Investigação e impunidade

5 de janeiro de 2004

Subprocurador-Geral da República, Corregedor-geral do Ministério Público Federal e ex-presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República

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O juiz João Carlos da Rocha Matos não recebeu, há alguns anos, uma denúncia do Ministério Público Federal contra Edir Macedo e a diretoria da TV Record, ao argumento de que não havia inquérito policial, apesar de o pedido estar baseado em uma investigação da Receita Federal, cujo procedimento administrativo tinha mais de 1.000 folhas, onde se apurara o crime de descaminho e falsidade ideológica.

E o Tribunal Regional Federal da 2ª Região arquivou uma ação penal, ao argumento de que o Ministério Público Federal não poderia fazer as investigações, apesar de se tratar de crime de tortura ocorrido nas dependências da Polícia Federal, cujo inquérito, aberto pela referida Polícia, nada encontrara. No primeiro caso, considerou-se imprescindível o inquérito policial, como condição de procedibilidade da denúncia; e, no segundo, considerou-se que só a Polícia poderia fazer as investigações.

Ambos garantiram até hoje a impunidade aos culpados. Esses e outros casos, talvez aos milhares, ocorrerão no país, caso o Supremo Tribunal Federal venha a reconhecer, em definitivo, que o Ministério Público não pode fazer investigações e que essas são ”privativas da Polícia Judiciária federal e estadual”.

De outro lado, também se encontra hoje no Supremo Tribunal Federal uma ação direta de inconstitucionalidade contra o foro privilegiado para ex-autoridades (ex-prefeitos, ex-governadores, ex-desembargadores, ex-parlamentares, ex-ministros), que foi estabelecido nos últimos dias do Governo FHC, cuja decisão, se confirmada a constitucionalidade, representará uma sobrecarga imensa de trabalho para os tribunais

Essas duas questões, portanto, representam hoje a maior ameaça ao Ministério Público, muito além da própria ”lei da mordaça”. Esta, em andamento no Congresso Nacional, tenta evitar que os membros do Ministério Público dêem declarações à imprensa; aquelas, pelo contrário, tiram-lhe atribuições fundamentais, cortam-lhes os braços, as pernas, a respiração.

Ora, todos os órgãos públicos, pelas suas auditorias internas, fazem investigações, o mesmo se podendo dizer das corregedorias. O Banco Central, a Receita Federal, os tribunais de contas, os órgãos do Ministério da Justiça, a Controladoria da União e os órgãos correlatos nos Estados também fazem investigações. Por que cercear somente o Ministério Público, exatamente a Instituição que é titular da ação penal e que não depende do inquérito para apresentar a denúncia? E porque assoberbar os tribunais com ações penais e de improbidade, se eles mal dão conta da carga de trabalho, além de ser evidentemente inconstitucional fixar competência por lei ordinária?

Não quer o Ministério Público o controle das investigações da Polícia ou o comando do inquérito policial, mas não se pode, em um país de tantas carências, principalmente no combate à impunidade, prescindir-se de investigações do Ministério Público, sob pena de se erigir mais um andar no edifício da impunidade. Crimes de tortura, lavagem de dinheiro, crimes financeiros, de improbidade, praticados por autoridades públicas, principalmente por aquelas que, ao fim e ao cabo, têm em suas mãos o comando da própria polícia, só são apurados se houver a investigação por outra instituição. E essa obrigação recai, em virtude das próprias regras constitucionais, no Ministério Público, como ocorre, aliás, em outros países.

Se se quer controlar os excessos do Ministério Público – e estes às vezes ocorrem -, regule-se o procedimento investigatório, estabeleça-se o contraditório ao final, antes da propositura da ação penal; fixem-se os parâmetros, as regras; quando ele é sigiloso ou não, para o resguardo dos investigados; digam que ele não é inquisitorial, mas não cortem pela raiz, não arranquem os braços, não destruam o que foi construído a duras penas. Afinal, combater a impunidade pressupõe união dos órgãos envolvidos, e não exclusão.

É preciso, portanto, acompanhar as próximas decisões do Supremo Tribunal Federal. Elas terão imenso significado para a história do combate à impunidade no país.