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Judicialização da Saúde no Brasil

24 de janeiro de 2018

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O Direito a saúde está garantido pela Constituição Federal de 1988. O art. 6o descreve a saúde expressamente como um Direito social e o art. 196 da Carta Magna, por sua vez, estabelece que este direito se garantirá mediante a elaboração de políticas sociais e econômicas por parte do Estado. As políticas públicas, a sua vez, se destinam a racionalizar a prestação coletiva do Estado, com base nas principais necessidades da saúde da população, de forma a promover a tão aclamada Justiça distributiva.

Como o Poder Judicial atua sob a perspectiva da Justiça comutativa ou, como denomina Amaral (2001), sob o âmbito da micro-justiça do caso concreto, o desafio de incorporar as políticas públicas de saúde nas suas decisões se revela indispensável para o avanço da jurisprudência, no sentido de compatibilizar a Justiça comutativa, dentro de cada processo, com a Justiça distributiva, representada pela decisão coletiva formulada e formalizada por meio dos diversos atos normativos que compõem a política de assistência à saúde, emanadas dos Poderes Legislativo e Executivo.

Estudos emprendidos por Messeder et al. (2005), Marques e Dallari, (2007) Vieira e Zucchi (2007) apontam para um grande e exponencial número de ações judiciais individuais que demandam essas prestações do Estado. Campilongo (2002), baseado na Teoria do Sistema elaborada pelo filósofo alemão Niklas Luhmann sustenta que ocorre a “judicialização” da política quando o Poder Judicial, órgão central do Sistema jurídico, passa a atuar além dos limites estruturais deste sistema, operando com ferramentas próprias do Sistema político, sem ter capacidade para tanto, e exercendo assim a função que só o Sistema político pode exercer na sociedade, qual seja: a tomada de decisões coletivamente vinculantes. O seja, é a superposição das decisões judiciais ao marco normativo elaborado pelo Sistema político.

Os estudos emprendidos até o momento no Brasil por Messeder et al (2005); Marques e Dallari (2007); Vieira e Zucchi (2007), que analisam as decisões judiciais em matéria de assistência farmacêutica contra o Estado, publicados nas principais revistas nacionais de Saúde Pública, versam sobre investigações regionais, que não permitem generalizações e afirmações em nível nacional. Tampouco temos dados precisos sobre a representação da população nestes processos, principalmente no que toca ao apoio de associações, fato que se vem imputando como uma possível manipulação da demanda, frente ao financiamento de algumas dessas associações por indústrias farmacêuticas interessadas na comercialização deste ou de aquele fármaco.

Vieira e Zucchi (2007) demonstram que entre as ações analisadas contra o Municipio de São Paulo os 2% versam sobre medicamentos constantes nos serviços ofertados pelo SUS – Sistema Único de Saúde. Marques e Dallari (2007) indicam que entre os processos investigados os 9,6% tratavam de medicamentos sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. Tampouco temos informações científicas oriundas destes processos, capazes de promover um sério debate sobre a eficácia terapêutica dos medicamentos não padronizados concedidos pelo Poder Judicial, ou seja, sim estes possuem equivalentes terapêuticos oferecidos pelos serviços públicos. Entre os processos analisados, em 2005 e 2007, no Estado de Rio de Janeiro, a maioria provinha de serviços do SUS.

O impacto financeiro dessas ações frente a política pública de saúde também merece dados precisos e nacionais, assim como informações sobre outros bens e serviços de sáude demandados em juízo, como leitos de Unidades de Tratamento Intensivo (UTI), órteses, próteses, entre outros. Deve-se questionar também o verdadeiro impacto do total do financiamento da saúde e das ações planejadas e executadas em matéria de assistência farmacêutica e terapêutica.

Assim, se pode evidenciar, baseado em dados significativos, os benefícios e prejuízos da atuação judicial na garantia do Dereito à saúde e sua relação com a política de saúde estabelecida. E, garantir o Direito à saúde de forma efetivamente integral e universal, com a equidade necessária e com o devido equilíbrio entre os Sistemas jurídico e político do Estado, assim como com a necessária participação da sociedade neste debate. O fundamental é a conjugação das necessidades individuais postas nos processos e das necessidades coletivas, formalizadas mediante políticas públicas e indispensáveis a garantia do Direito à saúde como Dereito social.

Atento ao problema da judicialização da saúde, no Brasil, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), instituiu, em 2010, o Foro Nacional do Judiciário para a Saúde. Como providência inicial criou-se um Sistema electrônico de acompanhamento das ações judiciais que envolvem a assistência à saúde. Em junho de 2012, o Foro foi reestruturado, com uma nova composição do Comitê Executivo, agora formado por julgadores, representantes do Ministério da Saúde, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e, mais recentemente, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).

Desde então, foram definidas muitas providências pelo CNJ: investigação diagnóstica da judicialização; incorporação, na lista de cobertura da ANS, das decisões sumuladas ou de repercusão geral, para que os contratos das operadoras de planos de saúde não contemplem cláusulas nulas de pleno direito, evitando-se demandas judiciais futuras e abastecimento aos julgadores de informações científicas de credibilidade na área de tecnologia da saúde, por meio da incorporação, no sitio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), das Notas Técnicas da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC). Disponíveis, também, no sitio do CNJ, se encontram os nomes dos conciliadores representantes das operadoras de planos de saúde, para estimular a conciliação.

O CNJ estabeleceu propostas de homologação e encaminhamento para sua execução judicial imediata dos acordos firmados no âmbito dos PROCONs e não cumpridos, além da obrigatoriedade de abastecimento pelas operadoras da razão da negação da prestação, na linguagem acessível. Foram elaborados memoriais sobre as competências no Sistema de Saúde e a estruturação e atividades dos Comitês Estaduais do Foro de Saúde brasileiro. Ocorreram reuniões com representantes de todos os Comitês Estaduais, com representantes das operadoras de planes de saúde, com dirigentes da ANVISA e representantes dos PROCONs. O CNJ apresentou sugestões ao Ministério da Saúde brasileiro para a limitação da prática de sobrejornada e da tercerização nos serviços de saúde. Ademais dos projetos para o combate do encarecimento artificial dos serviços de saúde e de Curso de Direito Sanitário, para qualificação dos julgadores.

Com efeito, verifica-se que a desarticulação entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, no Brasil, revela a importância do aperfeiçoamento dos mecanismos de “pesos e contrapesos” na saúde e dos canais de diálogo entre as instituições públicas que operam na garantia dos princípios do Sistema Público de Saúde e, também, do Sistema Privado. A despeito de ter havido avanços, permanece como grande desafío do Estado brasileiro, entendido de forma amplia, garantir a democracia e exercer o papel mediador de interesses e demandas, estabelecendo prioridades e atuando de forma equilibrada, dirigindo ao bem estar coletivo e não simplemente atendendo aos interesses de grupos específicos, para isso necessitam vencer inúmeros dilemas.

Sugestões
Apresentaremos, a seguir, algunas sugestões para reduzir a judicialização da saúde no Brasil:

Trabalhar desde a prevenção, tanto dos erros médicos que podem levar a juízos de mala praxis, como nos conflitos que conduzem a judicialização por outras diferentes causas (falta de prestação, atenção com os pres­tadores desconhecidos ao financiador, etc.);

A implementação dos programas de gestão de riscos médico-legais como as unidades de gestão de conflitos que propiciem a possibilidade de trabalhar com programas de qualidade já que tendem a buscar a segurança do paciente;

È preciso que os gestores públicos avancem com relação a elaboração e implementação das políticas de saúde no Brasil;

A organização administrativa da prestação dos serviços de saúde, que, muitas vezes, deixam os cidadãos sem a correta assistência médica e farmacêutica;

Ampliar um canal administrativo capaz de ouvir e processar as diferentes demandas da sociedade neste campo;

È preciso que o Poder Judicial avance com relação a incorporação da dimensão política que compõe o Direito à saúde;

O Poder Judicial deve buscar a especialização com a criação de varas especializadas na saúde e regulação, pretendendo, sobre todo, a formação de parâmetros objetivos de decisões judiciais atentas as especificidades do setor, num conceito multidisciplinar;

Criação de Câmaras técnicas e/ou audiências públicas;

Uma maior regulação que possa promover a integração entre o Sistema Público e o Privado deve ir mais além da questão do ressarcimento.

Deve avançar na estruturação de redes de saúde, com autonomia e governança própria, donde se possam integrar aqueles que possuem ou não cobertura de Saúde Suplementar.

A inovação, a busca pela racionalidade e pela complementariedade.

Considerações Finais
O Dereito à saúde é um Dereito fundamental do cidadão e um dever do Estado brasileiro, embora esteja garantido de forma integral e universal pela Constituição Federal brasileira de 1988 (art. 196), não está garantido plenamente na prática. O Sistema Único de Saúde (SUS), apesar de configurar uma política consistente e sólida, com inegáveis avanços, não consigue ofertar cuidados integrais e universais de saúde a todos os cidadãos brasileiros. E, a sociedade civil, por meio da atuação combativa de órgãos como o Ministério Público e a Defensoria Pública buscam subsídios para pleitear este direito através do Poder Judicial. A inserção destes atores na reivindicação da saúde como um direito está con­­­­­­tribuindo, notoriamente, ao que se convencionou chamar de “judicialização da saúde” no Brasil, com todos seus aspectos positivos e negativos.

A atuação judicial ganha espaço quando não existem políticas públicas eficientes e eficazes ou quando elas são insuficientes para atender minimamente, tanto na área da Saúde Pública como na área da Saúde Complementar (seguros de saúde privados). O Direito à saúde não se pode entender como o direito de estar sempre saudável, senão como o direito a um Sistema de proteção a saúde que dá oportunidades iguais para que as pessoas alcancem os níveis mais altos de saúde possíveis.

A atuação do Poder Judicial revela o controle judicial de eventuais violações tanto por parte do Estado na atenção à saúde e, inclusive, a participação nas políticas públicas, especificamente dos seguros de saúdes privados, no controle judicial de abusos de cláusulas contratuais leoninas. Por outro lado, o excesso de ordens judiciais pode desestabilizar a universalidade da saúde, um dos fundamentos do Sistema de Saúde Pública, como não tornar viável o Sistema de Saúde Complementar no Brasil.

A solução para o conflito de interesses envolvendo o Direito individual à saúde e o Direito coletivo de viabilidade do Sistema de Saúde demanda, dentre outros aspectos, a especialização da magistratura na área de saúde, numa concepção multidisciplinar na que o magistrado possa subsidiar-se de toda uma estrutura técnica, conjugando esforços com o auxílio de peritos especialistas em medicina, em cálculos atuariales, com o escopo de ­garantir maior segurança jurídica a suas decisões.

Consideramos que somente com uma maior eficiência na formulação de políticas públicas, com proposição de critérios e parâmetros de monitoramento, baseados em evidências científicas, se fará efetiva a garantia do uso e acesso racional das tecnologias e aos medicamentos, sem necessidade da intervenção do Judiciário brasileiro evitando-se, igualmente, que o acesso aos serviços de saúde se transforme em um fator a mais de iniquidade. Neste sentido, vale recordar a imperiosa necessidade do aumento de um número maior de associações no sentido do desenvolvimento das Relações de Cooperação Técnica Internacional, na área de Engenharia Genética e Biotecnologia.

Com efeito, o Direito a saúde no Brasil está em construção permanente e provavelmente passará, com a importante contribuição do planejamento e da gestão sistêmicos, de um período de intervenção judicial desmedida para um período de intervenção judicial com mais critério, assim como por um período de maior efetividade por parte do Poder Público, fatores que, por certo, contribuirão para reduzir as demandas judiciais e reafirmar as políticas públicas existentes.