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Experiência de vida transmitida aos jovens magistrados

5 de junho de 2000

Desembargador e 1º Vice-presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

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Palestra proferida na EMERJ aos novos Magistrados do Estado.

Quase meio século peregrinando pelos caminhos amplos do Direito, na Advocacia, no Ministério Público e por fim na Magistratura Colegiada, no caudal da nossa experiência vivenciada, aos iniciantes Colegas, forçoso confessar que o aprendizado não cessou, quer por ser a ciência do direito inesgotável, quer pelo multifário da conduta humana a gerar conflitos de convivência e interesses, econômicos, sociais e morais.

O Estado, como todos sabemos, desde épocas priscas, tomou para si o encargo de ser árbitro da disciplina social, retirando do homem, insuladamente, a possibilidade de fazer justiça ao seu alvedrio, assim instaurando uma ordem jurídica como imperativo de harmoniosa convivência humana, calcada esta entre dois extremos: direitos e deveres; segurança e liberdade, apanágio do estado democrático organizado.

Os ônus, ou tutoria, dessa missão, conferiu-a aos Juízes, os quais se desdobram ante às mutações dos costumes e fatores de ordem política e econômica, modernamente se ampliando pelo vertiginoso desenvolvimento tecnológico, tudo a contrastar com uma legislação codificada arcaica, não raro agravado pelo delírio legisferante do presente, excesso de leis e de medidas provisórias que deformam e hipertrofia o direito, estabelecendo um ambiente de perplexidade para o Judiciário e os jurisdicionados, o que levou, inclusive um eminente Colega a afirmar que, por não mais existir espaços em seus Códigos para anotações das mudanças e acréscimos de suas regras, passou a adotar, como terapêutica, decidir pela última lei indicada pelos operadores do direito às causas sob o seu custodiado julgamento.

Nesse cipoal estareis os novos e verdejantes Colegas, a iniciar vossa jornada, pondo-se diante daquela centelha mitológica: decifra-me ou te devoro em censuras…

Com razão o egrégio RUI quando assinalou que “todo magistrado tem muito de heróico em si mesmo…”, ou na concatenada colocação CARNELETTIANA, pontificando inexistir em face da terra “um ofício mais elevado do que o seu, nem uma dignidade mais impotente”.

Nesse contexto, aparentemente assustador, o nosso aceno, ou conselho, aos Jovens Magistrados, em suas iniciações, afora o óbvio e permanente estudo do direito, recomendamos a prudência, o recato, a urbanidade e a transparência, senhas para um bom desempenho da judicatura.

A Magistratura não se improvisa. O Direito é emanação da vida. O Pretório, abrigo receptor de todas as angústias do ser humano. Aquele, regenciador da convivência humana; este, solvedor dos seus conflitos. Já se disse alhures que a “estrada da Justiça” é uma rodovia de mão dupla: tem direitos e deveres. O direito sem deveres é uma alegoria; o dever sem direito é tirania. A Lei é o Código do Juiz; a Justiça o seu evangelho.

Pela sua formação cultural e humanística, medindo as misérias humanas em todas as suas dimensões, na oficina da sua jurisdição, deve o Juiz ser receptivo a quantos a ele se dirigem, o que significa dizer, a porta se seu gabinete nunca se acha cerrada. É como uma ponte de livre acesso.

A propósito, JARBAS PASSARINHO, no seu “Híbrido Fértil”, citando MALRAUX, nas suas “Antimemórias”, bem destaca este significativo trecho: “O que interessa num homem qualquer, é a condição humana. Num grande homem, são os meios e a natureza de sua grandeza. Num santo, o caráter de sua santidade”, no que acrescentaríamos, num Magistrado, a sua postura diante dos seus jurisdicionados.

O Juiz não é nenhuma figura transcendental, não tem o dom da perfeição, nem poderes divinatórios ou o privilégio da inerrância, mas dele se pede e espera uma postura de grandeza que o destaca dentre os seus iguais. Ainda, é CARNELLUTI a observar: “Os juízes são como os que pertencem a uma ordem religiosa. Cada um deles tem que ser um exemplo de virtude, se não quer que os crentes percam a fé”. MOURA BITTENCOURT, que fora magistrado conspícuo, pondera: “a paixão das partes é explicável; a do Juiz, não”; enquanto CALAMANDREI, descortinando uma concepção mais ampla, acentua que “os magistrados não são criaturas super-humanas, não atingidas pelas misérias desta terra e, por isso intocáveis”, conquanto posicionados num degrau mais alto no pavilhão da sociedade.

A presteza da prestação jurisdicional; o esmero na fundamentação das suas decisões; a transparência da sua imparcialidade, são princípios dogmáticos do Magistrado.

Lembraríamos, en passant, o artigo 5º, da nossa Lei de Introdução ao Código Civil, como norma de observância na mensuração das causas a julgar, de modo a fazer brotar da sua decisão um julgamento justo, equilibrado e humano.

O Juiz como membro do Poder, encarna uma parcela da soberania nacional. Ao decidir, não se externa por si, mas em nome do Estado, a lhe exigir ponderação refletiva para todos os temas abordados pelas partes, no desempenho de seu aspérrimo dever.

Permitiríamos lembrar-vos de um significado detalhe: o rico da inconfidência. No voltário dos juízos definitivos somos, não raro, conduzidos a mudanças de opinião, muitas das vezes surpreendidos por detalhes significativos que passaram desapercebidos à perfunctória ou primeira observação.

O Juiz não deve nunca emitir, por antecipação, o seu veredicto.

Existe amargo registro nos anais do nosso Judiciário, em décadas recuadas. Determinado magistrado teria manifestado sua propensão na decisão de uma causa sujeita ao crivo de seu julgamento, mas ao decidir, diversa fora sua conclusão, atento às minúcias do processo. Houvera, contudo, sido traído por quem ouvira sua precedente manifestação, levando o apressado informe à possível parte vencedora. Sobrevindo a sentença adversa, com ela desfechou-se um escândalo, culminando com seu afastamento das funções judicantes até que se concluísse o procedimento administrativo, ao final isentando-o do labéu. Inobstante, admoestado restou pela sua inconfidência. Estoicamente tudo suportou, em silêncio, até a proclamação da sua inocência. Ao derradeiro, não resistindo o amargor da vilania, auto eliminou-se, deixando aos pósteros o registro de não ter tido forças para suportar a maldade humana, mensagem de advertência.

A transparência é a moldura na qual se enquadra o retrato falado do Magistrado, assim como, dele se espera a urbanidade e a simplicidade, árbitro solene que sabe ser no painel da sociedade, da qual é mandatário.

Quaisquer que sejam as condições sociais de seus jurisdicionados, ou títulos que ostentem, trate-os de igual forma. Nisso reside o pedestal da igualdade de todos perante às leis, princípio universal que rege os povos civilizados na face da terra.

Bem à luva, tomamos por empréstimo as lições por nós hauridas na cátedra da Faculdade de Direito de Niterói, pela qual perlustramos, do mestre inolvidável, BENJAMIM ANTUNES DE OLIVEIRA FILHO: “O ideal da humanidade, o grande ideal dos homens é a Justiça que, do mesmo modo em que constitui o fundamento incomutável das sociedades de homens livres, se erige, no vértice das criações, como a flor mais cara da civilização. Não a justiça farisaica, a vesga companheira, ancila claudicante de textos mortos e de praxes embusteiras e emasculadas, mas a Justiça que dimana a lei eterna e, na terra, assentou morada na consciência do homem reto, simples e puro. Essa Justiça simples e desativada de conceitos parasitários, Justiça que, permanecendo idéia, não deixa de ser um impulso, um movimento de alma. Justiça singela, relativamente fácil, acessível aos que acreditam na eficácia de sua virtude, porque ao cabo de tantas, a própria ciência nada mais é, na opinião canônica de COMTE, senão o mero prolongamento do senso comum, generalizado e sistematizado”.

Vários são os decálogos fluídos da atividade judicante de notáveis Juízes. Servem-nos catecismo para o nosso dia-a-dia. Todos eles, diversificados na forma, tão só, assentam suas bases num mesmo pódio, destacando o ofício judicante como honesto, sóbrio, paciente, imparcial, prestante, humilde, justo, independente, corajoso e humano.

ELIÉZER ROSA, oferta-nos, na sua sensível “A Voz da Toga”, na maestria de seu linguajar humanístico e vernacular, uma visão cristã das coisas emanadas da sua vivência nos meandros da judicatura, destacando a imperiosa visão sociológica do direito, particularmente aos que lidam com valores não patrimoniais, até porque não é pela expressão econômica da causa que a demanda se qualifica – dí-lo, eloqüentemente -, senão pelas suas implicações morais e sociais, lembrando-nos que a “Justiça e Bondade deverão andar manas e mistas, de mãos dadas; justiça didática que ensine ao homem extraviado o caminho reto duma vida justa, fecunda e harmoniosa, sentindo e vivendo os dramas que tem de julgar”. E TOBIAS BARRETO, a lembrar que o direito não é filho do céu, mas produto da criação humana, de modo que, muita das vezes, uma simples pétala de rosa pode pesar mais do que as articulações das respeitáveis doutrinas.

No exemplo reside, enfim, o perfil do Magistrado, em sua conduta reservada e pública. É ele, queira ou não, a matriz para os seus jurisdicionados. E, assim, ele ainda profetiza: “Só aquele que um dia DEUS o chamou para a grandeza de ser Juiz sabe o que é a vida do Juiz. Só aquele que sofreu as angústias da vida de Juiz sabe o quanto há de sofrimento na vida do Juiz. Só aquele que rasgou seus pés nos espinhos da estrada da Justiça sabe quanta dor se esconde no corpo e na alma do Juiz”.

Que todos possam edificar, na santidade da sua missão, o seu próprio destino, sob o olhar de Deus, Juiz Soberano de todos nós.

Obs.: Decorrente do limite etário constitucional, o Desembargador ELLIS HERMYDIO FIGUEIRA, encerrou sua passagem pelos diversos Órgãos da Corte Judiciária, por três mandatos integrando o Conselho da Magistratura; Secretário de duas dezenas de Concursos da Magistratura; desempenhando o mandato de Corregedor-Geral da Justiça; e, finalmente, no pleno exercício da 1ª Vice-Presidência da sua Corte, aposentado restou aos 14/06/2000.