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Intervenção federal e o princípio da proporcionalidade: o caso dos precatórios

5 de julho de 2003

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É amplamente conhecida a tramitação, perante o Supremo Tribunal Federal, de pedidos de intervenção federal em diversos Estados da Federação, tendo em vista a ausência de pagamento de precatórios judiciais. Tal problemática, em verdade, insere-se em contexto mais amplo, bastando lembrar a tentativa de solução por meio da Emenda Constitucional no  30, de 2000.

A presente análise volta-se, especificamente, aos pleitos formulados nas Intervenções Federais nos 2915 e 2953, movidas em desfavor do Estado de São Paulo, em razão do não-pagamento de precatórios de natureza alimentícia.

Em nosso sistema federativo, o regime de intervenção representa excepcional e temporária relativização do princípio básico da autonomia dos Estados. A regra, entre nós, é a não-intervenção, tal como se extrai com facilidade do disposto no caput do art. 34 da Constituição, quando diz que “a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: (…)”.

Com maior rigor, pode-se afirmar que o princípio da não-intervenção representa sub-princípio concretizador do princípio da autonomia, e este, por sua vez, constitui sub-princípio concretizador do princípio federativo. O princípio federativo, cabe lembrar, constitui não apenas princípio estruturante da organização política e territorial do Estado brasileiro, mas também cláusula pétrea da Carta de 1988.

No processo de intervenção federal nos Estados e no Distrito Federal, verifica-se, de imediato, um conflito entre a posição da União, no sentido de garantir a eficácia daqueles princípios constantes do art. 34 da Constituição, e a posição dos Estados e do Distrito Federal, no sentido de assegurar sua prerrogativa básica de autonomia. A primeira baliza para o eventual processo de intervenção destinado a superar tal conflito encontra-se expressamente estampada na Constituição, quando esta consigna a excepcionalidade da medida interventiva.

Diante desse conflito de princípios constitucionais, considero adequada a análise da legitimidade da intervenção a partir de sua conformidade ao princípio constitucional da proporcionalidade.

O princípio da proporcionalidade, também denominado princípio do devido processo legal em sentido substantivo, ou ainda, princípio da proibição do excesso, constitui uma exigência positiva e material relacionada ao conteúdo de atos restritivos de direitos fundamentais, de modo a estabelecer um “limite do limite” ou uma “proibição de excesso” na restrição de tais direitos. A máxima da proporcionalidade, na expressão de Alexy, coincide igualmente com o chamado núcleo essencial dos direitos fundamentais concebido de modo relativo – tal como o defende o próprio Alexy. Nesse sentido, o princípio ou máxima da proporcionalidade determina o limite último da possibilidade de restrição legítima de determinado direito fundamental.

A par dessa vinculação aos direitos fundamentais, o princípio da proporcionalidade alcança as denominadas colisões de bens, valores ou princípios constitucionais. Nesse contexto, as exigências do princípio da proporcionalidade representam um método geral para a solução de conflitos entre princípios, isto é, um conflito entre normas que, ao contrário do conflito entre regras, é resolvido não pela revogação ou redução teleológica de uma das normas conflitantes nem pela explicitação de distinto campo de aplicação entre as normas, mas antes e tão-somente pela ponderação do peso relativo de cada uma das normas em tese aplicáveis e aptas a fundamentar decisões em sentidos opostos. Nessa última hipótese, aplica-se o princípio da proporcionalidade para estabelecer ponderações entre distintos bens constitucionais.

Em síntese, a aplicação do princípio da proporcionalidade se dá quando verificada restrição a determinado direito fundamental ou um conflito entre distintos princípios constitucionais de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram o mencionado princípio da proporcionalidade. São três as máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Tal como já sustentei em estudo sobre a proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, há de perquirir-se, na aplicação do princípio da proporcionalidade, se em face do conflito entre dois bens constitucionais contrapostos, o ato impugnado afigura-se adequado (isto é, apto para produzir o resultado desejado), necessário (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional em sentido estrito (ou seja, se estabelece uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto).

Registre-se, por oportuno, que o princípio da proporcionalidade aplica-se a todas as espécies de atos dos poderes públicos, de modo que vincula o legislador, a administração e o judiciário, tal como lembra Canotilho.

Cumpre assinalar, ademais, que a aplicação do princípio da proporcionalidade em casos como o presente, em que há a pretensão de atuação da União no âmbito da autonomia de unidades federativas, é admitida no direito alemão. Nesse sentido, registram Bruno Schmidt-Bleibtreu e Franz Klein, em comentário ao art. 37 da Lei Fundamental, que “os meios da execução federal (“Bundeszwang”) são estabelecidos pela Constituição, pelas leis federais e pelo princípio da proporcionalidade”.

O exame da proporcionalidade, no caso em apreço, exige algumas considerações sobre o contexto factual e normativo em que se insere a presente discussão.

Desse modo, não podem ser desconsideradas as limitações econômicas que condicionam a atuação do Estado quanto ao cumprimento das ordens judiciais que fundamentam o presente pedido de intervenção. Nesse sentido, o Estado de São Paulo apresentou os seguintes dados, verbis:

… considerando-se as estimativas de arrecadação para o exercício corrente, as despesas com o pessoal dos três Poderes do Estado deverão se situar em torno de 58% das receitas correntes líquidas estaduais; os gastos com custeio, que permite o funcionamento do aparato administrativo, incluindo-se certas parcelas que compõem o percentual mínimo a ser aplicado no desenvolvimento do ensino (art. 212 da CF) e nas ações e serviços públicos de saúde (art. 198,  2o, da CF), deverão atingir o montante de 19% das receitas correntes líquidas, ao passo que o serviço da dívida junto à União consumirá aproximadamente, 12% daquelas receitas; há finalmente, os gastos com investimentos mínimos indispensáveis para a simples manutenção do funcionamento de serviços essenciais (rodovias estaduais operadas diretamente pelo Poder Público, aparato de segurança pública, redes de ensino e de saúde, etc.), estimados em 9% das receitas correntes líquidas.”

E continua o Estado de São Paulo: “Excluídos os gastos apontados no item anterior, o que resta de recursos são utilizados no pagamento de precatórios judiciais, despesa essa estimada, para o ano de 2002 em cerca de 2% das receitas correntes líquidas, vale dizer, algo em torno de R$ 750.000.000 (setecentos e cinqüenta milhões de reais).”

Como tenho afirmado, esse exame de dados concretos, ao invés de apenas argumentos jurídicos, não é novidade no Direito comparado. No âmbito dos reflexos econômicos da atividade jurisdicional, a experiência internacional tem, assim, demonstrado que a proteção dos direitos fundamentais e a busca da redução das desigualdades sociais necessariamente não se realizam sem a reflexão acurada acerca de seu impacto.

Um caso paradigmático neste sentido é aquele em que a Corte Constitucional alemã, na famosa decisão sobre “numerus clausus” de vagas nas Universidades (“numerus-clausus Entscheidung”), reconheceu que pretensões destinadas a criar os pressupostos fáticos necessários para o exercício de determinado direito estão submetidas à “reserva do financeiramente possível” (“Vorbehalt des finanziellen Möglichen”). Nesse caso, segundo o Tribunal alemão, não pode existir qualquer obrigação constitucional que faça incluir o dever de, no sistema educacional, fornecer vagas a qualquer tempo e a qualquer um que as pleiteie, exigindo altos investimentos destinados a suprir demandas individuais sem qualquer consideração sobre o interesse coletivo. (BVerfGE 33, 303 (333)).

Com efeito, não se pode exigir o pagamento da totalidade dos precatórios relativos a créditos alimentares sem que, em contrapartida, se estabeleça uma análise sobre se tal pagamento encontra respaldo nos limites financeiros de um Estado zeloso com suas obrigações constitucionais. Tanto é verdade que, ainda que ocorra uma intervenção no Estado de São Paulo, o eventual interventor terá que respeitar as mesmas normas constitucionais e limites acima assinalados pelo referido Estado, contando, por conseguinte, com apenas 2% das receitas líquidas para pagamento dos precatórios judiciais. Ao interventor também será aplicável a reserva do financeiramente possível.

Já afirmei, em outras oportunidades, a real necessidade de que os órgãos judicantes, ao julgarem questões intrincadas, analisem com a maior amplitude possível informações e dados concretos para obterem uma interpretação precisa5[5].

Com esse objetivo, vale destacar que, conforme informações apresentadas pela Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, este Estado vem atuando de maneira bastante positiva no tocante ao pagamento dos precatórios judiciais.

Primeiramente, referido ente federado, atendendo ao disposto no art. 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, acrescido pela Emenda Constitucional no 30, de 13 de setembro de 2000, satisfez a totalidade do primeiro décimo dos precatórios não alimentares no ano de 2001.

Ademais, por meio do Decreto Estadual no 46.933, de 19 de julho de 2002, que regulamentou a Lei Federal no 10.482, de 3 de julho de 2002, destinou-se, no próprio mês de julho, mais de R$ 100.000.000 (cem milhões de reais) para pagamento de precatórios alimentares, perfazendo, neste ano (até o presente momento), o total de R$ 170.221.716,98 (cento e setenta milhões, duzentos e vinte e um mil, setecentos e dezesseis reais e noventa e oito centavos) com pagamento de precatórios alimentares.

Também, consoante dados fornecidos por aquela Procuradoria, serão repassados à Fazenda Estadual, nos meses de agosto e setembro, cerca de R$ 202.000.000 (duzentos e dois milhões de reais), o que resultará até o final do ano no pagamento de mais de R$ 400.000.000 (quatrocentos milhões de reais), ou seja, mais de 10% da dívida total estimada.

Portanto, não resta configurada uma atuação dolosa e deliberada do Estado de São Paulo com a finalidade de não pagamento dos precatórios alimentares.

No caso em exame, a par de um quadro de impossibilidade financeira quanto ao pagamento integral e imediato dos precatórios relativos a créditos de natureza alimentícia, verifica-se a conduta inequívoca da unidade federativa no sentido de honrar tais dívidas.

É evidente a obrigação constitucional quanto aos precatórios relativos a créditos alimentícios, assim como o regime de exceção de tais créditos, conforme a disciplina do art. 78 do ADCT. Mas também é inegável, tal como demonstrado, que o Estado encontra-se sujeito a um quadro de múltiplas obrigações de idêntica hierarquia.

Nesse quadro de conflito, assegurar, de modo irrestrito e imediato, a eficácia da norma contida no art. 78 do ADCT, pode representar negativa de eficácia a outras normas constitucionais. Exemplo bastante ilustrativo é a obrigação dos Estados no que se refere à educação e à saúde. Nos termos do art. 212 da Constituição, os Estados estão obrigados a aplicar vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. A Constituição também prevê, no art. 198, § 2o, a aplicação de recursos mínimos pelos Estados na área de saúde. O descumprimento de tais obrigações, por óbvio, representaria negativa de eficácia a normas constitucionais, bem como implicaria a configuração de específica hipótese de intervenção federal. De fato, o art. 34, VI, alínea “e”, prevê expressamente, como hipótese de intervenção, a garantia da observância da “aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde”.

Diante de tais circunstâncias, cumpre indagar se a medida extrema da intervenção atende, no caso, às três máximas parciais da proporcionalidade.

É duvidosa, de imediato, a adequação da medida de intervenção. O eventual interventor, evidentemente, estará sujeito àquelas mesmas limitações factuais e normativas a que está sujeita a Administração Pública do Estado. Poderá o interventor, em nome do cumprimento do art. 78 do ADCT, ignorar as demais obrigações constitucionais do Estado? Evidente que não. Por outro lado, é inegável que as disponibilidades financeiras do regime de intervenção não serão muito diferentes das condições atuais.

Assim, resta evidente que a intervenção, no caso, sequer consegue ultrapassar o exame de adequação, o que bastaria para demonstrar sua ausência de proporcionalidade.

Também é duvidoso que o regime de intervenção seja necessário, sob o pressuposto de ausência de outro meio menos gravoso e igualmente eficaz. Manter a condução da Administração estadual sob o comando de um Governador democraticamente eleito, com a ressalva de que esteja o mesmo atuando com boa-fé e com o inequívoco propósito de superar o quadro de inadimplência, é inegavelmente medida menos gravosa que a ruptura na condução administrativa do Estado. Pode-se presumir, ademais, que preservar a chefia do Estado será igualmente eficaz à eventual administração por um interventor, ou, ao menos, não se poderia afirmar, com segurança, que a administração de um interventor, sujeito às inúmeras condicionantes já apontadas, será mais eficaz que a atuação do Governador do Estado.

A intervenção não atende, por fim, ao requisito da proporcionalidade em sentido estrito. Nesse plano, é necessário aferir a existência de proporção entre o objetivo perseguido, qual seja o adimplemento de obrigações de natureza alimentícia em razão de decisões judiciais, e o ônus imposto ao atingido que, no caso, não é apenas o Estado, mas também a própria sociedade. Não se contesta, por certo, a especial relevância conferida pelo constituinte aos créditos de natureza alimentícia. Todavia, é inegável que há inúmeros outros bens jurídicos de base constitucional que estariam sacrificados na hipótese de uma intervenção pautada por um objetivo de aplicação literal e irrestrita das normas que determinam o pagamento imediato daqueles créditos.

Por fim, consideradas as peculiaridades do caso em exame, diante dos princípios constitucionais que supostamente encontram-se em conflito, afigura-se recomendável a adoção daquilo que a doutrina define como uma “relação de precedência condicionada” entre os princípios concorrentes. Nesse sentido, ensina Inocêncio Mártires Coelho:

Por isso é que, diante das antinomias de princípios, quando em tese mais de uma pauta lhe parecer aplicável à mesma situação de fato, ao invés de se sentir obrigado a escolher este ou aquele princípio, com exclusão de outros que, prima facie, repute igualmente utilizáveis como norma de decisão, o intérprete fará uma ponderação entre os standards concorrentes – obviamente se todos forem princípios válidos, pois só assim podem entrar em rota de colisão – optando, afinal, por aquele que, nas circunstâncias, lhe pareça mais adequado em termos de otimização de justiça.

Em outras palavras de Alexy, resolve-se esse conflito estabelecendo, entre os princípios concorrentes, uma relação de precedência condicionada, na qual se diz, sempre diante das peculiaridades do caso, em que condições um princípio prevalece sobre o outro, sendo certo que, noutras circunstâncias, a questão da precedência poderá resolver-se de maneira inversa.”

Estão claros, no caso, os princípios constitucionais em situação de confronto. De um lado, em favor da intervenção, a proteção constitucional às decisões judiciais, e de modo indireto, a posição subjetiva de particulares calcada no direito de precedência dos créditos de natureza alimentícia. De outro lado, a posição do Estado, no sentido de ver preservada sua prerrogativa constitucional mais elementar, qual seja a sua autonomia, e, de modo indireto, o interesse, não limitado ao ente federativo, de não se ver prejudicada a continuidade da prestação de serviços públicos essenciais, como educação e saúde.

Assim, a par da evidente ausência de proporcionalidade da intervenção para o caso em exame, o que bastaria para afastar aquela medida extrema, o caráter excepcional da intervenção, somado às circunstâncias já expostas  recomendam a precedência condicionada do princípio da autonomia dos Estados.

Por fim, cabe aqui lembrar da pioneira decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o tema ora em discussão, em acórdão da relatoria do eminente Ministro Nelson Hungria (IF no 20, DJ de 15.07.1954).

Tratava-se de pedido de intervenção no Estado de Minas Gerais, que havia alegado não poder efetivar a decisão judicial que embasou o apelo, não por deliberado propósito de  descumprir o requisitório, mas em razão de ocasional falta de numerário.

O STF, por unanimidade, reconheceu que: “Para justificar a intervenção, não basta a demora de pagamento, na execução de ordem ou decisão judiciária, por falta de numerário: é necessário o intencional ou arbitrário embaraço ou impedimento oposto a essa execução.

Acrescentou o Ministro Nelson Hungria em seu voto: “Ora, no caso vertente, o retardamento não promana de obstáculo criado pelo Governador mineiro, mas da acidental exaustão atual do erário do Estado.

O precedente firmado pelo STF bem se aplica ao caso sob análise. Com efeito, consoante as informações apresentadas pelo Estado de São Paulo, este ente federativo tem sido diligente na tentativa de plena satisfação dos precatórios judiciais. Encontra, contudo, obstáculos nas receitas constitucionalmente vinculadas e na reserva do financeiramente possível. A ele também se aplica a máxima invocada pelo Ministro Nelson Hungria: “Onde não há, até rei perde.

Ressalte-se, porém, que não se está a atribuir uma imunidade aos Estados, relativamente ao cumprimento ou não dos precatórios judiciais, sob pena de absoluta inaplicabilidade do art. 78 do ADCT – o que certamente vai de encontro à força normativa da Constituição -, com a conseqüente perda de credibilidade das decisões proferidas pelo Poder Judiciário perante a sociedade brasileira.

O que se pretende é ultrapassar uma leitura simplista do texto constitucional, sobretudo, quando se tem em mente que a regra é da autonomia do ente federado.

Conclui-se, desse modo, que enquanto o Estado se mantiver diligente na busca de soluções para o cumprimento integral dos precatórios judiciais, não estarão presentes os pressupostos para a intervenção federal ora solicitada. Em sentido inverso, o Estado que assim não proceda estará sim, ilegitimamente, descumprindo decisão judicial, atitude esta que não encontra amparo na Constituição Federal.