Jabuticaba, jeitinho e controle de constitucionalidade de leis

30 de junho de 2011

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No sistema de separação de poderes adotado pela nossa Constituição, a Proposta de Emenda Constitucional que visa a inserir no cenário jurídico brasileiro a análise prévia, pelo Judiciário, da constitucionalidade das normas contidas em projetos de lei é uma anomalia que desfigura o sistema por nós adotado.

As funções atribuídas ao Poder Judiciário se afiguram incompatíveis com a participação no processo legislativo, bem como com a qualidade de consultor prévio sobre a constitucionalidade do projeto.

Rui Barbosa dizia que o STF mudaria a República se houvesse nele maioria que exercesse as suas atribuições constitucionais, e João Mangabeira afirmou que o STF foi o poder que mais falhou na República, por haver deixado de cumprir o papel político-constitucional que lhe competia. Para ele, o STF avançou muito timidamente no sentido de exercer o seu papel. E, ainda assim, a partir da ação de Rui, que fustigava seu funcionamento.

O Poder Judiciário tem um papel institucional a desempenhar, qual seja exercer a jurisdição. Dizer o Direito é o papel do Judiciário e precisa se aperfeiçoar para cumpri-lo, tal como lhe é reservado institucionalmente. Justiças restaurativas, conciliatórias, mediadoras, terapêuticas, consulentes, ambulantes, itinerantes, mambembes, participantes de mutirões, ações globais e locais ou promotoras de campanhas podem satisfazer a necessidade altruísta dos seus membros, mas não desempenham o papel do Poder Judiciário. A Justiça não é vingança nem terapia, mas triangulação de relações sociais, e ao Judiciário cabe arbitrar o interesse individual, coletivo ou social em conflito, justificando seu convencimento quanto aos fatos alegados pela reconstituição histórica dos mesmos, e expondo o fundamento jurídico da decisão.

Assim, ao Judiciário não cabe o papel de consultor prévio sobre a constitucionalidade do projeto de lei. O Judiciário tem papel especial na nossa ordem jurídica, pois sendo Estado a ele aplica suas leis. Não raro, o Poder Judiciário é chamado a exercer controle jurisdicional sobre seus próprios atos. O desgaste que se pretende evitar sofra o Legislativo, quando uma lei é declarada inconstitucional, pode recair sobre o Judiciário, se um projeto obtiver consulta favorável quanto à constitucionalidade e for posteriormente, por este Poder, declarado inconstitucional.

A proposta, evidentemente, parte de setores do Judiciário temerosos das reações quando declaradas inconstitucionais leis de agrado popular. Mas, no sistema constitucional vigente, do qual se extrai o conjunto de direitos e garantias fundamentais, cabe ao Judiciário afirmar os direitos, mesmo que em contraposição a eventuais desejos momentâneos da maioria. O sistema de garantia de direitos fundamentais, mesmo contra a maioria, tem inspiração nos erros cometidos pelas paixões das maiorias, dentre os quais os julgamentos de Sócrates e de Cristo. O que se propõe é um jeitinho de evitar sejam os juízes chamados à arbitragem sobre a atividade legislativa quando contrária à Constituição. Mas, jeitinho não há se prover soluções permanentes.

Jeitinho não se confunde com ilegalidade, mas seu excesso leva à ilegalidade e corrupção do sistema institucional, notadamente quando entrelaçado com a cordialidade que nos caracteriza. O Judiciário há que se afirmar como uma instituição teoricamente racional, impessoal, anônima e com o uso de categorias intelectuais, sem apelos às categorias emocionais para angariar a simpatia do público. O jeitinho com o qual se busca resgatar a credibilidade da Justiça haverá de estabelecer a prevalência dos valores pessoais e momentâneos sobre os impessoais, abstratos e permanentes.

Essa estratégia de buscar novos papéis a fim de evitar os embates próprios das pretensões em conflito, que ao Judiciário cabe arbitrar, haverá de naufragar o próprio sistema, pois os conflitos inconciliáveis demandantes de arbitragem por um Poder não se solucionam pela simpatia, conciliações e transigências. O bom juiz não é aquele capaz de abrandar os rigores da lei, em razão de sua vontade pessoal e da certeza de sua necessidade ou dos desejos momentâneos da maioria, mas aquele capaz de assumir o desgaste de ser percebido como antipático, antiquado e rígido, se os direitos e as garantias assim exigirem que atue. Para isso é detentor de garantias e prerrogativas.

Não se pode brincar de institucionalidade. Tampouco em se tratando de produção legislativa, cuja edição cabe aos representantes do povo, para este fim eleitos. Se a vontade dos representantes do povo se afigurar incompatível com a Constituição, cabe ao Judiciário afirmar esta em prejuízo daquela.

O controle de constitucionalidade de leis, ou seja, a aferição de compatibilidade da lei com a Constituição tem origem concreta em 1803, quando a Suprema Corte norte-americana se deparou com o caso Marbury v. Madison, no qual questões de ordem política e jurídica se entrecruzaram. Da solução daquele caso pelo juiz John Marshall, resultou o afastamento da lei e a supremacia da Constituição. Em verdade, o juiz Marshall não tinha condições de garantir o direito que Marbury pleiteava, pois os republicanos, liderados por Thomas Jefferson, haviam derrotado os federalistas, liderados por Alexander Hamilton, que no apagar das luzes haviam criado cargos, feito nomeações e entregue os atos de investidura aos nomeados, mas sem lhes dar posse. Declarar inconstitucional aquela lei foi menos custoso para o Poder Judiciário do que deferir a segurança e ver a ordem desrespeitada. Mas, o que se celebrizou naquele caso foi a consolidação, nas mãos dos juízes, do poder de controle de constitucionalidade ou poder de revisão judicial, que reconheceu, de modo definitivo, a possibilidade de se aferir a compatibilidade da Constituição com os atos dos legisladores.

O argumento de que o juiz John Marshall lançou mão – de que as leis são elaboradas pelos representantes do povo e por um poder constituído, e que a lei ou o ato que disponha de forma diferente da Constituição, elaborada pelo povo, é com ela incompatível e não pode ser aplicada, pois a Constituição tem precedência – havia sido exposto, pelo candidato derrotado à Presidência, na Carta ao Povo de Nova York, que resultou no número 78 d´O Federalista.

O caso Marbury v. Madison foi o primeiro momento de que se tem notícia em que se deixou de aplicar uma lei sob o fundamento da supremacia da Constituição, ainda que no Brasil a lei seja cotidianamente afastada por considerações de ordem pessoal ou vago sentimento de justiça.

No Brasil, antes mesmo da Constituição de 1891, mas já na República, viemos a conhecer a possibilidade de controle de constitucionalidade das leis, pois o Decreto 848, de 1890, dispunha em seu preâmbulo que o poder de interpretar as leis envolve, necessariamente, o direito de verificar se elas são conformes ou não à Constituição, cabendo, neste caso, declará-las nulas e sem efeito. No Império brasileiro, não era o sistema de separação de poderes que impedia o controle de constitucionalidade das leis, mas a sanção imperial, que sanava qualquer vício.

A consultoria prévia pela função judiciária do Estado pode ser prática bastante comum em diversos países da Europa, dentre os quais a França. Mas, não se pode dizer que aquele país seja o berço da separação dos poderes. Na França, o Judiciário é um departamento do Estado e não um poder. Tampouco o é na Itália e na Espanha, onde, segundo dizem, faz-se a consulta prévia. Não há quem conheça os sistemas institucionais de tais países que afirme se tratar de sistema com separação de poderes, e pela inexistência de tal separação é que não há invasão de competência. O sistema de separação de poderes é criação dos norte-americanos e foi por nós adotado. A nacionalidade de Montesquieu não denota o sistema de separação de poderes na França. Além disso, no Capítulo VI do Livro XI d`O Espírito das Leis, Montesquieu fala da Constituição da Inglaterra e da separação das funções pelos respectivos exercentes das mesmas. De tal obra não consta a separação de poderes, como pensam aqueles que não a leram. A separação de poderes não é europeia, mas norte-americana; o chá não é inglês, mas asiático. Mas, a jabuticaba e o jeitinho são genuinamente brasileiros.