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Judiciário e crime organizado: seqüestro

28 de fevereiro de 2008

Presidente do Conselho Editorial e Consultor da Presidência da CNC

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Entre atônita e indignada, a população brasileira em geral, e a dos grandes centros urbanos em particular, assiste à escalada do crime organizado, mais precisamente da indústria do seqüestro, sem que a Sociedade Civil e o Estado, aparentemente, demonstrem possuir meios capazes de enfrentar, com eficácia, esta nova forma de terrorismo.
Em sua modalidade mais simples, como todos sabemos, o seqüestro é tratado, em termos jurídico-penais, como um delito comum, tipificado, entre outros, no capítulo dos crimes contra a liberdade individual, tendo como conduta realizadora do tipo o privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado.
Na modalidade mais grave, já agora no título dos crimes contra o patrimônio e, mais precisamente, no capítulo do roubo e da extorsão, aparece esse ilícito associado à prática da extorsão, à qual serve de meio de execução, já que, nesta modalidade, ele é praticado com o fim de proporcionar para o agente, ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate.
Em passado não muito remoto, na fase dura da repressão política, muitos seqüestros se fizeram com propósitos exclusivamente ideológicos – como o seqüestro de agentes diplomáticos acreditados perante o Governo brasileiro –, na medida em que o encarceramento violento, arbitrário e desumano, daquelas personalidades era apresentado como resposta à repressão política, então existente no País.
Sem termos chegado ao limite – na verdade ao não-limite – a que chegaram, entre outros grupos terroristas, as famigeradas brigadas vermelhas italianas – que se permitiram a prática de atentados em locais públicos para acuar a sociedade e paralisar o Estado–, sem termos chegado a esse ponto extremo, mercê da abertura política – imposta pelas oposições reunidas ou concedidas pelo Governo, pouco importa –, vimos declinarem os seqüestros, e a criminalidade reduzir-se aos tipos comumente encontrados em sociedades como a brasileira.
Agora, infelizmente, vemos recrudescerem aquelas práticas delituosas, em escala de repetição e violência tão elevadas, inclusive com os chamados seqüestros relâmpagos, que toda a sociedade, novamente acuada, e, por isso, justamente indignada, passa a cobrar do estado ações enérgicas que lhe devolvam a paz e a segurança – repentinamente perdidas, e sem as quais perde sentido a própria existência da criatura humana, numa comunidade civilizada.
Neste contexto, como é natural, dada a instabilidade que a todos afeta, inúmeras têm sido as soluções apontadas para o problema, desde as fórmulas comuns, de exacerbação pura e simples das penas – inclusive com a introdução da pena de morte, que a consciência nacional parece não admitir –, até as soluções de nítido caráter político, do tipo decretação do estado de defesa, no qual se combate o crime de uns poucos, representado pela conduta delituosa dos marginais, individualmente considerados, como mal generalizado, e certamente maior, das restrições, ainda que temporárias e localizadas, de direitos constitucionais básicos, como o direito de reunião e o de preservação do sigilo de correspondência e de comunicação telegráfica e telefônica.
Diante desse quadro de patologia social, cumpre ao Governo – como já vem fazendo, aliás –, procurar auscultar e sensibilizar a sociedade para receber desta o respaldo necessário à legitimação das soluções que porventura se veja obrigado a adotar, sob pena de, não o fazendo, acabar por comprometer todo o seu esforço, respondendo ao terror do crime com o terror do Estado, que, num primeiro momento, parece justo e eficaz, mas que, ao termo do processo, sempre sem controle, acaba por sufocar o cidadão, criando um clima de insegurança generalizada, que a todos assusta.
Faço essa ressalva porque enquanto o que se observa em outros países é a diminuição e o controle da escalada da criminalidade e da violência, através da implementação oportuna de políticas públicas integradas, aqui, o que de fato acontece, é o aumento vertiginoso das ocorrências criminais, ao ponto de, conforme pesquisa publicada recentemente, as altas taxas de homicídio provocarem a redução da expectativa de vida em 2,5 anos para os homens, com o agravamento da situação na região Sudeste, aonde a redução chega a 3,5 anos. Na América do Sul, o Brasil só era ultra-passado pela Colômbia – que se encontrava envolta em um verdadeiro banho de sangue na luta travada contra narcotraficantes, guerrilheiros e grupos paramilitares –, o que agora, parece, se vai modificando.
Na mesma pesquisa, observa-se que a alteração de assassinatos entre jovens do sexo masculino de 15 a 29 anos é alarmante e já não é mais privilégio dos grandes centros urbanos. Para cada grupo de 100.000 habitantes, são mortos anualmente 184 jovens em São Paulo, 265 no Rio de Janeiro, 188 no Amapá, 164 em Roraima e 189 em Pernambuco, contra uma média nacional na Irlanda de 0,7; no Japão de 1,0 e na Espanha de 1,6. O que se verifica dos números parciais extraídos da pesquisa é uma brutal carnificina contra a juventude desse País.
É a explosão da violência em suas mais diversas manifestações, tomando foros de epidemia nacional, principalmente pela incontida aceleração do uso e do tráfico de drogas ilícitas.
A violência tornou-se uma velha companheira do cotidiano da população brasileira. Hoje, sua visibilidade torna-se maior em função de diferentes aspectos, tais como conscientização de cidadania, a liberdade de imprensa, a melhoria das facilidades de telecomunicações, a urbanização acelerada e outros fatores.
Banalizada, a violência passa a integrar o dia-a-dia da comunidade brasileira, que reage freqüentemente  através do isolamento – como os guetos formados pelos condomínios fechados e pelos shopping centers– ou através de meios ilegais, inadequados, equivocados e, em alguns casos, contrários aos seus objetivos maiores, através da criação de grupos de extermínio, vigilantes, gangues de adolescentes e outras formas.
Observa-se, mais uma vez, a nefasta atuação da burocracia de plantão instalada na Esplanada dos Ministérios, disposta a levantar e apresentar, a todo momento e lugar, obstáculos ao desenvolvimento e implantação das políticas públicas de grande anseio da sociedade brasileira.
Trata-se da mesma burocracia insensível e irracional, fixada apenas no cumprimento das metas econômicas e das regras estabelecidas de forma implacável.
Por acaso, será que esta mesma ‘tecnoburocracia’ irá lançar um apelo ao narcotráfico e às outras instituições criminosas que tantos prejuízos estão causando à Nação, a ponto de já ameaçar o seu futuro e soberania sobre a região amazônica, para que encontrem por seus meios uma solução?
Era só o que faltava!

O Direito Penal
Dentre o espectro mais amplo constituído pelos valores de cunho ético, as sociedades organizadas selecionam uma parcela, estendida como mais relevante, e a erigem à categoria de valores de cunho jurídico, cuja violação deverá implicar não apenas a reprovação moral, mas também alguma sanção de ordem legal. Dentre esse espectro mais reduzido dos valores muito especiais, cuja infração merece a mais severa das sanções legais, que é a sanção penal. Apenas quando todos os demais ramos do Direito são insuficientes para proteger determinado valor, institui-se a proteção do Direito Penal, com função repressiva e preventiva em relação aos comportamentos que o sistema jurídico repudia de forma mais veemente.
Considerada, portanto, a relevância dos direitos e interesses tutelados pela legislação penal, a eventual não-aplicação das punições previstas nessa legislação, em relação a casos que nela se enquadram, provoca, evidentemente, preocupação e até revolta no corpo social.
Esse é o sentimento generalizado do povo brasileiro no que se refere ao seu sistema penal, percebido como ineficaz e, consequentemente, injusto. E aqui, por sistema penal, queremos referir-nos a toda a sistemática de responsa-bilização penal, incluídos o direito material, os instrumentos processuais e o sistema de execução de penas.
É verdade, por seu lado, que sinais alvissareiros, muito claros, indicam que, também nesse aspecto, o País está mudando – a impunidade está cedendo e responsabilidades começam a ser cobradas. Em alguns episódios essas mudanças já têm conseqüências concretas; em outras áreas, discussões já foram iniciadas visando à superação das causas da impunidade. Não se pode negar, contudo, que a percepção popular de que a impunidade ainda grassa tem sua razão de ser. Tampouco se pode deixar de reconhecer razão à preocupação manifestada em relação ao fenômeno, eis que a impunidade se constitui em importante vetor para a multiplicação dos ilícitos penais.
Mas a questão da impunidade no Brasil de hoje pode ser enfocada de vários ângulos. Podemos tomar, primeiramente, a faceta, evidentemente desde muito tempo, da impunidade das elites, expressa na assertiva popular de que “rico não vai para a cadeia”. Quando assume este caráter, a impunidade sintetiza a negação da cidadania. No momento em que se constitui em privilégio dos abastados, ela nega à maioria do povo brasileiro o status que garante a igualdade de direitos. Enquanto as elites ficam, quase sempre, imunes à ação punitiva da lei, esta é, muitas vezes, severamente aplicada às classes mais pobres, normalmente desassistidas de instrumentos que permitam fazer valer seus direitos constitucionalmente assegurados.
Este tipo de impunidade – a impunidade que beneficia os ricos e poderosos – é, como afirmamos anteriormente, a mais antiga, a mais “tradicional”, um vício que caracteriza nosso sistema penal desde seus primórdios. Mais recentemente, contudo, o fenômeno da impunidade ganhou maior abrangência, favorecendo também, inúmeras vezes, réus pobres.
Isto passou a ocorrer em razão de inovações introduzidas na legislação substantiva e de execução penal, principalmente por ocasião da reforma de 1984. A criação de um exagerado número de benefícios incidentes sobre a execução da pena, a frouxidão dos critérios para sua concessão e a possibilidade de combinação entre eles, servem para desnaturar a pena aplicada na sentença condenatória.
Além disso, a crise financeira do Poder Público, redundando no sucateamento dos serviços públicos em geral, causou prejuízos também aos órgãos de segurança. Este fato, associado ao momento da criminalidade, fenômeno comum a todos os países nos dias que correm, tem concorrido também para o aumento da impunidade, neste caso assegurada desde o cometimento do delito e não apenas na fase da persecução criminal ou da execução da pena.
Por isso mesmo, parece-me oportuno que se deva cogitar – é minha opinião – o alongamento dos prazos prescricionais, e, possivelmente, a extinção da prescrição retroativa. Um advogado criminalista, mesmo de mediana experiência, pode, com requerimentos e incidentes, fazer protelar o andamento dos processos de modo a tornar quase certa e prescrição de dois anos.

Conclusão
De qualquer maneira, algo deve ser feito, e imediatamente, pois a omissão e a tibieza, em momentos graves como o em que estamos vivendo, ou as autoridades assumem a direção do processo, ou a sociedade, em autêntica legítima defesa, legitima-se a si mesma para combater o crime, dando ensejo à proliferação de grupos de extermínio e ao surgimento de organizações paramilitares, que a pretexto de defenderem os cidadãos, acabam por enfraquecer o Estado num primeiro momento, e, logo a seguir, contaminar o próprio organismo social, generalizando o crime que pretendem combater e eliminar.
Como a ninguém interessa esse estado de coisas –, verdadeiro retorno à barbárie –, cumpre ter presente a sábia advertência de Norberto Bobbio, adversário ferrenho e insuspeito do uso da força como forma de combater à criminalidade, mesmo quando, pela sua virulência, ela parece pôr em risco os valores da democracia: a prova de fogo do Estado democrático – que não pode nunca considerar-se em guerra com seus cidadãos – não está em se deixar envolver num estado de guerra, reafirmando, mais uma vez, solenemente, as tábuas de lei, que são a nossa Constituição.
Em suma, ainda citando esse exemplar defensor do Estado de Direito, urge que a sociedade brasileira tenha plena consciência de que, neste momento como talvez em nenhum outro de sua história, provavelmente terá que pautar sua reação contra o crime organizado redefinindo as regras que estabelecem ‘quando’, ‘de que modo’, ‘em que medida’ e ‘contra quem’ pode e deve ser usada a força.
Com a palavra, portanto, a própria sociedade, instância primeira e última de legitimação de todos os atos governamentais, num regime que se pretenda verdadeiramente democrático.