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“A importância da ‘carreira’ na magistratura”

6 de fevereiro de 2015

Desembargador aposentado e Membro do Conselho Editorial

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Marcus FaverParece fora de dúvida de que um dos maiores, senão o maior, dos problemas do Judiciário é a escolha dos magistrados. A investidura e sua formação gradativa e permanente são fundamentais, pois serão eles os Juízes, na verdade, os responsáveis pelo cumprimento da prestação jurisdicional que se quer técnica, rápida, eficaz, transparente, ética, justa. É importante que um país tenha, na sua estrutura política- jurídica, boas leis, mas é imprescindível que tenha bons juízes, na composição de seu Judiciário.

Já se disse, com inteira propriedade, que “O direito valerá em um país e num determinado momento histórico, o que valham os Juízes como homens” “As sentenças valerão o que valham os homens que as profiram

“(Eduardo J. Conture).

Disse Bergeret :“ Não temo as leis más, se aplicadas por bons juízes”.

A investidura. Um dos maiores problemas, em todo o mundo contemporâne o, é descobrir a forma adequada e correta para a investidura de um juiz. Como afirmou o Min. Luiz Felipe Salomão “diversos países debatem sobre a maneira de melhor recrutar o corpo de magistrados encarregados da prestação estatal da jurisdição, de maneira a atender às exigências da sociedade moderna” (Estudos de Direito Constitucional – A Constituição Federal e a prestação / formação do juiz brasileiro – Ed. JC – 2014).

Descobrir a forma correta e adequada não é tarefa fácil. Uns adotam a forma eletiva, entre pessoas selecionadas; outros, concursos para ingressarem em escolas especializadas; ainda aqueloutros, por ingresso em escolas de magistratura para posterior realização do concurso etc. O Brasil, como a maioria dos países, adotou o ingresso na magistratura de carreira, por concurso público de provas e títulos, exigindo-se do candidato um mínimo de três anos de prévia atividade jurídica.

Há, todavia, em todas essas formas de escolha alguns pontos consensuais: 1) não basta, por exemplo, que o candidato domine pura e simplesmente a ciência jurídica, ou diversos ramos da ciência jurídica, exige-se hoje do candidato uma multidisciplinaridade; 2) a necessidade de que haja na carreira uma avaliação permanente e contínua do magistrado, a estimular a percepção e a sua evolução sobre os problemas jurídicos, sociais, familiares, econômicos, etc, aprofundando e complementando o seu conhecimento acerca da realidade social e elevando a sua estatura ética.

O Brasil, reconhecendo a importância e a relevância dessa questão, elevou a investidura e a formação do magistrado a nível constitucional, estabelecendo não só requisitos mínimos para o ingresso na magistratura como critérios e exigências permanentes no desenvolvimento da “carreira”.

Observe-se que a atual Constituição da República Federativa do Brasil, seguindo regras semelhantes das anteriores, e da Lei Orgânica da Magistratura, ainda vigente, estabeleceu que a magistratura brasileira seria organizada em carreira, obedecendo-se na sua composição os seguintes princípios básicos:

a)ingresso, por concurso público de provas e títulos, no cargo inicial de juiz substituto (art. 93, I);
b)promoção de entrância para entrância, alternadamente, por antiguidade e merecimento (art.93, II);
c)exigência de que a promoção por merecimento só possa ser feita após dois anos de exercício na respectiva entrância e integre o juiz a primeira quinta parte da lista de antiguidade (art. 93, II, letra B);
d) aferição do merecimento conforme o desempenho e por critérios objetivos de produtividade e presteza no exercício da jurisdição, e ainda pela frequência e aproveitamento em cursos oficiais (art. 93, II, letra C);
e)a proibição de ser promovido o juiz que, injustificadamente, retenha autos em seu poder além do prazo legal (art. 93, II, letra E);
f)o estabelecimento de cursos oficiais de preparação aperfeicionamento e promoção de magistrados sendo etapa obrigatória no processo de vitaliciamento (art. 93, IV)

A formação. A carreira.
Além das exigências e permanentes avaliações durante o importantíssimo processo de vitaliciamento, só alcançado após 2 anos (art. 95, I) verifica-se, sem qualquer esforço, que a Constituição de 1988 em seu texto original e, especificamente, através da Emenda Constitucional no 45, de 8 de dezembro de 2004, na chamada “reforma do judiciário”, além de dispor sobre a “ carreira da magistratura” estabeleceu que a ascensão funcional devia sempre se subordinar a critérios de antiguidade e merecimento, para conciliar experiência profissional com e devoção, dedicação, empenho vocação e espírito público essenciais à causa da Justiça.

Fez inserir na estrutura da carreira a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (art. 105, parágrafo único, I) obrigando a realização de cursos oficiais para o ingresso e para a promoção na carreira.

Exigiu também que, na aferição do merecimento, fosse analisada, especificamente, a “presteza no exercício da jurisdição” (art. 93, II, letra C), pois a morosidade na prestação jurisdicional é um outro enorme problema do Judiciário.

Por seu turno, o Conselho Nacional de Justiça, procurando aprimorar a avaliação e a aferição do merecimento para efeito de promoção do magistrado, editou diversas Resoluções (Resolução no 6/205; Resolução no 75/2009; Resolução no 159/2012).

É essa a estrutura constitucional da magistratura, brasileira.

Com o devido respeito, a ideia da extinção das entrâncias, suprimindo os degraus e as avaliações ínsitas nas promoções, para igualar, funcionalmente, todos os magistrados, simplesmente afrontaria todas as regras e princípios constitucionais acima expostos, sendo, portanto, insustentável. Seria verdadeira teratologia jurídica. Seria uma espécie de fraude ou “rasteira” constitucional, a impedir que toda a concepção elaborada ao longo dos anos para a “carreira”, com seus sucessivos degraus promocionais fossem desprezados. Os magistrados não seriam mais avaliados em sua vida funcional. Não existiria mais “carreira”. A promoção seria automática.

Ainda que se pudesse afastar o evidente vício de inconstitucionalidade, apenas por amor ao debate, verificaríamos que, a uma, iríamos cair no mesmo e lamentável equívoco da Emenda Constitucional no 19/98, que estabeleceu os vencimentos da magistratura em forma de subsídios. “Esqueceu-se” o legislador da existência constitucional de uma “carreira”, e que, tal forma de remuneração só seria cabível para cargo isolado e não para cargos organizados em carreira, pois, na prática, iguala um juiz iniciante a um outro magistrado que conte com três, cinco ou dez anos de exercício na carreira. A ideia de extinção das entrâncias, na verdade, equipara-se à Emenda no 19/98, pois acaba com a carreira. Seria, tal qual a Emenda 19/98, um enorme despropósito, a gerar insatisfações e permanentes reclamos funcionais em razão do grave erro praticado.

A duas, a extinção da “carreira” e, consequentemente, a extinção das promoções, acarretaria um dos maiores males para uma administração que se quer eficiente, séria, moderna, seja pública ou privada, qual seja, o desestímulo funcional. O magistrado não teria mais qualquer motiva­ção ou ambição legítima, na ascensão ou promoção em sua carreira. Igualaria todos, bons e maus, eficientes ou ineficientes, dedicados ou acomodados, o presto e o lerdo, o operoso e o irresponsável numa única entrância sem qualquer análise de merecimento. A meritocracia e o princípio da eficiência, previstos constitucionalmente, estariam extintos. Em termos de filosofia administrativa seria uma tragédia.

Por seu turno, em termos éticos, a proposta é uma lástima, pois coloca interesses corporativos acima dos interesses sociais. A tal respeito, anote-se que, a rigor, toda e qualquer modificação nas estruturas administrativas do Judiciário deve levar em consideração, em caráter prioritário, os interesses da prestação jurisdicional. Isso todavia, a nosso ver, não ocorre na sugestão. Não se vislumbra qualquer benefício social com a eventual proposta.

Por outro lado, não é de ser desprezada a longa e frutífera experiência ocorrente em, praticamente, todos os Estados da federação, no sentido de que o exercício da magistratura de carreira se inicie numa comarca pequena, passe para a média e depois para a maior até chegar à especial, em geral, a capital do estado.

Essa evolução natural, correspondente a diversas entrâncias na carreira, propicia um acúmulo de expe­riências e vivências profissionais administrativas, sociais, culturais, econômicas, comportamentais, etc. importantíssimas na formação do magistrado. A sedimentação profissional demanda tempo de experiências e maturação (por certo também alguns cabelos brancos) e a simples extinção dos degraus da carreira evidencia, com todas as vênias, assodadas ambições pessoais, de caráter nitidamente corporativista, sem qualquer reflexo na melhoria da prestação jurisdicional.

Com todo respeito, a eventual proposta parece-nos totalmente desaconselhável.

Por relevante à questão, observe-se que o Código de Ética da Magistratura, implantado pela Resolução no 60/2008 do CNJ em seu segundo considerando, traduz o compromisso institucional com a excelência na prestação do serviço público de distribuir Justiça e, assim, instituir mecanismos para fortalecer a legitimidade do Poder Judiciário.

Na verdade, “não existe poder que aja mais direta e habitualmente sobre os cidadãos do que o Poder Judiciário. Seus depositários devem ser pois, aqueles sobre cuja escolha a nação tem o interesse em velar”. (Ihouret )

Daí a pertinente observação do Des. José Renato Nalini, Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, sobre o referido considerando.

Extrai-se de tal enfoque um avanço na concepção de Poder Judiciário, a partir do quadro humano que o integra. Uma visão arcaica prevaleceu durante muito tempo a considerar essa função estatal como nicho reservado às primícias da erudição pátria e contribuiu para preservar conotação eminentemente personalista do poder. Todas as atenções do sistema interno eram voltadas à satisfação das aspirações do juiz, única pessoa considerada essencial à missão de concretizar o justo. Essa vertente relegava os demais atores – funcionalismo, principalmente – a uma posição ancilar. O único fautor da justiça era o juiz. Este não era cobrado a prestar contas, nem de se justificar perante a sociedade. Era suficiente a aprovação em concurso público e a fundamentação técnica de suas decisões.

Fruto da anacrônica formação jurídica, treinado a ser um perito na subsunção e habilitado a implementar a estratégia do silogismo, o juiz menos sensível tendia a se distanciar de sua responsabilidade social. Não raro atingiu-se o paroxismo de se considerar o Judiciário uma porção restrita de um habitat destinado a satisfazer os juízes. Sensação que poderia acometer alguns jurisdicionados, diante do hermetismo e da insensibilidade de alguns julgadores.

Avançou-se, portanto, na consideração de que a Justiça é um serviço público e o juiz é servidor. Verdade que um servidor qualificado, diferenciado, recrutado mediante um esquema rígido de seleção dos mais capazes. Mas subordinado a prestar um serviço estatal efetivo, oportuno e caracterizado pela excelência. Ou seja: oferecido no mais elevado grau de qualidade. O resultado da prestação jurisdicional deve ser o fruto de um compromisso institucional e provindo de apurado preparo intensificado por aprimoramento constante. Principalmente, o trabalho final do juiz deve ser subtraído a qualquer propensão de preponderância de um voluntarismo desvinculado de uma verdadeira vocação judicial.

Para finalizar, a construção de um Brasil demo­crático, como disse Nalini: “está condicionada à arquitetura de instituições autenticamente republicanas. Libertas do patrimonialismo rançoso que confunde o interesse público e o privado e, qual verdadeiro tumor, corrompe as entranhas da nacionalidade com a corrupção, o favoritismo, o nepotismo e outras máculas morais”.

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