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Espalhando leitura pela Baía de Guanabara

24 de novembro de 2014

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Jose-GeraldoIniciativa do desembargador José Geraldo da Fonseca, do TRT-1a Região, vira projeto cultural nas barcas Rio-Niterói

Há dez ou 15 anos, algum incauto usuário do transporte público carioca poderia, durante uma viagem, acabar se deparando com algum livro ou CD esquecido nos bancos. Nesse caso, porém, a regra básica de procurar o dono não deveria ser levada a cabo, já que o objeto trazia um aviso: quem o encontrasse se tornaria seu proprietário. Era assim que José Geraldo da Fonseca, desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 1a Região, buscava semear o hábito da leitura entre os passageiros de ônibus, metrôs, táxis e barcas. Em outubro, a CCR Barcas, que administra o sistema da travessia Rio-Niterói, inaugurou iniciativa inspirada no antigo hábito do desembargador.

José Geraldo, ou Zé, como prefere ser chamado, preocupa-se em democratizar os livros como apenas um apaixonado pela leitura pode fazer. Esse amor, conta ele, tem suas raízes em uma infância carente de livros, mas rica em histórias, contadas à noite, antes de dormir. Na infância em Caraguatatuba, litoral norte de São Paulo, em um mundo sem televisão e com um rádio a pilha que pegava mal, o menino tinha como entretenimento noturno os contos e casos contados ao pé do fogão de lenha. “Tudo o que aprendíamos com os mais velhos vinha dessa tradição oral. O conhecimento sobre as coisas ia passando de um para o outro por meio da palavra. Quando o braseiro do fogão morria, íamos dormir imaginando um mundo diferente do nosso, cheio daquelas fantasias que os adultos contavam”, recorda. “Em uma família assim, pobre e de tradição oral, o refúgio predileto das crianças estava nos livros. O apego à leitura vem daí”.

Anos depois, já proprietário de uma grande coleção de títulos, angustiou-se ao ver que os amados livros haviam se acumulado e virado um problema, já que ocupavam muito espaço. Jogar no lixo estava fora de cogitação e vender em algum sebo não era, tampouco, uma perspectiva agradável.  Formar um novo leitor era o melhor destino que um livro poderia ter. E foi o que começou a acontecer. “Um dia, não sei exatamente quando, decidi ‘esquecer’ um livro nos ônibus, no metrô, nos táxis e nos caixas automáticos dos bancos porque estão em lugar seguro. Quando me mudei para Niterói e comecei a trabalhar no Rio, todo dia eu deixava uns dois ou três livros escondidinhos em um canto das barcas Rio-Niterói”, conta. No começo, simplesmente deixava os livros, mas como eles poderiam ir parar na sessão de achados e perdidos, passou a deixar junto deles um bilhete, explicando que o livro não havia sido perdido, e sim deixado ali de propósito, para que quem o encontrasse lesse e depois passasse adiante, criando uma corrente.

Um dia, porém, observando o trabalho da equipe de limpeza das barcas em Niterói na Praça XV, notou que seu programa de leitura tinha uma fragilidade: o pessoal da faxina, acostumado a recolher os objetos deixados pelos passageiros, poderia encaminhar os livros para o setor de achados e perdidos. Se assim fosse, todo o plano do desembargador iria por água abaixo. Sabendo disso, decidiu falar com a empresa que administra as barcas. “Mandei um e-mail à ouvidoria da empresa CCR Barcas confessando o meu ‘crime’ e sugerindo a criação de bibliotecas livres em cada barca que fizesse a travessia Rio-Niterói”, diz. A empresa gostou da ideia, que foi implementada, ainda em caráter experimental, no início de outubro.“Nós fomos procurados pelo desembargador José Geraldo de uma maneira interessante. Ele tinha um sonho, que era utilizar o sistema de barcas como um facilitador no processo da leitura. Foi uma proposta muito agradável, que contou com o empenho da nossa equipe para concretizá-lo”, conta Francisco Pierrini, Diretor de Operações da CCR Barcas.

A assessoria de comunicação da CCR Barcas concebeu a estante em formato de livro, mas ponderou que deixar os livros na barca, como o desembargador fazia, poderia incomodar os passageiros no horário de pico. Por isso, a solução foi acomodar a estante no Centro Cultural aberto na estação Charitas-Praça XV, ponto final das barcas que vêm de Niterói, Charitas e Paquetá, para atender aos passageiros de todas as linhas. Ao contrário das bibliotecas, onde um funcionário controla os empréstimos, nas barcas o acesso é livre. “As pessoas ficam um bom tempo nessas estações indo e vindo a lazer ou a trabalho, e o fato de disporem gratuitamente de livros e CDs que possam pegar e levar para casa sem qualquer controle dá a elas uma sensação de responsabilidade, de confiança. Se a ideia vingar, eles pretendem levar essa estante móvel a todas as estações de barcas da empresa”, adianta José Geraldo. “Eu só dei a ideia, não interferi no projeto. O mérito é do Sérgio Murilo, assessor de comunicação, e da presidência das Barcas, que apostaram na proposta”.

O desembargador sente-se bem vendo sua iniciativa solitária tornar-se um projeto maior, capaz de atingir ainda mais pessoas, embora não espere nenhuma distinção. “Você não sugere uma coisa dessas esperando mérito. Se for assim, é melhor nem começar. Mas me sinto muito bem. Estou fazendo uma coisa útil, que acrescenta algo na vida e no dia a dia das pessoas”, conta. E no que depender dele a biblioteca das barcas é só o começo. “Penso em sugerir isso também em aeroportos, onde o fluxo de pessoas é maior, e onde se fica ocioso por muito mais tempo. Penso que os bancos, shoppings, supermercados, órgãos públicos, todos eles poderiam aproveitar a ideia e criar suas bibliotecas. O custo é baixíssimo e o retorno, muito grande”, avalia. A iniciativa, diz ele, também poderia ser adotada individualmente, por pessoas que, como ele, têm em casa livros que já leram e não utilizam. Uma forma inteligente e barata de disseminar cultura e informação. “A ideia é entupir o país de bibliotecas assim”, idealiza.