que vem constatando a equipe do Programa Justiça ao Jovem, criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para monitorar a internação de jovens infratores. O projeto foi instituído em julho do ano passado e passou praticamente por todas as unidades da Federação. Falta apenas São Paulo, onde o trabalho começará a partir de agosto próximo e deverá ter duração de dois meses. Segundo Reinaldo Cintra, juiz auxiliar do CNJ e coordenador da iniciativa, até o fim deste ano, o Conselho deverá apresentar um relatório nacional com um verdadeiro raio X do sistema socioeducativo no Brasil. A ideia é apontar as principais falhas e propor mudanças procedimentais e até mesmo legislativas que possam garantir o real cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente.
“Cada unidade trabalha de acordo com a capacidade do seu diretor, da  sua equipe técnica e de segurança. Com isso, temos uma discrepância muito grande na forma de tratar (o adolescente). Em determinado estado, temos uma unidade que trabalha muito bem, cuida dos adolescentes e oferece capacitação a eles. E no estado vizinho, temos uma unidade que, por alguma razão, não funciona e o atendimento é de péssima qualidade. O primeiro passo seria, então, um maior esforço dos estados em elaborar uma política de atendimento socioeducativo que fosse factível e implantada efetivamente”, afirmou Cintra à Revista Justiça & Cidadania. Na entrevista, ele relata como o projeto surgiu, como funciona e os objetivos das visitas realizadas a unidades de internação em todo o país.

Revista Justiça & Cidadania – Quando o programa foi criado e por quê?
Reinaldo Cintra – Em um primeiro momento, as visitas feitas às unidades de internação de adolescentes eram vinculadas ao Mutirão Carcerário, projeto destinado aos adultos. Isso não estava gerando frutos porque havia uma confusão muito grande entre as questões da infância e juventude e a parte de execução penal. Quando o ministro Cezar Peluso assumiu a presidência do CNJ, determinou a separação. Decidimos, então, criar um novo projeto, inicialmente chamado de Medida Justa e agora, de Justiça ao Jovem. O objetivo é fazer uma radiografia do sistema socioeducativo no Brasil, uma vez que não existem elementos sobre essas medidas em relação a todo o país. Então, o objetivo maior é levantar dados, conhecer a realidade e elaborar um trabalho científico que dê subsídio a políticas públicas.

JC – Como esse trabalho é realizado?
RC – A metodologia consiste na realização de visitas a todas as unidades de internação do País. Fizemos isso no Distrito Federal e em quase todos os estados, com exceção de São Paulo. Elaboramos um instrumental de pesquisa que abarcasse a análise da parte arquitetônica das unidades, a parte pedagógica e o serviço prestado pela Justiça na área da Infância e Juventude com relação às medidas. Para checar as informações e saber como o público que recebe a medida, no caso os adolescentes, enxerga o sistema, optamos por um quarto instrumental, que é a oitiva dos adolescentes dessas unidades. Seria inviável ouvir todos, então optamos por entrevistar 10% da população de cada unidade. Dessa forma, verificamos a estrutura física e pedagógica nas unidades visitadas. Depois, essas informações são checadas nas entrevistas com os adolescentes. Também visitamos a Vara da Infância, na qual verificamos os processos, sempre com o intuito de coletar dados e não com finalidade correcional. Com isso, percebemos que cada juiz, às vezes de um mesmo estado, tem uma forma diferente de processar a medida socioeducativa de internação. Faltam uniformização e padronização, de modo a garantir tratamento se não igual, pelo menos semelhante aos jovens. Esse trabalho é feito por equipes compostas por um juiz, dois técnicos, um da área da Psicologia e outro, de Serviço Social ou Pedagogia, e dois servidores de cartórios. Começamos com três equipes e fizemos um projeto piloto no estado de Goiás, em julho do ano passado. Com base nessa experiência, aperfeiçoamos o instrumental e decidimos a estratégia que seria aplicada no resto do país. Depois, fomos a Santa Catarina, onde convocamos mais três equipes. Conforme realizávamos as visitas, íamos aumentado o número de equipes. Hoje temos 11 equipes, que visitam o País inteiro. Para fazer uma fotografia mais real, aceleramos o processo de visitas, enviando aos estados um número de equipes suficiente para que todo o trabalho de verificação das unidades se encerre em, no máximo, uma semana. Com isso, temos um lapso temporal curto, o que traz uma segurança maior aos pontos analisados.

JC – O CNJ encontrou barreira por parte do Executivo ou Judiciário dos estados para realizar as visitas?
RC – Não tivemos, em nenhum Estado, qualquer dificuldade, seja por parte do Poder Executivo ou do Judiciário. As portas sempre nos foram abertas. Sempre tivemos acesso a todas as unidades e dentro das unidades, a todas as salas existentes.

JC – Que diagnóstico já é possível fazer?
RC – Constatamos que grande parte dos estados não tem uma política socioeducativa. Então, cada unidade trabalha de acordo com a capacidade do seu diretor, da sua equipe técnica e de segurança. Com isso, temos uma discrepância muito grande na forma de tratar (o adolescente). Em determinado estado, temos uma unidade que trabalha muito bem, cuida dos adolescentes e oferece capacitação a eles. E no estado vizinho, temos uma unidade, que por alguma razão, não funciona e o atendimento é de péssima qualidade. O primeiro passo seria, então, um maior esforço dos estados em elaborar uma política de atendimento socioeducativo que fosse factível e implantada efetivamente.

JC – A estrutura das unidades preocupa?
RC – Infelizmente, a maioria das unidades é antiga ou adaptada de prédios construídos com outras finalidades. E a maioria dessas adaptações foi feita em estabelecimentos prisionais para adultos.

JC – O sistema socioeducativo, no País, é uma reprodução do sistema carcerário?
RC – Infelizmente, na maioria dos estabelecimentos, ainda temos a visão segregacionista e punitiva. A preocupação maior, então, acaba sendo manter o adolescente dentro da unidade a qualquer preço, sem proporcionar a ele atividade ou serviço que possa levá-lo a repensar sua conduta ou a se sentir responsável pelo mal que praticou. Então, temos a reprodução, em boa parte das unidades, do sistema destinado aos adultos. O jovem fica dentro da cela, saindo apenas para tomar banho de sol. Quando há escolas, são de péssima qualidade. Já oficinas profissionalizantes… é praticamente como ganhar na loteria. Ainda temos esse ranço do Código de Menores, que trata o adolescente como um adulto pequeno. Mas são pessoas diferentes, em fase e níveis de vida diferentes. Eles precisam de um olhar diferenciado.

JC – É possível elencar hoje o melhor e o pior estado?
RC – É difícil, pois como eu disse, dentro de um estado temos unidades muito boas e outras muito ruins. A que me impressionou, de forma muito negativa, pela superlotação das unidades, foi Pernambuco. Já por ocorrências, foi Santa Catarina. No estado do Pará, também se encontrou muito pouca coisa boa.

JC – Cada inspeção resultou em um relatório. Que estados já acataram as sugestão do CNJ?
RC – Esse relatório é entregue para as autoridades dos estados que tenham algum poder de influência sobre o sistema. Nele, apontamos o que vimos e sugerimos algumas providências. É extremamente gratificante perceber que muito daquilo que falamos acabou sendo ouvido e executado. Após a visita ao estado de Santa Catarina, por exemplo, sugerimos a interdição de duas unidades. Elas foram interditadas, sendo que uma chegou até a ser demolida. Em Pernambuco, também após as visitas, na parte que competia ao Judiciário, foram tomadas as providências. O mesmo no estado do Espírito Santo, onde unidades estão sendo removidas e outras, construídas. Em Minas Gerais,  foram constatados adolescentes cumprindo medidas dentro de delegacias  ou penitenciárias. Após conversas com o Executivo mineiro, tivemos notícias de que houve  redução de jovens, em um terço, no sistema penitenciário. Claro que isso tem que acabar, mas acho que é uma resposta significativa, que mostra boas intenções e consciência por parte do Estado. Então, tem sido muito boa a resposta que o Justiça ao Jovem tem recebido dos estados. Todos tiveram algum impacto com as visitas, em menor ou maior escala.

JC – Quando começam as visitas a unidades de São Paulo?
RC – Devem começar na segunda semana de agosto. São, aproximadamente, 60 unidades na Grande São Paulo. No interior, mais umas 80 unidades. O último levantamento que recebi da Fundação Casa apontava 7.700 adolescentes internados nessas unidades. A previsão é de que o trabalho dure dois meses. A ideia, então, é que, até o final de outubro, tenhamos “fechado” o país inteiro e, assim, tenhamos uns dias, antes do fim do ano, para fazermos um relatório nacional.