Edição

Incorporação imobiliária

20 de dezembro de 2017

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1 – Preâmbulo
Recente encontro acolhido pelo Colendo ­Superior Tribunal de Justiça sobre a incorporação imobiliária demonstrou o quanto o tema sempre impacta quer no construtor, quer no adquirente de unidade.

Interessante notar que apesar do assunto encontrar resguardo em lei há mais de 50 anos (Lei 4.591/64), continua vivo e objeto de vários pronunciamentos judiciais aqui no STJ, como se verá mais adiante.

Pode-se dizer que há mais tempo a hipótese vem tendo tratamento legal, se for possível se retroagir à primeira normatividade brasileira a cuidar especificamente dos loteamentos, ou seja, o Decreto-lei no 58/37 que pôs cobro aos inúmeros desfazimentos de compromissos de compra e venda porque o Código Civil de 1916 permitia o arrependimento por parte do loteador, restando para o promisssário-comprador do lote o recurso à postulação das perdas e danos, que demorava muitos anos e com soluções pífias. Mas o tema ainda agita bastante o mercado porque, mesmo diante da crise financeira e política que lamentavelmente assola o nosso País, o certo é que a população não para de crescer e com ela se segue a necessidade constante de se prover moradia.

A solução que o mercado imobiliário encontrou para amenizar o problema habitacional, foi a construção de condomínios residenciais e comerciais.

Mas, a construção em massa, a par dos problemas de qualidade, traz também os tristes rompimentos contratuais por atraso no andamento das obras, o que vem congestionando o STJ com grande número de feitos deduzidos por promissários-adquirentes buscando a reparação material pela mora dos promitentes-vendedores, sem prejuízo do dano moral que também vem sendo pleiteado.

2 – O contrato de incorporação imobiliária
No dizer de ORLANDO GOMES, pelo contrato de incorporação imobiliária obriga-se alguém a promover a construção de edifício dividido em unidades autônomas para distintos adquirentes da respectiva fração ideal do terreno, sob regime de condomínio especial (RT 461/11, março de 1974).

Mais adiante, o mesmo autor, na mesma obra, pontifica sobre as partes do contrato de incorporação imobiliária, esclarecendo que de um lado se vê a figura do incorporador, e de outro, a pessoa que adquiriu ou promete adquirir uma ou mais unidades autônomas da edificação a ser construída ou em construção, que recebe o nome de subscritor ou de adquirente (opus cit., pág. 11).

Na busca de um conceito de incorporador, o art. 29 da Lei 4.591/64 o define como a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que se encarregue  pessoalmente ou não de construir o edifício, mas que, em qualquer hipótese, assume a responsabilidade de entregar aos adquirentes as unidades que lhes vendeu, no prazo estipulado.

Diz HAMID CHARAF BDINE JÚNIIOR que a incorporação imobiliária continuou sendo regida pela Lei 4.591/64, a despeito da entrada em vigor do Código Civil de 2002 e, firme na lição de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, pontifica que na incorporação, o incorporador obtém do proprietário do imóvel uma opção de venda, se o imóvel não for de sua propriedade. Em seguida, obtém um projeto de um arquiteto ou faz o cálculo do valor do negócio (construção de um prédio) e oferece as unidades à venda (“A Responsabilidade Civil do Incorporador Imobiliário”, in “Direito Imobiliário Brasileiro”, Quartier Latin, 2011, pág. 682, Coordenadores Alexandre Guerra e Marcelo Benachio).

Bem por isso, cabe aqui cravar a observação do já citado ORLANDO GOMES, para quem o incorporador não tem de acumular inevitavelmente a condição de construtor. A construção tanto pode ser promovida e realizada pelo incorporador, sob regime de empreitada ou administração, como pode ser contratada diretamente entre os adquirentes e a companhia construtora (opus cit., pág. 11).

Em arremate, não se pode esquecer de anotar que bem antes do advento da Lei de Condomínio, editada em 1964, já os incorporadores de edifícios (quando nem sequer tinhas eles definição legal), haviam descoberto a efetiva possibilidade de venderem apartamentos por construir, r não os já construídos. A esse tipo de apartamento por construir os juristas emprestaram do Direito a figura da chamada “coisa futura”, que integra a classe de contratos aleatórios ou contratos de risco, consoante a lição de NELSON KOJRANSKI (“Condomío Edilício”, Malheiros, 2a edição, pág. 26).      

3 – Natureza jurídica do contrato de incorporação imobiliária
Como se verifica do acima destacado, o contrato em questão é de natureza complexa, na medida em que cria para todos os seus participantes recíprocos direitos e devedores. Donde, perante o incorporador, o adquirente assume várias obrigações e torna-se ipso facto, titular de outros tantos direitos, exigíveis aquelas e exercitáveis à medida em que o empreendimento se desenvolve, consoante pondera J. NASCIMENTO FRANCO(“Incorporações Imobiliárias”, RT, 3a edição, pág. 113).

E isso é possível dizer porque, pela lei em destaque, avultam as obrigações de dar e fazer de ambas as partes, já que são visíveis três modalidades de construção do edifício: a) a construção por conta e risco do incorporador, hipótese em que ele promete vendar as unidades autônomas a prazo certo, ou reajustáveis na forma prevista do contrato; b) construção por empreitada; e, c) construção por administração (opus cit., pág. 110).

De outro lado, o direito dos adquirentes é o de receber a obra no prazo ajustado e o de ser indenizado pela não conclusão do edifício ou retardamento da obra (art. 43), na lição do autor aqui mencionado (opus cit., pág. 115).

4 – Jurisprudência do STJ no retardamento da entrega da obra
Pelo que ficou assentado, afigura-se bastante importante trazer à tona um pouco da jurisprudência do STJ a respeito do atraso na entrega da obra e os pedidos de danos morais que aqui estão sendo enfrentados.

É de se destacar, desde logo, que o tema está se pacificando no sentido do descabimento da fixação do dano moral in re ipsa porque só em hipóteses extraordinárias, em que se possa admitir que o atraso ofendeu o direito da personalidade do direito ao sossego, não se pode falar no dano extrapatrimonial.

Dos acórdãos a seguir salientados, até mesmo com voto vencedor em um deles, fica bastante acentuada a questão do descabimento do dano moral.

Vale a pena trazer à colação o REsp 1.640.085-RJ, de relatoria da Ministra NANCY ANDRIGHI que põe em relevo o descabimento do dano moral pela simples demora na entrega da obra. Veja-se:

PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E COMPENSAÇÃO DE DANOS MORAIS. ATRASO NA ENTREGA DE IMÓVEL. CURTO PERÍODO. MERO INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. DANO MORAL AFASTADO.

1. Ação ajuizada em 09/08/2010. Recurso especial concluso ao gabinete em 26/08/2016. Julgamento: CPC/73.

2. Cinge-se a controvérsia em determinar se o atraso da recorrente na entrega de unidade imobiliária, objeto de contrato de compra e venda firmado entre as partes, gera danos morais ao recorrido.

3. Muito embora o entendimento de que o simples descumprimento contratual não provoca danos morais indenizáveis, tem-se que, na hipótese de atraso na entrega de unidade imobiliária, o STJ tem entendido que as circunstâncias do caso concreto podem configurar lesão extrapatrimonial.

4. Na hipótese dos autos, contudo, em razão de não ter sido invocado nenhum fato extraordinário que tenha ofendido o âmago da personalidade do recorrido não há que se falar em abalo moral indenizável.

5. Recurso especial conhecido e provido.

(REsp 1.640.085/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Terceira Turma, j. 28/3/2017, DJe 4/4/2017)

No caso em questão, tive oportunidade de pedir vista para melhor examinar a hipótese e acabei aderindo àquela conclusão, com o seguinte voto-vista:

[…]

O dano moral decorre de uma lesão aos direitos da personalidade, violando sua intimidade, vida privada, honra, imagem, dentre outros bens jurídicos imateriais tutelados constitucionalmente.

A jurisprudência do STJ evoluiu para entender que o inadimplemento do contrato, por si só, pode acarretar indenização por perdas e danos, mas, em regra, não dá margem ao dano moral, que pressupõe ofensa anormal aos direitos da personalidade.

Assim, o inadimplemento motivado pelo descumprimento de obrigação contratual não enseja tal dano, salvo a existência de circunstâncias particulares que o configurem.

Desse modo, além da violação do interesse econômico dos envolvidos na relação jurídica, faz-se necessário demonstrar no caso concreto outros interesses de cunho extrapatrimonial que foram violados pelo descumprimento contratual.

A doutrina de CRISTIANO CHAVES DE FARIAS, FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO e NELSON ROSENVALD mais uma vez nos ajuda a esclarecer a questão, com um exemplo idêntico ao aqui analisado:

Pense-se em um atraso de um ano na conclusão de uma obra e o consequente descumprimento da obrigação da construtora de entrega da unidade residencial ao adquirente: a posição jurídica do comprador A, que é apenas um investidor e deseja revender o imóvel auferindo lucros, é substancialmente distinta da do comprador B, que faria a mudança para uma nova cidade com a sua família e teve frustrados vários planejamentos em termos de educação e cultura aos filhos. No primeiro exemplo, o investidor se sentirá prejudicado e mesmo incomodado, mas toda a sua frustração e mágoa derivam do impacto negativo do atraso da obra sobre os seus negócios. Daí a limitação do ressarcimento ao dano patrimonial, como bem resume o Enunciado no 159 do Conselho de Justiça Federal: “O dano moral, assim compreendido todo extrapatrimonial, não se caracteriza quando há mero aborrecimento inerente a prejuízo material”.

Em contrapartida, o segundo exemplo bem denota que o dano moral obrigacional dispensa uma demonstração de uma violação a direitos da personalidade, sendo suficiente que se evidencie uma ofensa a interesses extrapatrimoniais dignos de merecimento à luz do ordenamento jurídico. Essa é a única maneira coerente de se atribuir unidade conceitual ao dano moral, compreendendo o ilícito negocial e o extranegocial, compartilhando os mesmos valores e padrões quantitativos para a delimitação da compensação dos danos. Uma coisa é admitir que frequentemente o descumprimento de uma obrigação não gera dano moral. Isso, todavia, não nos autoriza a restringir a compensação do dano moral quando ele se verifica, a ponto de dificultar ou mitigar a sua reparabilidade.

Nessa senda, prestamos adesão ao Enunciado no 411 do Conselho de Justiça Federal , vazado nos seguintes termos: “O descumprimento de contrato pode gerar dano moral quando envolver valor fundamental protegido pela Constituição Federal de 1988” (op.cit., p. 316/317 – sem destaques no original).

Na hipótese dos autos não há nenhuma alegação do adquirente do imóvel no sentido de indicar fato extraordinário apto a configurar ofensa à sua personalidade e dignidade, limitando-se a argumentar que permaneceu pagando aluguel e viu adiado o seu sonho da casa própria.

Desse modo, a partir das circunstâncias de fato delineadas no acórdão recorrido, conclui-se que o inadimplemento contratual teve consequências apenas patrimoniais que serão ressarcidas com o pagamento de multa contratual no valor de R$ 3.609,09 (três mil, seiscentos e nove reais e nove centavos) por mês e fração por dia de atraso, entre março de 2010 a 13 de outubro de 2011.

Nessas condições, acompanho o voto proferido pela eminente Relatora para DAR PROVIMENTO ao recurso especial, afastando a condenação por danos morais.

Em um caso de minha relatoria conclui que ficou configurado o dano moral diante do atraso na entrega do imóvel a um casal de compradores que tiveram que adiar o casamento por três vezes. Veja-se a ementa:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. IMÓVEL. ATRASO NA ENTREGA. LUCROS CESSANTES. DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO. DESNECESSIDADE. SÚMULA N. 83 DO STJ. PRECEDENTES. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. QUANTUM INDENIZATÓRIO. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO. REVISÃO. PRETENSÃO RECURSAL QUE ENVOLVE O REEXAME DE PROVAS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA No 7 DO STJ. RECURSO MANIFESTAMENTE INADMISSÍVEL. INCIDÊNCIA DA MULTA DO ART. 1.021, § 4o, DO NCPC. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.

1. Aplica-se o NCPC a este julgamento ante os termos do Enunciado Administrativo no 3 aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016: Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC.

2. A teor da jurisprudência firmada nesta Corte, o descumprimento do prazo para entrega do imóvel objeto de compromisso de compra e venda viabiliza a condenação por lucros cessantes, havendo presunção de prejuízo do promitente comprador. Precedentes.

3. Verificadas as peculiaridades do caso concreto, a alteração das conclusões do acórdão recorrido exige reapreciação do acervo fático-probatório da demanda, o que faz incidir o óbice da Súmula no 7 do STJ.

4. Em razão da improcedência do presente recurso, e da anterior advertência em relação à incidência do NCPC, incide ao caso a multa

prevista no art. 1.021, § 4o, do NCPC, no percentual de 3% sobre o valor atualizado da causa, ficando a interposição de qualquer outro recurso condicionada ao depósito da respectiva quantia, nos termos do § 5o daquele artigo de lei.

5. Agravo interno não provido, com imposição ­de multa.

(AgInt no AREsp no 1.017.163/SP, Rel. Min. MOURA RIBEIRO, j. 4/5/2017)

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça possui outros julgados recentes no mesmo sentido:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. OBRA. ENTREGA. ATRASO. DANOS MORAIS. SÚMULA No 83/STJ.

1. O Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento de que o mero descumprimento contratual, caso em que a promitente vendedora deixa de entregar o imóvel no prazo contratual injustificadamente, não acarreta, por si só, danos morais.

2. Agravo interno não provido.

(AgInt no AREsp 973.811/RS, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Terceira Turma, j. 8/8/2017, DJe 15/8/2017)

PROCESSO CIVIL. AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAL E MATERIAL. ATRASO NA ENTREGA DE IMÓVEL. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. INEXISTÊNCIA DE CIRCUNSTÂNCIA EXCEPCIONAL QUE JUSTIFIQUE A INDENIZAÇÃO. RECENTE ENTENDIMENTO DESTA CORTE. RECURSO MANIFESTAMENTE INADMISSÍVEL. INCIDÊNCIA DA MULTA DO ART. 1.021, § 4º, DO NCPC. AGRAVO NÃO PROVIDO.

1. O presente agravo interno foi interposto contra decisão publicada na vigência do NCPC, razão pela qual devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma nele prevista, nos termos do Enunciado nº 3 aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016: Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC.

2. A moderna jurisprudência desta Corte é de que o dano moral, na hipótese de atraso na entrega de unidade imobiliária, não se presume, configurando-se apenas quando houver circunstâncias excepcionais que, devidamente comprovadas, importem em significativa e anormal violação de direito da personalidade dos promitentes compradores, o que não ocorre no caso vertente.

3. Na espécie, a fundamentação do dano moral está justificada somente da frustração da expectativa da parte autora, que se privou do uso do imóvel pelo tempo em que perdurou o atraso na entrega da obra, sem tecer nota adicional ao mero atraso que pudesse, além dos danos materiais, causar grave sofrimento ou angústia a ponto de configurar verdadeiro dano moral.

4. Em virtude do não provimento do presente recurso, e da anterior advertência em relação a incidência do NCPC, incide ao caso a multa prevista no art. 1.021, § 4º, do NCPC, no percentual de 3% sobre o valor atualizado da causa, ficando a interposição de qualquer outro recurso condicionada ao depósito da respectiva quantia, nos termos do § 5º daquele artigo de lei.

5. Agravo interno não provido, com imposição de multa.

(AgInt nos EDcl no AREsp 899.455/RJ, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, Terceira Turma, j. 26/9/2017, DJe 13/10/2017)

5 – Conclusão
Como se viu pela jurisprudência trazida à colação, no que tange às incorporações imobiliárias e em especial a questão dos atrasos na entrega das obras, as decisões oriundas do Tribunal da Cidadania são no sentido de que não é possível a concessão de dano moral pelo simples pedido, já que, no caso, ele não pode ser admitido tacitamente.

Só mesmo em casos extraordinários se vê a possibilidade da condenação ao pagamento do dano extrapatrimonial.

De resto, não se nega a composição do dano material, na modalidade de lucro cessante, pelo atraso na ­entrega da obra, prestigiando o Enunciado 411 do Conselho da Justiça Federal para os aspectos excepcionais que poderão ocorrer: “O descumprimento de contrato pode gerar dano moral quando envolver valor fundamental protegido pela Constituição Federal de 1988”.

Em suma, o STJ tem cumprido a sua missão constitucional, dando segurança jurídica aos jurisdicionados quanto ao descabimento do dano moral em casos de atraso na entrega de unidades habitacionais, salvo fatos extraordinários que ataquem o âmago dos direitos da personalidade.