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Homenagem aos 100 anos do professor Evaristo de Moraes Filho

11 de agosto de 2014

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Jose-RobertoCom a sabedoria de Bruxo do Cosme Velho, observou Machado de Assis sobre os irmãos Andradas: “foram a trindade simbólica da inteligência, do patriotismo, e da liberdade”. Para, em seguida, arrematar: “A natureza não produz muitos homens como aqueles”.1

Hoje, hic et nunc, celebramos nós a ventura de conviver com um espécime dessa linhagem nobre que a natureza é tão forreta em produzir: Evaristo de Moraes Filho.

Homem de Estado, jurisconsulto, sociólogo, filósofo, acadêmico, professor, doutrinador do Direito, polígrafo de complexos ramos do conhecimento, é sintomático que seja homenageado e reverenciado por esta Casa de Advogados sem se ter dedicado à militância no foro, sem haver exercido a advocacia na sua plenitude, embora consócio deste Instituto desde 1940.

Prevalecem o prazer e o dever do reconhecimento que nos impõem esta sessão distintiva de homem e obra consagrados à causa da Justiça em todas as suas perspectivas, máxime as sociais.

Já havíamos antecipado tal reconhecimento em 1984, quando o IAB outorgou-lhe a Medalha Teixeira de Freitas, honraria antes conferida a juristas de seu quilate como foram Clóvis Bevilacqua, Nélson Hungria e Pontes de Miranda − outra trindade de gigantes.

Desde cedo, nas luzes de um lar fulgurante, recebeu lições de autorrealização sob o império da Lei. A família tipicamente brasileira, expressão da miscigenação étnica que enobrece nossa formação social e faz a nossa grandeza, teve no patriarca Antônio Evaristo de Moraes, perdoem-me o anglicismo intraduzível, um self-made man a superar as dificuldades materiais dispondo tão somente das qualidades e virtudes pessoais.

Notável e nunca assaz louvada a trajetória deste advogado brilhante que modelou o homenageado de hoje. Sua vasta obra de alcance internacional no campo da Ciência do Direito, sua militância como fundador do Partido Socialista e da Associação Brasileira de Imprensa, sua advocacia intimorata na defesa dos marinheiros da Revolta da Chibata, entre eles o Almirante Negro João Cândido, seu pioneirismo na doutrina do Direito Trabalhista… Permitam-me, porém, sublinhar dois aspectos não suficientemente valorizados: ainda imberbe, abraçou as causas da Abolição e da República como matrizes de uma sociedade sem senhores nem súditos. E aos 23 anos publicou seu primeiro opúsculo com uma defesa vibrante do tribunal do júri.

Ousou contestar ninguém menos que o celebrado jurista Viveiros de Castro que fazia reparos ao mais democrático de todos os institutos da jurisdição penal, introduzido no Brasil pelo grande José Bonifácio de Andrada e Silva para que os cidadãos julgassem os crimes de imprensa.

Além, naturalmente, de nos legar dois rebentos que engrandeceram ainda mais sua biografia, o nosso homenageado e seu irmão Antônio Evaristo de Moraes Filho, um dos maiores criminalistas de nossa História, defensor tanto de humilhados e perseguidos como de presidentes da República.

Seria tarefa de Sísifo tentar sintetizar a vida e a obra continentais de Evaristo de Moraes Filho no istmo estreito dessa sessão. A propósito, ocorreu-me um episódio tão pitoresco quando carregado de sabedoria. Ei-lo: certa vez, determinado pesquisador foi indagado sobre quantos volumes seriam necessários para se escrever a história completa da música popular brasileira. Uns cinquenta”, respondeu. “Mas é possível resumi-la em uma palavra: Pixinguinha.”

Se o tema for o Direito do Trabalho brasileiro, a resposta poderia ser a mesma, com um resumo diferente: Evaristo.

De sólida formação e erudição de sábio, formou-se pela Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, em 1937, também cursou a Faculdade Nacional de Filosofia, licenciando-se em 1949, e concluiu o doutorado em Direito em 1953 e em Ciências Sociais em 1955.

Ao contrário do pai e do irmão, mais dedicados à advocacia militante, sua vocação eram a pesquisa, as políticas públicas e o magistério. Com apenas 20 anos iniciou, em 1934, uma carreira fecunda no recém-criado Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, tendo sido secretário das Comissões Mistas de Conciliação; procurador regional da Justiça do Trabalho da 5ª Região, em Salvador da Bahia; assistente técnico do gabinete do Ministro; procurador da Justiça do Trabalho, até aposentar-se voluntariamente em 1966.

Atuou com diretiva progressista na elaboração da lei de regulamentação do direito de greve em 1953, na Comissão do Código do Trabalho entre 1956 1958 e presidiu à Comissão Revisora do Anteprojeto do Código Processual do Trabalho, em 1963 e 1964, redigindo o texto final por volta de 1965.

A Constituição Cidadã, como a chamou Ulysses Guimarães, também recebeu a generosa e decisiva contribuição de Evaristo, tendo ele integrado a Comissão Afonso Arinos, uma reunião de doutos encarregados de preparar uma minuta para o Congresso Constituinte.

O Direito do Trabalho no Brasil, na vida concreta dos homens e na sabedoria da cátedra e dos livros, tem a marca de Evaristo de Moraes Filho sempre em defesa, como ele o afirmou em entrevista, dos “fracos e hipossuficientes”.2

A grandeza de nossa legislação trabalhista − relembre-se − foi e ainda é perseguida pela infâmia histórica de que se baseou no fascismo de Mussolini.

Somos pródigos nessas patranhas. Diz-se ainda mais que o Brasil é o único país a manter Justiça do Trabalho, quando ela também está presente na estrutura judiciária das nações mais desenvolvidas do mundo, como Suécia, Bélgica, Alemanha, Áustria, Dinamarca.

A falácia da legislação de origem supostamente fascista começou a ser construída com base no Decreto Sindical de 1931, que instituiu o sindicato único. O próprio Evaristo já se encarregou de desfazê-la, chamando atenção para a composição da equipe que elaborou o decreto:

[…] era formada de velhos lutadores sociais, antigos socialistas, lutadores socialistas, e, não raro, anarquistas, em prol das reivindicações dos trabalhadores nos tempos chamados heroicos, anteriores a 30. Nenhum deles era de formação corporativista, muito menos fascista.3

Ampliada para a Consolidação das Leis do Trabalho, esta promulgada pelo Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, a infâmia propalou que a CLT foi mera cópia da Carta Del Lavoro do fascismo italiano esposado pelo presidente Getúlio Vargas. Duas monumentais inverdades históricas. Nem foi cópia nem Getúlio era fascista.

O Estado Novo teve, é certo, um viés autoritário comandando por homens como Francisco Campos, que efetivamente copiou quase literalmente trechos da lei italiana, mas na Carta Constitucional de 1937. Mais tarde, suas fórmulas sinistras também foram recepcionadas e manejadas pelo regime de 1964, ajudando a editar atos institucionais que inspiraram a sagaz observação do cronista Rubem Braga: “Toda vez que acende a luz do senhor Francisco Campos há um curto-circuito na democracia”.

A sinistra mão do arbítrio advindo no período alcançaria Evaristo com a cassação da cátedra universitária em 1968 e prisão incomunicável em uma unidade militar do Rio de Janeiro.

Se na época era havido como inimigo pelo autocrático governo, a redemocratização do Brasil, pela qual tanto lutou, transformou o infame incidente em galardão biográfico.

Atropelamos a cronologia para voltar à importância do figurino dogmático do Direito do Trabalho que Evaristo ajudou a talhar e coser com a linha civilizatória de regulação das conflituosas relações entre o capital e o trabalho. Fruto de uma época de projeção do Estado Nacional, indutor e intervencionista, foi escrita com a tinta da justiça social emanada da Organização Internacional do Trabalho.

Em verdade, a CLT foi a Lei Áurea do trabalhador.

Como relacionar nossa legislação trabalhista com o fascismo se já ouvimos o Mestre Evaristo identificar na origem inspiradora das leis brasileiras não o corporativismo italiano, mas outra fonte de ruptura histórica que trouxe como lema a igualdade, a liberdade e a fraternidade?

Relembremo-nos de sua sábia advertência:

Em 1848, na Revolução Francesa, falou-se que na luta entre o fraco e o forte, a liberdade escraviza e a intervenção do Estado liberta. Se deixar a raposa e as galinhas soltas no galinheiro sem um poder soberano, não há dúvidas que as raposas vão vencer. E o Direito do Trabalho é isso.4

Cultores do Direito aprimoraram seus conhecimentos e conheceram a melhor hermenêutica em sua obra. A Introdução ao Direito do Trabalho é um Evangelho nas escrituras deste ramo do Direito, parte de uma bibliografia que o torna objeto de outros livros e teses acadêmicas em que é saudado como “intelectual humanista” e “arquiteto da Sociologia e do Direito do Trabalho no Brasil”.

Já os que não são do ofício podem-se encantar com as incursões literárias em outros campos, e tão reconhecidas que lhe deram assento na Academia Brasileira de Letras, merecendo homenagens como a do poeta, professor de Literatura e também acadêmico Antônio Carlos Secchin com estes versos de simplicidade primorosa:

Num estilo que é todo seu,
elimina o lero-lero,
seja falando de Alceu,
de Tobias ou Romero.
Não há matéria que o assuste,
é mais ágil que um foguete.
Passeia ao lado de Proust,
conhece tudo de Goethe.
Pessoa interpares prima,
mestre por todos benquisto,
merece o louvor da rima
o nosso amigo Evaristo.
Saber mais fino e preclaro,
como hoje não se vê mais,
só havereis de encontrá-lo em
Evaristo de Moraes.5

Seus ex-alunos, como o nosso Presidente Técio Lins e Silva aqui presente, um dos maiores entusiastas dessa homenagem, lembram, perpassados de nostálgica afetuosidade, que “suas aulas eram espetaculares e as mais concorridas”.

Estampa-se no semblante dos presentes a este auditório a sensação de privilégio por termos contado em nossa história e em nosso espaço vital com homens da cepa de Evaristo de Moraes Filho.

Se a natureza é parcimoniosa em forjá-los, como disse Machado, neste caso também foi generosa na preservação, pois estamos diante de um exemplo maior, de um inexcedível paradigma, que ultrapassa a centúria, exuberante em inteligência, cultura, patriotismo, incomensurável amor à liberdade e irrevogável compromisso com a justiça social.

Muito Obrigado.

Notas _______________________________________________________________________

1 Assis, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994, vol. III.
2 Apud Magistrados de pé. Entrevista de Evaristo de Moraes. Revista da ANPT, edição comemorativa do Jubileu de Prata, 2004, disponível em http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI203828,31047-Centenario+de+Evaristo+de+Moraes+Filho, acessado a 13/07/2014.
3 Apud Magda Barros Biavaschi, entrevista ao site Última Instância, disponível em http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/62569para+pesquisadora+%22modernizar%22+clt+e+%22canto+de+sereia+desastroso%22.shtml, acessado a 13/07/2014.
4 DIAS, Viviane. Entrevista Evaristo de Moraes Filho. Revista Anamatra, nº 53 2º semestre 2007, apud Centenário de Evaristo de Moraes Filho, disponível em http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI203828,31047-Centenario+de+Evaristo+de+Moraes+Filho, acessado em 14/07/2014.
5 Apud Boas, Gláucia Vilas; Morel, Regina; Pessanha, Elina. Evaristo de Moraes FilhoUm Intelectual Humanista. Rio de Janeiro: Topbooks , 2005, p. 15.

Nota do Editor _________________________________________________________________

A magnífica oração proferida pelo eminente advogado e jurista José Roberto Batochio, na comemoração do centenário da figura exponencial do professor Evaristo de Moraes Filho, realizada no último dia 17 de julho no Instituto dos Advogados Brasileiros, reproduz com esmero e objetividade a personalidade de um dos maiores e mais expressivos vultos da cultura e da inteligência brasileiras.

O homenageado descrito pelo acadêmico José Roberto Batochio, no entanto, é mais do que o que foi demonstrado pelo orador. Ele suplantou em vida todas as qualidades pessoais e humanísticas esperadas em um grande homem. Corajoso, defendeu causas e questões importantes, como a defesa dos marinheiros da Revolta da Chibata, inclusive na imprensa, contrariando viva e ardorosamente os órgãos da Marinha nas acusações feitas ao “almirante negro” João Cândido.

Foi ainda fundador, junto com Gustavo Lacerda e outros, da Associação Brasileira de Imprensa. Honrou e dignificou a advocacia, o magistério e todas as atividades que exerceu com o alto brilho da sua inteligência e elevada cultura.