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Empate e desempate

31 de janeiro de 2006

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Para as novas gerações peço permissão de lembrar: o Brasil teve um presidente chamado Fernando Collor, que renunciou ao mandato antes que o Senado Federal decretasse seu Impeachment e sua inabilitação por oito anos para o exercício de função pública. O Senado não caiu na conversa e decretou a inabilitação. Collor pediu mandado de segurança perante ao Supremo Tribunal Federal, alegando que a pena acessória não podia ser aplicada sem a principal. Fui advogado do Senado e sustentei a tese contrária. Julgamento: quatro votos a favor de Collor, quatro votos a favor do Senado. Empate. Três ministros deram-se por impedidos e não participaram do julgamento porque, naquele tempo, havia ainda o extremo cuidado de evitar suspeita de influência política, ou qualquer outro tipo de influência, sobre posições jurídicas. Marco Aurélio era parente de Collor, Francisco Rezek fora seu ministro do Exterior e Sydnei Sanches havia presidido a sessão do Senado que o cassou. Recusaram-se a participar do julgamento.

No caso do hábeas corpus, em decisão de colegiado, o empate significa a concessão da ordem, porque a dúvida (o empate) é favorável ao réu. No mandado de segurança ocorre o contrário: em caso de empate, considera-se como não concedida a segurança pleiteada. Na dúvida, prevalece o ato impugnado, o ato da autoridade. Fim de papo. Processo para o arquivo. Mas no Brasil a política contamina tudo. É pior que a gripe das galinhas. O ilustre ministro Galloti, então presidente do Supremo Tribunal Federal, resolver faze ruma gracinha: declarou que iria convocar três ministros do STJ para completar o quorum, de onze membros, e que teríamos novo julgamento. Aquele terminara empatado e não valia. Precisava do desempate. Mas o que é isso? Falta de quorum como? Se houvesse falta de quorum, o julgamento teria sido realizado(?).

Por essas razões, sustentei que a convocação seria legítima, pois

tendo havido o número regimental, o julgamento havia terminado e era definitivo. A segurança não fora concedida. Os advogados dos promoventes do impeachment, se não me engano Evandro Lins e Silva e Fábio Konder Comparato, tentaram também suscitar questão de ordem. Galloti não quis saber. Manteve sua decisão de convocar os membros do STJ, encerrou a sessão e saiu correndo para seu gabinete. E não quis falar com ninguém. Empate exige desempate. Santo Deus! O Galloti está maluco!, pensei com enorme pesar, pois gostava dele. O fato de ter votado a favor do Collor era irrelevante para as nossas relações pessoais, mas declarar que o julgamento estava encerrado pelo desempate e convocar Ministros de outro tribunal por falta de quorum era um disparaste sem tamanho.

O Ministro Sepúlveda Pertence sabendo da minha indignação, chamou-me ao seu gabinete. A inteligência do ministro Pertence é igual a sua habilidade: Enorme. Procurou convencer-me a não recorrer da decisão

ministro Galloti, simples proclamação. Irrecorrível.

– Você vai ganhar no plenário – insistiu Pertence.

– Como você sabe?

– É minha instituição.

É preciso fazer vários cursos intensivos e especializados para se estender a mineiridade. O mineiro diz, mas não diz exatamente o que quer dizer. de tal forma que leva a gente a afirmar o que ele disse. Se isso acontecer, terá como negar e provar que se entendeu mal, sem ofender. A ciência está em inferir o que o mineiro não diz, quando está dizendo, ou entendera outra coisa, que eles está querendo que você saiba, ao falar de coisa diferente. O mineiro é muito difícil, muito difícil, sobretudo quando invoca suas intuições sobrenaturais. Não recorri. Conformei-me com a convocação dos

Ministros do Supremo Tribunal de Justiça e, no novo julgamento, ganhei de sete votos a três. Tudo isso se deu no século passado.

Agora no novo século, o Supremo Tribunal de Justiça acaba de aprontar algo parecido novamente no mandato de segurança impetrado por José Dirceu em oposição a procedimentos internos no Conselho de Ética da Câmara de Deputados. Cinco ministros votaram contra a impetração declarando que o Supremo não deve se meter nos assuntos do parlamento. Cinco outros votaram a favor de José Dirceu, com variantes de fundamentos, por sinal engraçados. Não interessa comentar a divergência. Comento empate. A segurança não foi concedida, isto é, foi negada e este é o resultado que deveria ser proclamado, como aconteceria em qualquer colegiado do mundo se o impetrante fosse outro pobre mortal. Mas o Ministro Nelson Jobim, com a concordância do plenário, inventou mais uma: o ministro Sepúlveda Pertence, que não estava presente, deveria desempatar quando voltasse a freqüentar o Supremo. Não ousou dizer que faltava quorum, mas foi muito original na inovação: o empate deveria ser desempatado por um ausente. O vírus da gripe aviária, H5N1, já foi identificado. O da política ainda não tem designação cientifica, mas existe, se propaga e sofre mutações fantásticas.

Logo, o julgamento que não terminou, não acabou. Em patê exige prorrogação. É campeonato mata-mata. O Ministro Sepúlveda Pertence compareceu e votou a favor de José Dirceu, concedeu segurança liminarmente, mas antes, e mineiramente, teceu loas e rasgados elogios ao voto do Ministro César Peluso, dizendo que o tribunal teria que apurar o voto médio. Na matemática do voto médio, os cinco ministros que haviam entendido que não poder o Suprimo imiscuir-se em assunto interno do parlamento, passaram a apoiar o voto do Peluso, que admitia imiscuir-se um pouco só, desde que fosse desentranhado do processo o depoimento de uma senhora presidente um banco considerada testemunha de acusação por haver falado mal do José Dirceu. Poe seis a cinco foi vitorioso o voto de imiscuir-se um pouquinho só.

Esse pouquinho só consistia em proibir o relator do processo no Conselho de Ética de mencionar em seu relatório-voto aquela depoente, nem mesmo pra dizer que seu depoimento foi extraído dos autos. Por ouvir dizer ou por ter visto na TV, como se vê novela ou jogo de futebol, posto que não houve intimação da decisão, o relator do Conselho de Ética redigiu outro voto, sem o questionado depoimento, e mandou entregar, para serem distribuídos, exemplares da nova versão ao relatório da Câmara de Deputados. Embrulhados todos os pacotinhos presos com elásticos. Terminada a sessão que José Dirceu foi cassado, os pacotinhos com a nova versão do relator estavam intactos. Nem elástico foi tirado. Ninguém quis saber do relatório expurgado, ou mais apimentadamente, do relatório votado pelo Supremo. Isso demonstra a inutilidade dessa decisão

da mais alta corte do país, porque proferida contra atos de processo parlamentar em andamento. Um tribunal constitucional deve reservar-se para analisar, quando for o caso, os atos finais do outro poder, e não entrar em campo como um torcedor indisciplinado que pula o alambrado e perturba o espetáculo da democracia que nos resta.