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Fuga de local de acidente é crime?

14 de fevereiro de 2013

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Já se disse que o problema, no Brasil, não é a falta de leis, mas a não observância da legislação existente.

Apesar do cipoal legislativo, sempre há quem queira “mais uma”, principalmente em matéria penal, como se tipificar condutas fosse remédio mágico para evitá-las. Daí se atropelar, vez por outra, a Constituição e o bom-senso.

É o caso do Artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro, que, prevê: “Afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída: Penas: detenção de seis meses a um ano, ou multa”. É a chamada “Fuga à Responsabilidade”.

De início, salta aos olhos o exagero da reprimenda: quem danifica dolosamente o veículo de outrem, praticando não “crime de trânsito”, mas o de dano previsto no art. 163 do CP, punido com detenção de 1 a 6 meses na forma simples (caput), ou 6 meses a três anos na qualificada (Parágrafo Único), e se evade, não comete crime algum pela fuga, mesmo que a destruição do bem seja total. Mas, quem acidentalmente arranhar o veículo de outrem, fato atípico, e, abandonar o local, estará delinquindo…

Isto para não falar de crimes mais graves, como homicídio, roubo, etc.

Mas, vamos nos ater à hipótese do art. 305. O motorista não pode “se afastar” do local. Mas, por quanto tempo seria obrigado a permanecer? Até que a autoridade ou seu agente lá comparecesse? Mas onde a lei que diz que a Polícia tem de ir ao local onde há acidente sem vítimas?! Pelo contrário, em certos Estados, como no Rio de Janeiro, há expressa determinação no sentido de que policiais não sejam desviados de sua função de garantidores da segurança pública, para se ocuparem de assunto restrito à órbita do Direito Civil.

Há, ainda, naturalmente, a possibilidade de alguém colidir com veículo estacionado, sem ocupantes. Terá, neste caso, de permanecer no local até que o proprietário apareça? E se aquele estiver passando a noite em local ignorado?

Vê-se, portanto, que, no mínimo, a lei em exame não seria auto-aplicável, carecendo de regulamentação.

O principal, entretanto, é a questão da (in) constitucionalidade, pois a Carta Magna, em seu art. LXIII dispõe que “O preso será informado de seus direitos…”, e entre os direitos de qualquer pessoa suspeita de crime está o de não produzir prova contra si mesmo, consoante o art. 8º II, §, do Pacto de São José (Costa Rica), convenção internacional de que o Brasil é signatário e em pleno vigor aqui, por observadas as formalidades legislativas devidas.

Por isso, embora ainda não haja jurisprudência firmada pelo Eg. STJ, diversos tribunais já se posicionaram no sentido da inconstitucionalidade. Veja-se, por exemplo, a Arguição de Inconstitucionalidade nº 2009.026222-9/0001,00, julgada em 1.6.2011, pelo Eg. Tribunal de Justiça de Santa Catarina, assim ementada:

ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE – APELAÇÃO CRIMINAL – ART. 305 DO CTB – FUGA DO LOCAL DO ACIDENTE PARA ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL OU PENAL – INCONSTITUCIONALIDADE – VIOLAÇÃO AOS DIREITOS DE SILÊNCIO E DE NÃO PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO (CF/88, ART. 5º, LXIII) – AFRONTA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE – TRATAMENTO DIFERENCIADO SEM MOTIVAÇÃO IDÔNEA – PRECEDÊNCIA DA ARGUIÇÃO.
Não se pode conceber a premissa de que, pelo simples fato de estar na condução de um veículo, o motorista que se envolve em um acidente de transito tenha que aguardar a chegada da autoridade competente para averiguação de eventual responsabilidade civil ou penal porquanto reconhecer tal norma como aplicável seria impor ao condutor a obrigação de produzir prova contra si, hipótese vedada pela Constituição Federal por ofender o preceito da ampla defesa, (CF/88, art. 5º, LV), além de incorrer em malferição ao direito ao silêncio (CF, art. 5º, LXIII).
Ademais, estar-se-ia punindo o agente por uma conduta praticada por qualquer outro delinqüente, qual seja a evasão da cena do delito, sem que por tal conduta recebam sanção mais alta ou acarrete maior gravosidade em suas penas, estabelecendo-se forte contrariedade aos princípios da isonomia e da proporcionalidade.
Desse modo, afigura-se inviável vislumbrar outra responsabilidade penal a ser imputada ao motorista que se evade do local em que estivera envolvido em acidente de trânsito com vítima que não a omissão de socorro, situação com disposição específica no CTB (art. 304). Assim, se o condutor que se encontra nessas circunstâncias, que resultaram apenas em danos materiais, pode ter sua liberdade cerceada, está-se criando nova modalidade de prisão por responsabilidade civil, matéria que encontra limites constitucionais inestendíveis pelo legislador ordinário, o qual sofre limitação pelo art. 5º LXVII da CF/88, que impede a prisão civil por dívida, afora as hipóteses nele excetuadas”.

Ao contrário do que vem ocorrendo, o motorista deve ser visto, em princípio, como um cidadão de bem, e não como um delinquente em potencial. Além de ir contra a Constituição, criminalizar matéria evidentemente de Direito Civil, fazendo a Polícia e a Justiça perder tempo que deveria ser gasto na defesa da sociedade, é contraproducente.