Intervenção Regulatória e Federação – Parte 1

25 de julho de 2011

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(Artigo originalmente publicado na edição 107, 06/2009)
 
A intervenção do Estado na economia, como um todo único e interconexo, tal como chegam a aclarar os estudiosos, é, atualmente, definida com certo grau de precisão e tomada como ponto de partida para a fisiologia da moldura estatal contemporânea. O tema ocupa o lugar central das categorias da Economia Política e pode-se, sem dúvida, afirmar que é o centro de gravidade da explicação da riqueza no Estado moderno. Reduzida ao mais consequente dos espíritos e resultante de uma magnitude sensível, a perspectiva intervencionista não tolera arbitrariedades nas formas de produção e serve como marco entre a miséria e a riqueza de um povo.
 
Está preparado o terreno para uma nova concepção de mundo. É uma necessidade amadurecida, como testemunha da riqueza de uma nação, mas não sem amargar um prolongado e difícil desenvolvimento, que percorre toda história humana. Ao seu próprio tempo, o peso da atividade econômica no destino de um país permitiu sistematizar todo o conjunto de conhecimentos acumulados pela humanidade, durante anos, e dar perfeita conta da necessidade de abandonar os pensamentos e opiniões, os apetites e a paixões mutáveis dos indivíduos e de examinar as causas que têm fundamentos visíveis na natureza econômica. De conformidade com cada espírito de época, brotaram correntes, variadas e muitas vezes opostas, no pensamento econômico e na Economia Política. Para se determinar o conteúdo da atividade estatal, fez-se necessário ter presente que, de acordo com o desenvolvimento da civilização e concomitantemente com a mudança das necessidades sociais, que exigem uma satisfação disseminada e adequada, coube ao Estado determinados fins, que variam no espaço e no tempo.
 
O pensamento da liberdade não se limitou a impulsionar a economia. Em verdade, ele realizou uma revolução em todas as esferas do conhecimento. O estudo de pensadores sobre os países e o bem-estar dos povos serviu-lhes de método de análise integral das relações sociais, e sobre essa base retiraram as devidas conclusões políticas. Importa assinalar se, realmente, dessas teorias se demonstraria certa ordem no completo caos, no espaço e no tempo, antes das medidas estatais. Foi no estudo profundo da Economia e da Política que se ofereceu novo e abundante material para o movimento intervencionista.
 
Por outro lado, não bastava apenas conhecer as leis gerais, esmiuçadas em análises teóricas, para compreender-se porque um regime econômico devia ser substituído por outro. De todas as relações travadas em um país, as relações econômicas ocupam o primeiro lugar. Seja porque as relações da sociedade em geral e as relações econômicas são inseparáveis e indissociáveis, seja porque, sem estudá-las, não é possível encontrar a resposta para a questão de como chegar ao optimum da ação intervencionista estatal, em prol do bem comum.
 
O desejo de tornar o mundo melhor exigiu a substituição de uma economia antiquada e desordenada, por uma nova ordem econômica que, por amor à verdade, resultasse no impulso científico de toda a organização. A forma arcaica e imperfeita foi oposta ao sentido de que se reconhece mais consistente e preciso para regularizar os fenômenos determinantes da economia, de modo a descortinar toda a desordem encoberta por aparências de certeza, que chegava mesmo a firmar verdadeiros paradoxos, incompatíveis com a mais idealizada economia.
 
A possibilidade de se estabelecer o princípio da participação coercitiva do Estado na circulação mercantil, na produção industrial, no fluxo do transporte, na condução das comunicações, na ideia de quantidade e qualidade da produção nacional fica distante do acaso e passa a estar sujeita aos influxos da ação estatal. A liberdade da empresa e a economia de mercado estariam, de forma consciente, orientadas para a correção de distorções que atentassem contra a soberania nacional, a função social da propriedade e a defesa do consumo, mediante imposições administrativas (art. 170 da Constituição da República). A ideia de um instrumento de intervenção que desnudasse qualquer visão ingênua da ordem da produção e penetrasse nos inacessíveis espaços internos da estrutura econômica e dos agentes econômicos é que conduziu à perspectiva regulatória da economia.
 
Os atributos da regulação e seu mecanismo de interferência junto aos agentes econômicos fazem com que ela se separe das demais formas de intervenção do Estado na economia e preserve seu caráter essencial e universal. Houve, nas intervenções estatais na economia, a redução das formas existentes a espécies próprias, que conservam seus traços e peculiaridades, essenciais para compreensão de cada uma. No quadro de existência das formas de intervenção do Estado na economia encontramos, ao lado da (i) intervenção regulatória, (ii) a intervenção concorrencial, (iii) a que traduz um monopólio do próprio Estado — as intervenções monopolistas, como é o caso da indústria nuclear no Brasil — e (iv) aquele grupo de intervenções destinado a punir abusos econômicos, praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular (art. 173, § 5º, da Constituição da República) ou na aplicação do imposto sobre propriedade urbana não-edificada ou subutilizada (art. 182, § 4º, da Constituição), que consubstancia a intervenção sancionatória.
 
Somente em meados do Século XX, amadureceram as premissas para o surgimento de uma concepção básica e unificada de regulação. A liberdade econômica provocou o aparecimento de economias fortes, o que levou ao surgimento daquilo que se cunhou de grandes potências, como a Inglaterra, a França, a Alemanha e, em especial, os Estados Unidos da América.
 
Todas as tentativas de criar uma teoria universal acabada estavam de antemão condenadas ao fracasso. Com o passar dos anos, as teorias extinguiram-se com o término das épocas que lhes deram vida, passando à história juntamente com os agentes econômicos, cujos interesses expressavam. Só as ideias que refletiam mais profundamente a realidade de cada povo, de cada país, é que permaneceram na memória do pensamento social da humanidade. E são essas que foram assimiladas pelas novas teorias, que expressam os imperativos da prática.
 
Os dados obtidos pela experiência dos povos confirmam e autorizam a assertiva, apoiada nos fatos mais visíveis das mais diversificadas nações, que a regulação é inerente à economia de cada país, de modo que ela não constitui uma forma de infirmá-la ou limitá-la. A regulação não é estranha a nenhuma economia livre e concretamente identificada. A palavra “intervenção” para a locução “intervenção regulatória” deve ser entendida como forma de realizar a própria economia. Em nenhum momento, a intervenção regulatória pode residir na ideia de que seria estranha ou um obstáculo ao normal funcionamento da economia, como seriam, por exemplo, o planejamento econômico ou mesmo o retorno a uma ideia de Estado-patrimonial, no qual tudo que tivesse expressão econômica seria titularizado pela própria entidade estatal, como a atividade agrícola, a pecuária, a indústria e tudo mais.
 
A dinâmica dos fenômenos regulatórios e o seu reflexo nos conceitos e categorias da ciência econômica exigem uma certa distinção, que a prática evidencia: o Estado moderno, que, tão cioso de tutelar os direitos fundamentais, não permite retirar conclusões ou mesmo recomendações que se adiantem à realidade econômica e ao sistema de liberdade de empreender e competir. A fase que se reputaria mais clássica do Estado volta-se ao antagonismo entre a democracia e as formas de limitação da liberdade humana. Coube ao Estado estruturar-se para avançar em direção aos mais comezinhos influxos democráticos e na formação dos ideais que cada instituição democrática pudesse gerar. Dessa forma, desdobrou-se o Estado, por meio de sua ordenação, para a realização do homem e de seus ideais. O desenrolar dessa nova modalidade de condução do Estado amputou dele a capacidade de extrair do contexto vivo e da vasta escala de fenômenos de raiz econômica a aptidão para lidar com o movimento econômico e suas exigências.
 
Se alguém se propuser a interpretar e estudar os mais díspares objetos econômicos, com discernimento, ficaria esmagado perante a infinita diversidade de fatos isolados e casuais que em nada ou muito pouco auxiliam a compreensão do panorama geral. A importância de descobrir, dentre todo o conjunto de relações gerais, aquelas que são essenciais e necessárias, só se faz possível por meio da análise técnica de instituições reguladoras. Quando se estuda a fundo qualquer esfera de conhecimento do mundo que nos rodeia, constata-se no seu desenvolvimento uma certa ordenação, uma sequência, uma sistematização, uma regularidade. Esse fenômeno também se apresenta no estudo do Estado moderno, que necessita de específicas instituições para que se conheça qualquer esfera da realidade, em estreita ligação objetiva com a economia. Um Estado, como um todo único, que determine e regule a tendência do desenvolvimento da economia, estaria fadado ao insucesso. Ao se decomporem, os estados formam as instituições, com autoridade e independência, que melhor conduzirão as profundas e complexas interligações que existam entre a economia e a administração pública: as entidades reguladoras independentes.
 
Nenhuma teoria poderia dar respostas a todas as questões e prever antecipadamente a multiplicidade de incidência da vida. Nenhuma ideia se transforma em força material, sem ser compreendida e assimilada.  Nenhuma teoria pode surgir e tornar-se realidade sem refletir o surgimento e o desenvolvimento de objetos e fenômenos. Nenhuma soma simples das partes chegará a um objeto acabado, sem as rodas e espirais de seu funcionamento. Não advirão as condições para o desenvolvimento sem a iniciativa de pessoas, sem a sua atividade, sem a sua capacidade de compreender e escolher a mais favorável a realizar.
 
O Estado brasileiro formou-se com abundância de tensos e complexos acontecimentos, em volume tal que põe em situação difícil qualquer historiador que intente escrever um ensaio histórico relativamente breve. A experiência deste trabalho é a exata medida dessa dificuldade. No desejo de relatar os acontecimentos, mas sem a necessária ordem cronológica de exposição, abandonamos, neste texto, a exatidão dos casos, para explanar a evolução do fenômeno que se pretende destacar.
 
Os melhores representantes das muitas gerações de nosso país consagraram a vida na luta pelo ideal democrático. Mas a só aparição da democracia como consenso da vontade do povo não foi suficiente.  Desde o princípio, amadurecemos a ideia de que toda premissa objetiva de democracia só merecia triunfar se ela se traduzisse em descentralização. A descentralização democrática no Brasil significa descentralização política. No vasto território da nossa República, é a Federação, historicamente, a mais basilar forma de democratização por descentralização, a descentralização política.
 
Toda essa questão nos leva a afirmar que a estrutura federativa é norteada pela democracia. E tal dedução prescinde de uma teoria sutil. Outra forma de assinalar esse papel desempenhado pela democracia na federação é a de que essa combinação também não existe como uma peculiaridade de nosso país. Todo governo enfrenta um dilema entre, de um lado, a necessidade de concentrar atividades e recursos na realização de objetivos considerados importantes para nação e, de outro, a necessidade de atender a interesses mais específicos, de caráter regional ou local. A compatibilidade, sempre relativa, entre essas duas funções depende, basicamente, do grau do desenvolvimento do país e do amadurecimento político do seu povo.
 
A experiência federativa não é tão difundida como se sabe. A coesão do povo, integrado por leis comuns a todo território nacional e por leis peculiares a certas áreas geográficas, de forma a encontrar um edifício de muitos andares, cada um com direção própria, pressupõe a presença de particularidades socioculturais e sociopolíticas que refletem o grau de consciência social e política de um povo, um povo de vida democrática. E se o número de nações determinadas pela precisa demarcação de função, forma, método e trabalho que a federação assinala é bem menor do que se poderia imaginar, em termos abstratos, é porque a vida democrática é pouco diversificada. Ao mesmo tempo, a própria formação política e a estrutura real do poder dependem da distribuição da população e dos recursos econômicos, que transformam, com frequência, as estruturas federais em estados unitários. A concentração de poderes no executivo moderno, na prática, acaba por fortalecer o caráter unitário do país. Esse é, certamente, o caso das federações existentes nas Américas abaixo do Rio Grande. Verifica-se, contudo, que a permanência do equilíbrio federal não depende apenas de equilíbrios econômicos regionais, mas também de características ligadas à formação política de cada nação.
 
Se o esquema de Estado federativo constituiu algo sem paralelo em nosso país, é porque as forças descentralizadoras, diferenciadas e fragmentadas de poder, existentes desde a colonização do Brasil, projetavam-se no novo país e fizeram prevalecer seus espíritos mais enraizados na história e na geografia. No imenso território do Brasil, os poderes autônomos locais se firmaram na vida política brasileira, se não pelo seu processo histórico, talvez pela sua geografia invulgar, já que, no tempo da sua independência, era o maior Estado do Ocidente. Se há uma hierarquia de conceitos e de ideias a conduzir pesquisas empíricas e teorias particulares, é de se considerar que toda ciência se assenta sempre em determinados valores fundamentais, que constituem a pedra angular de cada ramo concreto do saber.
 
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