Edição

Ética e tolerância

31 de janeiro de 2007

Compartilhe:

Faz algum tempo que este fantasma tem freqüentado as reflexões de muitos brasileiros e aparecido de vez em quando na imprensa: se repetimos com tanta constância que não temos o governo dos nossos sonhos, faria todo sentido pararmos um instante para indagar se somos, a nosso próprio juízo, a sociedade dos nossos sonhos. Como tantos outros, não tenho pronta resposta.

Muitas vezes, tentando comparar sociedades, já me disse que nada iguala o arejamento, a generosidade, a resistência, o poder de adaptação dos brasileiros a novas e, não raro, surpreendentes circunstâncias.  Por outro lado, custo a aceitar como justa a crítica isolada da função pública.  Ela é tão comum no espírito e na voz da grande massa que faz pensar que nosso povo foi de algum modo induzido a associar incorreção e falta de escrúpulos ao exercício de um mandato eletivo e à dependência do voto popular, ou, de forma mais ampla, ao exercício de um cargo público e à dependência de um empregador custeado pela economia popular.

Essa crítica contrasta com a indulgência com que os agentes econômicos e os formadores de opinião do setor privado se vêem e se fazem ver, quase sempre com sucesso, pelas bases da sociedade civil brasileira.   Mas não é raro que, na elite do setor privado, os vícios da administração pública apareçam, antes de tudo, como um oportuno argumento para justificar a quebra dos próprios escrúpulos e a deserção de todo compromisso com o interesse comum.  Ética na política não é apenas a do congressista, a do ministro, a do fiscal e a do promotor de justiça.  É também, para todos, a ética do contribuinte, a ética do eleitor.  E é ainda, para alguns, a ética que deve acompanhar o exercício de toda espécie de poder que, distinto e independente do poder público, tem como influir sobre este último, sobre sua formação e seu uso.

Exigir integridade do titular da função pública é algo mais elementar e imperativo do que pedir-lhe que faça seu trabalho com talento e dê uma ajuda substancial à correção de nossos rumos e ao crescimento de nossa auto-estima coletiva.  Entretanto, toda exigência do cidadão ao governante soa como um discurso falso se aquele pouco exige de si mesmo, se a consciência lhe diz que não faz corretamente sua parte e que tampouco faria melhor se fosse ele o governante. Temos todos o direito de esperar que, no governo, o nível de qualidade técnica supere aquele que esperamos de nós mesmos enquanto cidadãos comuns.  No entanto, no estrito domínio da ética, sabemos que nada nos autoriza a nos sentir dispensados de observar com rigor o padrão que esperamos da administração pública.

No diálogo entre dois personagens de Boris Pasternak, o mais jovem reage a certa crítica dizendo não acreditar que a idade melhore os seres humanos. Ouve o outro afirmar que, com a idade, as pessoas se tornam mais tolerantes, e responde que isso é porque as pessoas, ao longo do tempo, vão tendo cada vez mais o que tolerar em si mesmas.

A tolerância é uma das mais belas virtudes da alma humana, mas é provável que ela represente, nesse quadro, uma patologia.  Quando o desgaste progressivo da integridade do cidadão o torna menos exigente ao consagrar, pelo voto, os pretendentes da função pública, e ao controlar o respectivo desempenho, o que temos já não é mais tolerância enquanto virtude; é uma condescendência degenerativa do processo político e conducente a que o desprezo da ética, entre os eleitos, responda ironicamente a um anseio de representação fiel de seus eleitores. Com isso, nenhuma sociedade democrática pode conviver por muito tempo.