Interpretação da Lei de Anistia

1 de agosto de 2013

Compartilhe:

Luiz Augusto de Salles VieiraFinalizo a biografia de meu saudoso pai, dr. Benedicto Vieira, onde conto um pouco da história da ditadura militar em Taubaté, com a interpretação da Lei da Anistia, a qual entrou em vigor no final do Governo do General João Batista Figueiredo, o último Governo do regime militar.

Por ser a parte mais polêmica, vou me restringir a interpretar apenas o artigo 1o da Lei no 6.683, de 28 de agosto de 1979, e seus parágrafos.

Dispõe a citada norma:

Art. 1o É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).
§ 1o – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
§ 2o – Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal.

A Lei da Anistia excetua dos benefícios da anistia, no § 2o do art. 1o, os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal, ainda que preencham os requisitos constantes do § 1o caput da lei.

A lei é clara ao negar os benefícios da lei aos que foram condenados por crimes de “terrorismo”, “assalto”, “sequestro” e “atentado pessoal”.

I – A primeira questão que se coloca é a seguinte: estaria o crime de “tortura” (comumente praticado por militares e policiais civis) alcançado pelos benefícios constantes do caput e no § 1o da Lei da Anistia, ou estaria dentro da exceção constante do § 2o?

Levando-se em consideração o momento político em que a lei entrou em vigor e as regras de hermenêutica, penso que o crime de tortura não foi perdoado. Creio que
o legislador, embora não tivesse usado a expressão “tortura”,
a considerou, ao fazer constar a expressão “atentado contra a pessoa”. Nem todo “atentado contra a pessoa” é um “ato de tortura”, mas toda “tortura” é um “atentado contra a pessoa”. É muito mais lógico considerá-la como um “atentado contra a pessoa”, do que considerá-la como um crime conexo com crimes políticos.

O legislador, ao elaborar a lei, ao invés de usar a expressão “tortura”, preferiu outra, mais abrangente, a qual denominou de “atentado pessoal”. Pelo meu entendimento, portanto, o crime de tortura ou “atentado contra a pessoa”, está dentro da exceção constante do § 2o da Lei 6.638, de 28 de agosto de 1979, e seus parágrafos.

A mens legislatoris, ou seja, a vontade do legislador, no momento da elaboração da norma, não deixa dúvida, a meu ver, de que todos aqueles que praticaram “atos de terrorismo”, “assalto”, “sequestro” e “atentado pessoal”, ainda que por motivação política, ou conexa com esta, não foram alcançados pela anistia, e por esta razão os crimes que praticaram não foram anistiados.

Se alguma dúvida existir, entretanto, devemos pensar na mens legis, ou seja, na vontade da lei, no momento da sua aplicação. Quando a lei é elaborada prevalece o espírito do legislador. Ao ser aplicada, impõe-se o espírito da lei.

O jurisfilósofo Miguel Reale, já falecido, autor do novo Código Civil Brasileiro, em sua teoria tridimensional do direito, via na elaboração da lei, três dimensões: o fato, o valor e a norma. A valoração da norma deve levar em consideração, segundo aquela teoria, a época em que a lei é elaborada e a época em que é interpretada e aplicada. Se os fatos se modificam, a interpretação deve se modificar também, acompanhando a evolução dos tempos. O positivismo jurídico cede terreno, na visão do mestre, à Sociologia Jurídica.

Tenham os atos de “tortura” sido praticados por civis ou militares, estes não podem se beneficiar, sob qualquer aspecto (civil ou criminal), da anistia.

Aqueles que, nos porões da ditadura ou fora dele, por ato próprio ou por ordem superior, praticaram “atentados contra a pessoa”, ou seja, “tortura”, devem responder pelos seus crimes.

Acaso os “atentados contra a pessoa”, ou seja, “atos de tortura”, tenham sido praticados por “civis”, na defesa das suas motivações ou interesses políticos, contra civis ou militares, devem responder, igualmente, pelos mesmos crimes. Igual raciocínio há que se fazer em relação ao “terrorismo”, “assalto” e “sequestro”.

Em que pese entendimentos em sentido contrário, o exposto se afina com o que veio a se convencionar como “tortura”, por meio da Lei no 9.455/97, de 7.4.97.

Citada norma, sancionada no governo Fernando Henrique Cardoso, tipificou o crime de tortura no art. 1o, inciso I, letras “a”, “b” e “c”, II, §§ 1o a 7o, usque 4o, o qual, pela sua importância, transcrevo na integra:

Art. 1o: Constitui crime de tortura:

I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena – reclusão, de dois a oito anos.

§ 1o – Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.

§ 2o – Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.

§ 3o – Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.

§ 4o Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:

I – se o crime é cometido por agente público;

II – se o crime é cometido contra a criança, gestante, deficiente e adolescente;

III – se o crime é cometido mediante seqüestro.

§ 5o – A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.

§ 6o – O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.

§ 7o O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2o, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.

Art. 2o: O disposto nesta Lei aplica-se ainda quando crime não tenha sido cometido em território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira.

Art. 3o: Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 4o: Revoga-se o art. 233 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente.

Referida lei não retroage para prejudicar, mas tem inteira aplicação para definir o que vem a ser o crime de tortura, revelando que está contido no tipo penal “atentado contra pessoa”.

II – A segunda questão que se coloca é a seguinte: ainda que não esteja sob o manto da Lei da Anistia, estariam os crimes de “terrorismo”, “assalto”, “sequestro” e “atentado pessoal”, praticados com motivação política, protegidos pelo instituto da prescrição?

O termo inicial da prescrição, não pode ser óbice à punição, por serem aqueles crimes, considerados como hediondos ou praticados contra a humanidade, regulamentados por convenções, pactos e tratados internacionais, dos quais o Brasil já era signatário, segundo a Constituição Federal em vigor, ao tempo da entrada em vigor da Lei da Anistia.

A pessoa humana, civil ou militar, tem o mesmo valor. São irrelevantes as ideologias e a posição social que ocupam. Todos são iguais perante a Lei. Qualquer crime hediondo contra a pessoa humana tem que ser punido exemplarmente, para que o ato não se repita.

A motivação política não justifica a prática de “atentado contra a pessoa” ou “tortura”. Seja para proteger a “sociedade” de um suposto “governo comunista” ou para que a “ditadura” seja derrotada e se retorne à democracia. Quando da entrada em vigor da Lei da Anistia, a Constituição Federal já protegia a pessoa humana, no capítulo que tratava dos direitos e garantias individuais. Ainda que a lei houvesse excluído da punição os crimes conexos aos políticos praticados contra a pessoa humana, seria aquela inconstitucional neste aspecto.

Em inúmeros artigos, a Constituição Federal de 24 de janeiro de 1967, vigente ao tempo da entrada em vigor da Lei da Anistia (28.08.79), admitia a celebração de tratados, convenções e atos internacionais, pela Presidência da República “ad-referendum” do Congresso Nacional.

Sobre a questão, veja-se:

Art. 47:  É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I – resolver definitivamente sobre os tratados celebrados pelo Presidente da República.

Art. 83: Compete privativamente ao Presidente:

VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, ad referendum do Congresso Nacional.

Paralelamente a inúmeros artigos fundados em convenções, tratados e pactos, que sustentam a imprescritibilidade do crime de “tortura”, cita-se, abaixo, decisão proferida pelo Colendo Superior de Justiça, onde figurou como Rel. o Min. Luiz Fux.

Jurisprudência em Revista – Início Expediente –Equipe Contato – RESPONSABILIDADE – ESTADO – NOMEAÇÃO TARDIA – AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – INDISPONIBI­LIDADE – BENS – INDENIZAÇÃO – PRESO – REGIME MILITAR – TORTURA – IMPRESCRI­TIBI­LIDADE. Trata-se de ação ordinária proposta com objetivo de reconhecimento dos efeitos previdenciários e trabalhistas, acrescidos de danos materiais e morais, em face do Estado, pela prática de atos ilegítimos decorrentes de perseguições políticas perpetradas por ocasião do golpe militar de 1964, que culminaram na prisão do autor, bem como em sua tortura, cujas consequências alega irreparáveis. Há prova inequívoca da perseguição política à vítima e de imposição, por via oblíqua, de sobrevivência clandestina, atentando contra a dignidade da pessoa humana, acrescida do fato de ter sido atingida sua capacidade laboral quando na prisão fora torturado, impedindo atualmente seu auto-sustento. A indenização pretendida tem amparo constitucional no art. 8o, § 3o, do ADCT. Deveras, a tortura e morte são os mais expressivos atentados à dignidade da pessoa humana, valor erigido como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. À luz das cláusulas pétreas constitucionais, é juridicamente sustentável assentar que a proteção da dignidade da pessoa humana perdura enquanto subsiste a República Federativa, posto seu fundamento. Consectariamente, não há falar em prescrição da ação que visa implementar um dos pilares da República, máxime porque a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito de agir, correspondente ao direito inalienável à dignidade. Outrossim, a Lei n. 9.140/1995, que criou as ações correspondentes às violações à dignidade humana perpetradas em período de supressão das liberdades públicas, previu a ação condenatória no art. 14, sem lhe estipular prazo prescricional, por isso que a lex specialis convive com a lex generalis, sendo incabível qualquer aplicação analógica do Código Civil no afã de superar a reparação de atentados aos direitos fundamentais da pessoa humana, como sói ser a dignidade retratada no respeito à integridade física do ser humano. Adjuntem-se à lei interna as inúmeras convenções internacionais firmadas pelo Brasil, a começar pela Declaração Universal da ONU, e demais convenções específicas sobre a tortura, tais como a convenção contra a tortura adotada pela Assembléia Geral da ONU, a Convenção Interamericana contra a Tortura, concluída em Cartagena, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). A dignidade humana violentada, in casu, decorreu do fato de ter sido o autor torturado, revelando flagrante atentado ao mais elementar dos direitos humanos, os quais, segundo os tratadistas, são inatos, universais, absolutos, inalienáveis e imprescritíveis. Inequívoco que foi produzida importante prova indiciária representada pelos comprovantes de tratamento e pelas declarações médicas que instruem os autos. Diante disso, a Turma, ao prosseguir o julgamento e por maioria, deu provimento ao recurso para afastar, in casu, a aplicação da norma inserta no art. 1o do Decreto n. 20.910/1932, determinando o retorno dos autos à instância de origem para que dê prosseguimento ao feito. Precedentes citados do STF: HC 70.389-SP, DJ 10/8/2001; do STJ: REsp 449.000-PE, DJ 30/6/2003. REsp 845.228-RJ, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 23/10/2007 (ver Informativo n. 316). Fonte: Informativo STJ no 337 – Jurisprudência em Revista Ano I – no 018.

Faz-se referência, de forma especial, ainda que tenham entrado em vigor em data posterior à Lei da Anistia, a “Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes”, por meio do Decreto no 40, de 15 de fevereiro de 1991, e o “Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos”, através do Decreto no 592, de 6.7.1992.

Um último aspecto a ser considerado, é a de que o “crime de tortura”, ou “atentado contra a pessoa”, em particular, é cometido, via de regra, por autoridade, ou emanado de autoridade, de forma a dificultar a identificação do seu autor e a se promover a ação penal.

Dentro de uma lógica jurídica, o “termo inicial” da prescrição será a data em que houver fundamento ou argumento para se promover a ação penal, tal qual vem entendendo a comunidade europeia.

III – A terceira questão que se coloca reside no seguinte fato: somente excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de “terrorismo”, “assalto”, “sequestro” e “atentado pessoal”, até a entrada em vigor daquela, ou se excetuariam também os que vierem a ser condenados oportunamente?

Não se nega que o legislador, ao excetuar do benefício, usou a expressão “condenados pela prática de crimes de “terrorismo”, “assalto”, “sequestro” e “atentado pessoal”. Passa a impressão, portanto, que estão anistiados os que foram absolvidos, até a entrada em vigor da lei. Os condenados, até a entrada em vigor da lei, não se beneficiam dela. E aqueles que praticaram crimes “hediondos”, como o de “tortura”, por exemplo, mas não foram absolvidos ou condenados? Como não tinham sido absolvidos ou condenados, ficam os atos no esquecimento, ainda que não alcançados pela prescrição? Óbvio que não. Nada é insignificante para o Direito Penal. Para se saber se alguém foi condenado ou absolvido, somente resta uma alternativa. Investigar e processar todos os que praticaram “atentados contra a pessoa”, “atos de terrorismo”, “assalto” e “sequestro”.

Se forem absolvidos, ainda que por ausência de provas, farão jus aos benefícios da Lei da Anistia, que não se limita ao perdão. Se forem condenados, estarão fora dos benefícios da citada lei e deverão cumprir as penas que lhes forem impostas. A lei entra em vigor para regular fatos futuros. Por isso é redigida com a expressão: “os que foram condenados”.

Seria um exagero redacional o legislador usar a expressão “os que vierem a ser condenados”.

Ainda que os juízes criminais possam vir a ter entendimento diverso, no caso concreto, pensa-se que já não mais se admite a omissão dos órgãos competentes (Polícia Civil e Ministério Público) para proceder a apuração e a denúncia dos crimes de tortura e dos crimes hediondos praticados com motivação política ao tempo da didatura.