Edição

Ensaio sobre a recuperação de pessoas singulares (sobre-endividamento) na Legislação Portuguesa

23 de outubro de 2012

Compartilhe:

1. Introdução

De acordo com a Portaria no 1.039/2004 e aprovação do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) pelo Decreto-Lei no 53/2004 e pela Lei no 16/2012, reformou-se profundamente o direito falimentar português, ocorrendo várias modificações na estrutura do processo, como também a introdução de novas figuras com ele relacionadas. Uma dessas figuras trata-se do plano de pagamento, que, todavia, aplica-se nos casos em que o devedor seja uma “pessoa singular”, ou um pequeno empresário, desde que tenha menos de 20 credores, não tenha dívidas laborais e tenha menos de € 300.000 de passivo.

Assim, o plano de pagamentos consiste numa proposta de satisfação dos direitos dos credores que acautele devidamente os seus interesses e que poderá conter garantias reais ou privilégios creditórios existentes. Cuida-se de um programa calendarizado de pagamento ou o pagamento numa só prestação. O plano de pagamento é apresentado pelo devedor, conjuntamente com a petição inicial do processo de insolvência, ou após a sua citação no caso de o pedido de insolvência ter sido requerido por terceiro. Desta forma, o plano de pagamentos é um instrumento útil para imprimir celeridade ao processo de insolvência e obter a satisfação dos direitos dos credores.

2.  A Reforma da Ação Executiva

O Decreto-Lei no 226/2008, de 20 de novembro, introduziu diversas medidas destinadas a aperfeiçoar o modelo adotado pela designada Reforma da Ação Executiva. Em conjugação com as medidas adotadas para evitar ações judiciais desnecessárias, foram introduzidos mecanismos destinados a apoiar os executados em situação de superendividamento, procurando desta forma criar uma ligação que faltava entre o Judiciário e as entidades que prestam apoio ao superendividado.

Considerando os processos executivos, que se destinam à cobrança judicial de dívidas muito frequentes e por constituir uma boa parte do sistema de justiça, são criadas duas novas medidas destinadas a detectar e apoiar pessoas em situação de superendividamento.

Em primeiro lugar, nas execuções extintas por não terem sido encontrados bens penhoráveis, é dada aos executados em situação de sobre-endividamento, como dizem os portugueses, a possibilidade de suspender a inclusão do registro do seu nome na lista pública de execuções, quando aderirem a um plano de pagamento elaborado por uma entidade específica e enquanto estiverem a cumprir as obrigações acordadas.

Em segundo lugar, no caso dos processos de execução submetidos a centros de arbitragem, em que o executado seja uma pessoa em situação de sobre-endividamento, é dada a possibilidade de suspensão do processo por acordo entre as partes, se o executado aderir a um plano de pagamento elaborado por uma entidade específica e enquanto estiver a cumprir.

Registre-se que a importância destas medidas se situa em dois planos. Por um lado, uma pessoa em situação de superendividamento é, em primeira linha, alguém que necessita de auxílio para reconstruir a sua situação financeira e poder voltar a honrar seus compromissos. Daí que surge a preocupação essencial de criar condições para ajudar o cumprimento de um plano de pagamento com os seus credores. Por outro lado, a criação de um plano de pagamentos por acordo entre a pessoa sobre-endividada e os seus credores traduz-se numa situação mais vantajosa para estes, uma vez que possibilitam novamente a recuperação de créditos que, de outra forma, seria muito difícil.

Os sistemas de apoio ao superendividamento no Direito Português constituem um conjunto de mecanismos colocados à disposição de pessoas superendividadas por entidades habilitadas a prestar esses serviços e que têm como objetivo aconselhar, informar e acompanhar qualquer pessoa em situação de sobre-endividamento na elaboração de um plano de pagamento, através de procedimentos conciliatórios ou através da mediação.

3. A Finalidade do Processo Especial de Revitalização

O processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que comprovadamente se encontre em situação econômica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com este acordo tendente à sua revitalização.

Trata-se de um processo de caráter urgente e pode ser usado por todo o devedor que, mediante declaração escrita e assinada, ateste que reúne condições necessárias para a sua recuperação. Considera-se “situação econômica difícil”, aquele devedor que enfrenta dificuldades sérias e não consegue cumprir pontualmente as suas obrigações, por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter mais crédito.

Assim, cabe ao devedor comunicar ao Juiz competente a sua pretensão em dar início às negociações conducentes à sua recuperação. Logo após, qualquer credor dispõe de 20 dias para reclamar créditos, devendo as reclamações ser remetidas ao administrador judicial provisório, que, no prazo de cinco dias, elabora a lista provisória de créditos. Não sendo impugnada, a lista provisória de créditos converte-se de imediato em lista definitiva.

Com o fim do prazo para impugnações, os declarantes dispõem de dois meses para concluir as negociações. Durante as negociações, o devedor presta toda a informação pertinente aos seus credores e ao administrador judicial provisório, para que se possa realizar de forma transparente e equitativa o plano de revitalização.

O devedor, bem como seus administradores de direito ou de fato, são solidariamente e civilmente responsáveis pelos prejuízos causados aos seus credores em virtude de falta ou incorreção das comunicações ou informações a este prestada, correndo, autonomamente ao presente processo de revitalização, a ação intentada para apurar as aludidas responsabilidades.

4. Efeitos da Recuperação

O despacho de nomeação do administrador provisório obsta a instauração de ações para cobranças de dívidas contra o devedor, seja qual for a sua natureza. Contudo, obsta a instauração apenas no que se refere ao devedor, pois se forem vários executados/réus e requeridos, os processos seguem normalmente.

Caso o juiz nomeie administrador judicial provisório, o devedor fica impedido de praticar atos de especial relevo, tal como definidos no art. 161, sem que previamente obtenha autorização para a realização da operação pretendida por parte do administrador judicial provisório.

Entre a comunicação do devedor ao administrador judicial provisório e a resposta, previstas no número anterior, não podem passar mais de cinco dias, devendo, sempre que possível, recorrer-se a comunicações eletrônicas.

A falta de resposta do administrador judicial ao pedido formulado pelo devedor corresponde à declaração de recusa de autorização para a realização do negócio pretendido.

Concluindo-se as negociações com a aprovação unânime do plano de recuperação à revitalização do devedor, em que intervenham todos os seus credores, este deve ser assinado por todos, acompanhado da documentação que comprova a sua aprovação, atestada pelo administrador judicial provisório nomeado, produzindo tal plano de recuperação, em caso de homologação, de imediato, os seus efeitos.

Após as negociações, com aprovação do plano de recuperação, o devedor remete o plano de recuperação aprovado ao Tribunal. Considera-se aprovado o plano de recuperação que reúna a maioria dos votos, sendo o quórum deliberativo calculado com base nos créditos relacionados na lista de crédito a que se referem os números 3 e 4 do artigo 17-D, podendo o juiz computar os créditos que tenham sido impugnados se considerar que há probabilidade séria de serem reconhecidos, caso a questão ainda não se encontre decidida.

O juiz decide se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação. A decisão do juiz, depois de publicada, vincula os credores, mesmo que não hajam participado das negociações.

Caso o devedor ou a maioria dos credores concluam antecipadamente não ser possível cumprir acordo, ou caso seja ultrapassado o prazo previsto no art. 17 no 5, o processo negocial é encerrado, devendo o administrador judicial provisório comunicar tal fato no processo, se possível, por meios eletrônicos e publicá-lo no portal Citius.

Nos casos em que o devedor ainda não se encontre em situação de insolvência, o encerramento do processo especial de revitalização acarreta a extinção de todos os seus efeitos. Estando, porém, o devedor já em situação de insolvência, o encerramento do processo acarreta em sua insolvência, devendo a mesma ser declarada pelo juiz no prazo de três dias úteis.

As garantias convencionadas entre o devedor e os seus credores durante o processo especial de revitalização, com a finalidade de proporcionar àquele os necessários meios financeiros para o desenvolvimento da sua atividade, mantêm-se mesmo que, findo o processo, venha a ser declarada, no prazo de dois anos, a insolvência do devedor.

Os credores que, no decurso do processo, financiem a atividade do devedor lhe disponibilizando capital para a sua revitalização gozam de privilégio creditório geral, graduado antes do privilégio creditório concedido aos trabalhadores.

Caso o juiz não homologue o acordo, os credores dispõem de 20 dias para reclamar o crédito, que poderá ser impugnado no prazo de cinco dias úteis, dispondo, em seguida, o juiz de idêntico prazo para decidir sobre as impugnações formuladas. Não sendo impugnada a lista provisória de créditos, esta converte-se, de imediato, em lista definitiva.

5. Anteprojeto da Comissão de Juristas do Senado Federal Brasileiro sobre Crédito ao Consumidor e Prevenção do Superendividamento

No campo do crédito ao consumo e no superendividamento, o Direito estrangeiro avançou muito nos últimos anos. Deste modo, a Comissão de Juristas do Senado reconheceu a essencialidade do crédito ao consumidor e identificou a necessidade de se estabelecer um pacto mínimo de boas práticas que favoreçam a transparência e a boa-fé nesse assunto.

Deste modo, optou, a Comissão, pela sistematização do tema com enfoque também na prevenção do superendividamento do consumidor. No âmbito do tratamento do superendividamento, foi previsto exclusivamente procedimento consensual dentro da seara de composição pacífica dos conflitos. Dessa forma, a inserção de procedimento judicial litigioso foi relegada à elaboração de legislação especial ou à inserção de regramento na reforma do Código de Processo Civil.

Toda a percepção do endividamento se deu fundada no princípio da boa-fé, endereçando a possibilidade de atuação judicial casuística no tratamento do superendividamento, a exemplo dos julgados envolvendo ações declaratórias de superendividamento com pedido de renegociação de dívidas, revisionais de contratos, ações envolvendo concessão abusiva de crédito, entre outras.

O reforço a essa exegese é encontrado na leitura da proposta de artigo 5o, VI, do mencionado projeto, ao revelar que a atuação do Estado-Juiz não deverá estar limitada à prevenção do superendividamento, notadamente, quando em sua redação expressa necessidade de tratamento judicial com preservação do mínimo existencial e da dignidade humana. Vejamos: “instituição de mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e de proteção do consumidor pessoa física, visando a garantir o mínimo existencial e a dignidade humana. (NR)” Nessa esteira, esta interpretação é reforçada pelo texto da proposta contida no artigo 6o, inciso XI, vez que a garantia da atuação responsável do fornecedor de crédito, da prevenção e do tratamento do superendividamento na forma exposta no texto será alcançada mediante a prestação jurisdicional.

Ademais, não obstante a ausência de criação de procedimento judicial específico para o tratamento das situações de superendividamento do consumidor, o texto do artigo 54-A reconhece o endividamento excessivo como fenômeno de exclusão social.

Nesse contexto, o papel do Poder Judiciário para dirimir os conflitos envolvendo crédito abusivo ou desequilíbrio contratual resultante de fato superveniente e involuntário refletirá a concreção do próprio mandamento previsto no artigo 5o, inciso XXXII, da Constituição Federal. Significa dizer que cumprirá ao Estado-Juiz assegurar o direito fundamental da dignidade humana através da preservação do mínimo existencial.

O artigo 54-B, em diálogo com o atual artigo 52 da Lei no 8.078/90, destinou critérios para a concretização do dever de informação pelo fornecedor ou intermediário, exigindo que as informações sejam prestadas tanto na oferta como no contrato. Percebe-se uma preocupação da Comissão em vedar práticas desleais e incentivadoras do ilusório aumento do poder aquisitivo da população.

Na mesma linha de entendimento, o texto do §4o, inciso III, do artigo 54-B, reproduz prática de prevenção do superendividamento através da concessão responsável do crédito, vedando a oferta e veiculação de publicidade de crédito “sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor”. Em verdade, mensagens publicitárias desta natureza já são vedadas em alguns países, dado o estímulo aos consumidores já endividados a comprometer ainda mais seu orçamento familiar.

A concepção mais social do contrato com a exigência de conduta leal e cooperativa das partes, iluminada pelo princípio da boa-fé, é identificada no conteúdo do artigo 54-C. São os deveres anexos de aconselhamento e de cuidado, decorrentes da boa-fé, que impõem a adoção de critérios para a concessão responsável do crédito.

O texto do artigo 54-D introduz ainda a regulamentação sobre as situações de crédito consignado, estipulando limite para a consignação em conta bancária, folha de pagamento ou benefício previdenciário, imprescindível à preservação do mínimo existencial, permitindo, ainda, que o consumidor possa adimplir os demais credores que não contam com essa garantia de pagamento.

6. Conclusão

Nas últimas décadas, dezenas de milhões de brasileiros abriram sua primeira conta bancária e adquiriram seu primeiro cartão de crédito. Caminhamos para a verdadeira democratização do crédito, fenômeno que não só amplia as facilidades de acesso a produtos e serviços, como também gera emprego, crescimento econômico e bem-estar social.

Daí, o aperfeiçoar dos mecanismos de concessão e democratização do acesso ao crédito e aos produtos e serviços em nosso mercado de consumo – que é a base da ascensão da economia no Brasil –, se revela um problema comum a todos nós.

Com efeito, os atuais mecanismos disponíveis em nossa legislação, como a proibição de penhora de salário (art. 649 do CPC); a proibição de penhora de bem de família (Lei 8.009/90); as restrições impostas pelo Código de Defesa do Consumidor (arts. 6o, V, 42, 43 e 71); a vedação de débito superior a 30% do salário ou pensão do funcionário público (Lei 10.820/2003); o procedimento de insolvência civil (arts. 748 a 785 do CPC), não possibilitam ao devedor sobre-endividado, reabilitar-se financeiramente.

A jurisprudência vem, nesse particular, adaptando os mecanismos existentes no sentido de tornar o resgate da dignidade do devedor mais viável. Assim, a adoção de uma norma que tenha a finalidade de prevenir o superendividamento da pessoa física, e que promova o acesso ao crédito responsável e à educação financeira do consumidor, de forma a evitar a sua exclusão social e o comprometimento de seu mínimo existencial – sempre com base nos princípios da boa-fé, da função social do crédito ao consumidor e do respeito à dignidade da pessoa humana –, se mostra necessária.

Portanto, destacar a relevância do estudo da Legislação Portuguesa como forma de investigação sobre os potenciais benefícios e prejuízos de uma futura regulamentação do assunto no Brasil e do projeto de reforma do Código de Defesa do Consumidor Brasileiro, é imprescindível ao aperfeiçoamento do nosso sistema.