A inafastabilidade da jurisdição ao revés INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO AO REVÉS: O CONTROLE DISCIPLINAR DO ATO JUDICIAL.

23 de janeiro de 2015

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Errores in procedendo in iudicando são, como se sabe, passíveis de controle mediante recurso, resolvendo-se no plano jurisdicional. A partir dessa possibilidade de correção, não se pode, todavia, engendrar uma concepção dogmatista a arredar um controle também sobre o sujeito que emitiu o comando, sob pena de se descambar para o decisionismo1 e, diante da ampliação do espectro argumentativo no Direito hoje, para o uso abusivo do poder. É sob essa perspectiva que o presente trabalho, centrado na atividade administrativo-disciplinar, com foco não sobre a matéria submetida à cognição, mas sobre o autor do pronunciamento, busca contribuir para a superação (overruling) da orientação de que a imunidade conferida ao juiz pelo art. 41 da LOMAN é absoluta, não comportando mecanismos que permitam que o bem posto à sua salvaguarda entre em concordância prática com outros bens de igual estatura político-jurídica, em uma cedência mútua que há muito é exigida pelo princípio da unidade da Constituição.

A inviolabilidade do juiz pelo conteúdo das decisões que proferir é, enquanto garantia para o exercício da jurisdição, uma prerrogativa, e não um privilégio. Tem-se, aí, um corolário do princípio democrático, uma garantia voltada para a preservação das liberdades fundamentais, pois, sem juízes independentes, não haveria instituições livres e, por extensão, cidadãos livres. Assim, a independência funcional é, antes de tudo, uma exigência política, a bem da sociedade, para que a jurisdição não sofra pressões externas e não seja utilizada como instrumento para o exercício arbitrário do poder. É por esse viés que a independência da magistratura deve ser enxergada. A preocupação central é com o jurisdicionado, que é quem suportará o ônus de se ter uma Justiça capturada, voltada a apenas dar roupagem de legitimidade a atos abusivos dos centros de poder. Pela mesma razão, por esse mesmo escopo de defesa, também deve haver artifícios para impedir que o abuso provenha do próprio juiz, afinal não se concebe poder sem responsabilidade em uma República. Com esse espírito, a Constituição, no seu art. 93, IX, opõe à independência funcional do juiz a cláusula da adequada motivação, o que, além obstruir, de um lado e de outro, o acesso à arbitrariedade, termina por redimensionar a esfera de independência da magistratura, encetando-lhe um contrapeso.

Esse redimensionamento é viabilizado pela própria natureza da norma que consagra a prerrogativa. A independência funcional do juiz é um princípio e, como tal, revela um mandamento de otimização, cuja satisfação pode dar-se, segundo a concepção de Robert Alexy2, amplamente aceita no Brasil, em graus variados, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas existentes. A possibilidade de relativização decorre, portanto, da própria estrutura dos princípios, normas que não determinam como deverá ser resolvido um conflito entre razões opostas, estabelecendo apenas mandados prima facie, de textura aberta, a fim de que a diretriz ali consagrada seja aplicada a um indeterminado número de casos. Em havendo colisão entre princípios, deve­se buscar a conciliação entre eles, de modo que cada qual seja aplicado em extensões variadas, segundo a respectiva relevância no caso concreto, e sem que se tenha um dos princípios como excluído do ordenamento jurídico por irremediável contradição com o outro. Assim, já que o âmbito das possibilidades jurídicas determina-se pelos princípios e regras colidentes, tem-se que, mediante um juízo de ponderação, a independência funcional pode vir a ceder espaço para que outras normas de sede constitucional também ganhem realidade, notadamente os princípios da segurança jurídica, da moralidade e da legalidade. E, como instrumento para a realização dessa concordância, destaca-se a regra – também constitucional – que exige que as decisões judiciais sejam devidamente fundamentadas.

É a partir dessa conformação entre independência funcional e adequada motivação que se propõe, aqui, um raciocínio dogmático mais aprofundado, com destaque para a temática do dolo na atuação judicial, a fim de empreender uma releitura do entendimento segundo o qual os atos praticados no exercício da jurisdição não se sujeitam a controle disciplinar. Para tanto, recorre-se à metodologia utilizada na teoria geral do crime, não só porque é com a persecução penal que a atividade censória mais se afeiçoa, dado o caráter sancionador de ambas, mas também porque a invocação do Direito Penal traz a reboque um bem arquitetado arcabouço de garantias em favor do investigado.

O delito é, em sua estrutura, um fato típico e ilícito – nisso concordam tanto os que decompõem o conceito de crime em três substratos quanto os que o dividem em apenas dois -, ficando a sua configuração condicionada, em um primeiro momento, à subsunção da conduta aos elementos previstos em abstrato pela norma (adequação típica) e, depois, a um juízo de ilicitude, em que se perquire se há contradição entre aquele fato típico e o ordenamento jurídico como um todo.

O tipo penal, qualquer que seja a sua fórmula, contém ao menos um núcleo e, em torno deste, uma elementar. O núcleo é descrito morfologicamente por um verbo (no furto, é “subtrair”; no homicídio, “matar”; no estupro, “constranger”) e não suscita maiores elucubrações. Já as elementares, destinadas a estabelecer uma perfeita descrição do tipo, podem ser de ordem subjetiva, objetiva ou normativa, a depender do enunciado incriminador. Invariavelmente, porém, tem-se sempre o dolo como elemento subjetivo do tipo, reputando-se dolosa a conduta consciente e voluntária dirigida a realizar (ou aceitar realizar) o núcleo da norma e as elementares que nesta estejam previstas. A título de exemplo, o tipo do homicídio, em construção singela, prevê apenas um núcleo (“matar”) e apenas um elemento objetivo (“alguém”), constituindo o dolo (elemento subjetivo) a vontade consciente de matar alguém. Se, hipoteticamente, o tipo fosse “matar alguém para fins de eugenia”, a adequação típica demandaria a concretização de um dolo genérico (“querer matar”, núcleo do tipo) e de um dolo específico (“querer praticar eugenia”, elemento subjetivo do tipo). Desse modo, apenas quando o enunciado normativo alojar um elemento subjetivo específico é que se fará necessário investigar se o agente, além do dolo de realizar o núcleo do tipo, teve também aquela finalidade em especial.

Aplicando-se essa decomposição analítica às normas que preveem faltas funcionais, tem-se, no inciso I do art. 35 da LOMAN, um tipo em cuja fórmula constam as locuções “deixar de cumprir” (núcleo) e “as disposições legais” (elemento objetivo do tipo). O dolo, aqui, reside tão somente em querer deixar de aplicar um comando legal. A adequação típica atém-se a tanto. Basta que o juiz, sabendo que existe uma norma válida a reger o caso posto à sua apreciação, deixe voluntariamente de aplicá-la, pouco importando se almeja com isso beneficiar a si ou a outrem, pois, no tipo, não há a descrição desse elemento subjetivo em específico. Se, por outro lado, o juiz deixa de aplicar a disposição legal porque não a conhecia ou porque dela não se recordou, a conduta terá sido culposa e não renderá punição disciplinar com base no referido art. 35, I, da LOMAN, porquanto só se procede a incriminação por culpa quando há previsão expressa nesse sentido (CP, art. 18, parágrafo único), podendo-se cogitar, quando muito, da hipótese de responsabilização por escassa ou insuficiente capacidade de trabalho (LOMAN, art. 56, III).

Note-se que a finalidade de obter vantagem é elementar não da infração disciplinar constante do art. 35, I, da LOMAN, mas, sim, do crime de prevaricação (CP, art. 319), em que uma das suas hipóteses de incidência (“praticar ato de ofício contra expressa disposição de lei a fim de satisfazer interesse pessoal”) traz um plus: “a fim de satisfazer interesse pessoal” (dolo específico)3.

Mas a infração disciplinar decorrente da infringência do disposto no art. 35, I, da LOMAN não se perfaz somente com isso. Ultrapassou-se apenas o primeiro dos substratos, atinente à tipicidade. Se o magistrado tiver apresentado fundamentação que dê conta de que a lei – ou melhor, a norma oriunda da lei – não foi aplicada porque ele entendeu que o caso deveria ser resolvido por outra norma, originária de um princípio ou até mesmo de uma outra lei, ter-se-á uma excludente de ilicitude, à semelhança do que ocorre com a legítima defesa, na medida em que o próprio sistema estaria lhe abrindo essa outra possibilidade de solução. O fato seria, portanto, típico, mas não ilícito, inexistindo infração.

E, ao se perquirir acerca da existência de causa de justificação, deve-se equiparar à ausência de fundamentação a fundamentação simbólica, quando se lança mão de um fundamento-álibi apenas para mascarar o descumprimento de uma norma cogente, quando, sem se desincumbir do ônus argumentativo próprio do ofício judicante, invoca-se um motivo moralmente impactante e, à sua sombra, faz-se letra morta das outras normas que concorriam para o caso. Por isso, é imprescindível que não se exija apenas fundamentação, mas fundamentação adequada.

Não se trata, ressalte-se, de censurar convicções ou transpor para o âmbito correicional matéria que deva ser resolvida pelas vias próprias de impugnação às decisões judiciais, mas, sim, de exigir que juiz cumpra o seu dever funcional de respeitar o ordenamento jurídico, quer seja aplicando a lei com exatidão – quando não haveria, então, tipicidade -, quer seja apresentando fundamentação idônea para deixar de aplicá-la, de modo a arredar a ilicitude.

Não se pretende, tampouco, dissuadir o juiz de buscar fundamentos em outros enunciados normativos que não a lei – princípios implícitos no sistema, construções jurisprudenciais, tratados internacionais ou até a própria Constituição -, pretensão essa que seria radicalmente anacrônica, na contramão destes tempos de pós-positivismo. O que se almeja com esse raciocínio é justamente o contrário: preservar essa liberdade de fundamentação, evitando que ela seja desvirtuada e todo o sistema caia em descrédito. Como não há liberdade sem restrição da liberdade, faz-se necessário, então, traçar parâmetros para que se possa cobrar responsabilidade no uso dessa ampla gama de recursos argumentativos, estabelecendo, também em cenário endoprocessual, o inderrogável contraponto entre liberdade e responsabilidade.

Em linguagem luhmanniana, o Direito, em seu fechamento operacional, deve estar munido de mecanismos que busquem harmonizar normas de sentidos opostos, a fim de que o sistema ganhe coesão e neutralize ruídos, passando a produzir a partir de suas próprias construções, de forma autorreferenciada. Assim, com a solução apresentada, enfrentam-se importantes fricções: art. 41 da LOMAN concorrendo com o 35, I, também da LOMAN; o livre convencimento, com a legalidade; a liberdade, com a segurança jurídica.

Por outro lado, não se pode refugar as vicissitudes sociais e alçar o Direito às nuvens, longe da realidade fática. Mediante abertura cognitiva, o sistema deve ser estimulado pelo ambiente, renovando-se e evoluindo. Sob essa perspectiva, não se pode ignorar a realidade de que a atuação mais relevante do juiz dá-se em contexto jurisdicional e é daí que podem provir as consequências mais impactantes para a sociedade. Por isso, é imprescindível que nessa seara tenha-se um arquétipo seguro de intervenção disciplinar, de sorte que não fique em um vácuo de controle o juiz que, ao seu talante, de forma irresponsável, descarta a lei, ocasionando prejuízos irreparáveis, na certeza de que tudo aquilo implicará, no máximo, a reforma ou a anulação do que se decidira. Com efeito, a mera previsibilidade de uma sanção, além de coibir condutas mal intencionadas, acarretará uma salutar diminuição do coeficiente de subjetividade na aplicação de preceitos cogentes, esquadrando a eloquência das paixões, impedindo que decisões judiciais sirvam como disfarce para manifestações ideológicas ou qualquer outro arroubo metajurídico que leve o Direito a pautar-se por elementos de outros subsistemas sociais.

Por tudo isso, conclui-se: a jurisdição é inafastável, não só do cidadão, que a ela poderá recorrer quando se vir diante de uma arbitrariedade, mas também dos mecanismos de controle, como o que aqui se sugeriu, concebidos para proteger esse mesmo cidadão de atos judiciais desvirtuados – e igualmente arbitrários -, para assegurá-lo de que as suas franquias democráticas não deixarão de ter na jurisdição um penhor.

Notas
Na doutrina, essa preocupação com o decisionismo faz-se presente em importantes estudos, podendo ser destacados, a propósito, os de Gilmar Mendes e Lenio Streck: MENDES, Gilmar Ferreira e STRECK, Lenio Luiz. Comentários à Constituição do Brasil, J. J. Gomes Canotilho e OUTROS (Org.), São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, pp. 3071-3073 (coment. ao art. 93), bem como STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 4ª ed., 2013, pp. 109-113.
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 90.
3Cezar Bitencourt percebeu o ponto, fazendo, inclusive, referência à possibilidade de o juiz figurar como sujeito ativo desse crime: “Nosso Código Penal, que não distingue prevaricação de juízes e demais funcionários, ao contrário do espanhol, fundamenta, como este, a criminalização da prevaricação no fim especial motivador da conduta: o espanhol — na obtenção de qualquer finalidade ilegítima ou, o que dá no mesmo, contrária ao Direito —, o brasileiro — na satisfação de interesse ou sentimento pessoal — o que, mutatis mutandis, significa basicamente a mesma coisa. A ausência dessa finalidade especial, tanto num quanto noutro diploma legal, desqualifica a prevaricação para pura infração administrativa”. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, v. 5, 2012, pp. 159-160)